quarta-feira, 13 de agosto de 2025

A Arte da Erudição e o Eterno Rembrandt

Todo processo de erudição é arte; é metamorfose; é instrução; é desembrutecer. À revelia dos incentivos saturninos para que nos tornemos duros e inflexíveis como a ponta de uma lança adamantina — estado no qual nos tornamos igualmente quebradiços e descartáveis, tal como o grafite — reside na brandura e na admoestação dos afetos a verdadeira erudição. Pois mesmo o vasto acúmulo na memória é, na verdade, a transformação da memória; substitui-se a lânguida imagem da mulher transeunte pela forte reminiscência de Elektra. Transmuta-se o espaço interno da memória, do breu da caverna ao fulgor das catedrais. Outrossim, modifica-se o ritmo do corpo, as próprias disposições morais de nossa conduta, no interminável labor de domesticar os sentidos pela admoestação  lírica e musical. Todo esse projeto de dignificação do homem é no que de fato consiste a erudição e a aquisição de cultura; vem para nos transformar, para suavizar nossas feições anímicas. Vem para depurar os minerais de nosso espírito em metais nobres. Dá-se então no espírito da contemplação — e portanto da interpenetração, ou seja, nas trocas com o mundo imediato ao seu redor, cujo olhar faz com que um quarto escuro, antes sinônimo do insólito e do claustrofóbico, torne-se um nascedouro da fé, da filosofia e do olhar cristalino para as essências — a verdade da erudição. 

Esta verdade pode ser contemplada nas pinturas de Rembrandt, o grande alquimista da Arte Holandesa, autor cujos temas preferidos não se derivam das formas clássicas, nem das grandes viagens, mas da depuração pictórica da terra em ouro por meio da interpenetração entre sua visão transcendental e sua realidade imediata. O fundo marrom de Rembrandt é um tema universal da pintura holandesa — tornando-se um padrão do retratismo — que é por ele levado ao extremo filosófico, tornando-se o reduto próprio da alquimia do homem, do eterno vir-a-ser. Este espírito é também o que o torna um mestre da transformação anímica pelo trajeto próprio da pintura: podemos vê-la se transformar diante de nossos olhos, conquanto paralisada. Eis o grande desenhista da imagem do mistério da alma.


Tudo isto pode ser entendido sem demora na contemplação de duas de suas obras mais icônicas: a pintura do "Filósofo em Meditação", datada de 1632, e na peça conhecida como "Aristóteles Contemplando o Busto de Homero", de 1653. Os detalhes filológicos não nos interessam. Ambas as pinturas devem seu significado à cadeia causal histórica da qual fazem parte, que se perfaz na tradição da História da Arte e em suas recepções simbólicas. Na primeira vemos a figura do filósofo posto à esquerda da ascensão pela espiral, ou seja, no divórcio da circularidade terrestre que se predica do reconhecimento de princípios superiores. Vemos também que a luz de que se utiliza em sua atividade contemplativa não vem do trabalho do homem, mas da qualidade do tempo. Senta-se em oposição à fogueira e zelosamente exposto ao que parece ser um ocaso.

A luz do sol produz um esclarecimento régio em sua mente, luz que separa o reino da contemplação e a atividade corriqueira, cisão expressa na divisa entre o completo breu nas bordas do quadro e as superfícies iluminadas pelo sol. Não ocorre esta cisão sem um aparente pesar, contudo: percebe-se um esforço, na figura do filósofo, de elevação da própria solidão, abdicando de sua mobilidade — tem as pernas ocultadas pelas sombras — e até mesmo de sua visão, também obscurecida. A circularidade com que o espaço cênico é delineada pela luz expõe, por fim, a conformidade cósmica com que Rembrandt projeta o papel do filósofo: vê-se topologicamente desfavorecido em todos os sentidos, habitando a parte esquerda inferior da roda do mundo, vítima tanto do ocaso quanto da moléstia do sul — direção cósmica das seduções e das tentações. Mais do que a mera circularidade, o contraste entre sombra e luz delineia a forma de um ovo cósmico. É a parição do filósofo, um nascituro do pensamento numinoso. É como se o filósofo se dirigisse espiritualmente às margens do mundo, à beira do abismo, achando somente n'Ele a verdadeira luz. Ilumina-se então todo seu microcosmo, rico de propósito e de direção. Esta direção é a da ascensão. Deve levantar-se e subir as escadas: logo é hora do jantar.


