Diz respeito aos Gêmeos do Zodíaco, adversários cingidos em firme enlace; aparições fantasmáticas de um solvente breu escatológico; duplicados pilares justapostos nas entradas e saídas; baluartes da fortaleza celeste e confinadores do desacerto pedestre, o primeiro e mais importante desacordo do ser: trata-se do mito fundante de Caim e Abel, da dissensão entre a imagem que vê o homem no espelho e aquilo que intui, às cegas, a respeito de si e do mundo; trata-se do despertar da consciência sensível e da concupiscência da carne, do imaginário da queda, da experiência da alteridade, da consciência humana a respeito do bem e do mal e do gatilho que desperta o desejo do homem pelo fogo prometeico, que impele-o, finalmente, ávido e célere, ébrio de indagações e empossado das percatas de Hermes, a trilhar os nobres e destemidos passos na estrada da filosofia e do conhecimento humano, estrada amiúde tortuosa e abstrusa, bifurcada nas armadilhas dos sentidos, que guiam o coração dos sábios ao topo da colina e a maledicente fronte dos incautos ao fundo do despenhadeiro.
Predicam-se muitas coisas do signo de Gêmeos, como o Domicílio de Mercúrio e o Exílio de Júpiter, relevantes dados para nosso intento. Tanto Gêmeos quanto Virgem são domicílio de Mercúrio e exílio de Júpiter; em contrapartida, tanto Sagitário quanto Peixes são governados por Júpiter e exílios de Mercúrio — sendo Peixes o signo de sua queda. A conclusão relevante a se extrair disso é a da existência de uma tensão fundamental entre Mercúrio e Júpiter. Existem muitas maneiras de explicar essa tensão, mas creio existir uma necessidade de me ater ao sintético e uno para superação de tensões e contradições. Outrossim, a relação entre Júpiter e Mercúrio pode ser explicada pela tensão entre o Uno e o Múltiplo, entre a vontade que reside n'Ele e nos pensamentos e intuições dos homens. Se o que há de magnânimo e uno no símbolo de Júpiter estiver alocado em um signo mercurial, haverá uma impostura hierárquica: a vontade do céu será preterida pelas confabulações terrestres. O mesmo vale para para um mercúrio alocado em signo jovial: deve haver silêncio do servo na casa do rei. O desenho desta complexa relação pode ser entendido, creio eu, no próprio glifo do signo de Gêmeos.
É prontamente visível sua semelhança com a imagem de um pórtico arquitetônico, assim como a homologia — e analogia, no caso em questão — com os pilares duplos na entrada de algum templo antigo de nave simples; é também semelhante aos pilares de Hércules, e aos pilares ritualísticos de Hermes, presentes nos ritos maçônicos. Por extensão principiológica, qualquer paridade de pilastras contém, em sua natureza, algo da essência de Gêmeos, que é simbolizado no corpo humano pelos braços. Os pilares sustentam o teto, e o teto é símbolo do céu. Os braços de Atlas sustentam o céu da mesma forma que os pilares de Hércules servem como nec plus ultra: horizontalmente, depois do Estreito de Gilbraltar, para além dali está a montanha do Purgatório — como descreve Ulisses de sua última viagem com os Argonautas no canto XXVI da Comédia de Dante, a viagem que os impele a atravessar o mundo conhecido, de encontro aos portões da morte...
Verticalmente está o céu. Não o próprio Empíreo, mas a imagem mediada do céu, o céu da inspiração e das imagens da vontade divina, expressa na direção dos ventos, no movimento dos pássaros e no desenho das nuvens... Júpiter está hierarquicamente no teto, sustentado pelas pilastras, pelos braços suplicantes de Gêmeos. O céu não precisa ser sustentado pelas estruturas humanas: ao contrário, as pilastras devem convergir para o topo, porque é no topo que se perfaz a hierarquia do simbolismo arquitetônico, que representa o mundo terrestre, erguido e constituído à imagem do céu. Na religio romana, o Flamen Dialis — sacerdote de Júpiter — está acima dos gêmeos Quirinalis e Martialis, manifestações religiosas da Paz e da Guerra. O poder de Júpiter é o poder da mágica, da mágica una e indivisível que nos leva à busca pela participação no ser.
Os Gêmeos estão nos portões, assim como Janus, às portas de um mundo invertido, posto de cabeça para baixo, compreendido num intrincado jogo de oposições. Está aí também a primeira aparição de Mercúrio no Zodíaco, e é na entrada de Mercúrio que ocorre um processo alquímico, que divide a matéria-prima a ser depurada. O processo iniciado em Gêmeos é o de depuração da matéria, que deve ser finalizado em Virgem, na recepção mercurial da terra, por meio da admoestação virginiana na iniciação religiosa da fé, no alimento íntimo da esperança. Gêmeos, assim como Janus, está nos portões de entrada e de saída: está no que aprendem os homens com os outros homens, no princípio da alteridade. Gêmeos lida com as limitações do mundo criado, com a quadratura — em oposição à circularidade da abóboda celeste de Júpiter, manifestada no conhecimento de Deus alocado em Sagitário, sua oposição. A jornada de Gêmeos a Sagitário é, portanto, uma jornada de formação, um bildung, que parte do primeiro contato com o conhecimento humano até a sublimação de suas contradições internas na unidade do ser sagitariano, que entende o conhecimento em sua dimensão transcendental. É o conhecimento da centelha divina de Prometeu, que reconhece no destino humano um potencial de superação da sociedade dos velhos deuses.