Em semelhante espírito de transformação, contempla-se a síntese própria da arte da erudição nesta segunda pintura. Toca Aristóteles com sua mão direita o topo da cabeça do busto de Homero; segura com a esquerda a corrente dourada, suposto prêmio que lhe foi dado por Alexandre. A mão direita importa-lhe muito mais que a esquerda, esta soterrada pelas sombras.


Vejamos aqui as prioridades do artista: percebamos, em primeiro lugar, o trajeto da luz, onde se encontra o verdadeiro ouro, pois é no drama da luz que a matéria-prima de Rembrandt é sublimada e purificada. Parece estar de frente para Aristóteles, cuidadosamente iluminando apenas a parte superior de seu corpo, limitada contudo à altura dos olhos, estando a testa parcialmente ocultada pela sombra do chapéu. Este recorte de luz é dramático a níveis devastadores. Embora a luz toque os olhos de Aristóteles, não os clareia. Seu olhar repousa sobre Homero, que recebe agradecido o insight da luz em sua mente. Homero era poeta cego; Aristóteles, filósofo de olhos garços. Seu olhar, no entanto, parece voltar-se mais para dentro que para fora. Ao fixar seus olhos em Homero, vê refletido em si o desejo de continuar com a própria depuração, com a arte da reconstrução de si, mesmo depois de obtidos os prêmios do mundo — mais do que isso, mesmo depois de alcançado o cume do pensamento. 

É visível a tensão do estado de espírito de Aristóteles refletida em suas vestes: seu chapéu preto, que impede-lhe o contato direto com a luz — como  tem Homero — e também suas vestes pretas, contrastam com a túnica branca, que sobrepõe o preto, dando-lhe maleabilidade, fluidez e poder reflexivo: reflete a luz em seus braços, em seu contínuo trabalho. Liga-se então Aristóteles a Homero da mesma forma com que a episteme se liga ao discurso poético. Esta simboliza o início, e aquela o fim da vida filosófica. Mas a vida do homem em Rembrandt é um ciclo de fins e recomeços, expressos aqui no túnel do tempo que liga o velho poeta ao grande Estagirita. Rembrandt é o pintor do mistério da alma, de ambivalência terrestre e aquática. Vê-se aqui então o processo de descongelamento, de solvência do negrume saturnino expresso nos trajes de Aristóteles. Aristóteles se descongela, se reconstrói, reavalia-se no tempo. Prepara-se assim para morrer: só a morte deve trazer-lhe a última cristalização, o endurecimento definitivo das feições. Mas a alma deve ser purificada em toda sua aquosidade. O trabalho do filósofo é, portanto, o da infindável reconstrução anímica na antessala da morte, renunciando aos prêmios do mundo e às próprias convicções cristalizadas... 

Vive a reconstrução dos que muito sabem dos séculos e dos milênios, mas que sempre aprendem a respeito dos dias, da eterna atualidade da existência. O poeta, perpetuador da sabedoria diária, da sabedoria das narrativas possíveis, é o eterno professor do presente — eternamente jovem. Aprende-se na arte a reconstrução de nosso ser, a reconfiguração de nossas formas interiores, o desembrutecer das nossas certezas abstratas, atropeladas pela marcha do tempo. É no trânsito entre os níveis discursivos que o Estagirita se torna artista, artista de si. Não pela fabricação de esculturas, mas pela absorção e pelo aprendizado da eterna sabedoria do momento, do eterno destronar da própria majestade. Vê-se aí o verdadeiro propósito da arte da erudição: solve et coagula.

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