Esse potencial está contido nas contradições geminianas. O potencial do conhecimento é um momento do despertar para a analogia, que vê refletida em si e nos próprios signos íntimos todas as imagens do mundo. A coisa em si e a analogia da coisa se encontram em Gêmeos. A paz se perfaz pela guerra, e a guerra almeja como fim último a paz. O simbolismo do jogo de xadrez é, portanto, de natureza geminiana: as andanças entre as casas brancas e pretas simbolizam os constantes saltos entre o símbolo e a coisa simbolizada, entre a difícil experiência do ser e seu reflexo. Não é possível obter unidade terrestre: somos cativos dum jogo de oposições.
A unidade celeste é, portanto, o objeto de desejo último dos expatriados de Gêmeos. Podem derivar daí a tirania do poder que sustentam na formação dos Impérios — como se dá a formação do Império Romano, no sacrifício de um Gêmeo para a sustentação do poder de um outro, que encarna sua potência e simbolicamente o absorve, como que na junção de duas metades. O destino meta histórico do Império Romano revelou, contudo, seu papel ancilar: serviu de síntese de oposições, de reunião dos povos, até o momento fatídico em que se tornou o centro do mundo, tudo para servir n'Ele e para Ele. O papel meta histórico de Gêmeos era o do serviço ao Cristo e sua igreja. Magnus ab integro saeclorum nascitur ordo.
Vemos na tragédia que escreveu Eurípides sobre Helena um dos primeiros documentos históricos do papel simbólico de Gêmeos. Na tragédia, existem duas Helenas: um fantasma levado para Tróia por Paris, como prêmio de Afrodite, e a verdadeira Helena, fiel esposa de Menelau, mantida sob a proteção de Proteus no Egito. A verdadeira Helena foi levada até lá por Hermes, que é o deus referente a Mercúrio. Inicia-se o processo alquímico. Já na premissa estão contidas importantes considerações simbólicas: enquanto o fantasma, a analogia, o símbolo da beleza é dado a Paris como troféu espúrio do amor erótico, a própria Helena é condenada ao sofrimento de ter uma reputação dissonante de sua natureza profunda, de ser vítima dos ardis dos deuses. A reputação é sinônimo de posição na Roda da Fortuna para os gregos, e foi lançada Helena na parte tormentosa de seu eixo. Está aí a narrativa de queda e de eventual redenção. A redenção de Helena só é possível pelo reencontro com Menelau e pela restituição de sua vida doméstica. Deve, então, se despir da desgraça que lhe traz o döppelganger: são falsos os presentes da Fortuna, e por extensão, os da fama. O mundo da fama e das imagens deve ser superado pela experiência doméstica, pois já está o mundo grego mesmo em uma transição de eras. Dá mais valor Eurípides aos homens e seu destino que aos velhos deuses. E com razão.
Ao fim da peça, somos lembrados da genealogia de nossa heroína: é membro da família dos Dioscuri, ou seja, dos irmãos mitológicos que simbolizam Gêmeos. Pollux, o irmão imortal e Castor, o irmão mortal, são da linhagem de Zeus, que é Júpiter. No fim do drama, facilitam os irmãos a fuga de Helena, em um dos muitos dei ex machina do dramaturgo de Salamina. Isto porque os Gêmeos aqui estão em sincronia, em uníssono: corroboram para a redenção possível de Helena, para uma redenção doméstica, na superação de seu status de mais bela mulher da Lacedemônia para a conformação de seu papel cósmico na obediência ao marido (sacerdote do culto doméstico) e ao pai céu.
A meditação profunda da psicologia de Gêmeos é aqui elucidada. A célere mobilidade do Gêmeos no fim da Primavera é uma antessala pros mistérios da alma, para a experiência do abismo, uma efervescência alquímica que prefigura a jornada do conhecimento. Essa antessala consiste na fértil contemplação das possibilidades, mas também na apresentação de um problema no potencial humano: a contradição da mortalidade e da imortalidade testemunhada nos Dioscuri é também parte da nossa condição. Temos a possibilidade de atingir o topo do mundo e de mover montanhas, assim como somos admoestados por nossas limitações existenciais. Tomamos nota de nossos limites após o percebimento da vastidão de nosso potencial. Agimos então, absorvida a lição, em duplas: os dois pontos que delimitam uma reta simbolizam também a nossa necessidade de deslocamento, de uma trajetória humana que visa uma elevação supra-humana, contradições com as quais devemos lidar até que trabalhem juntas, com estas duas mãos e estes dois braços, na construção de um altar para Deus e no proferir das preces que nos erguerão aos braços do Pai.