sábado, 3 de agosto de 2024

A tecnognose e o triunfo da natureza sobre o homem



Out, out, brief candle!
Life’s but a walking shadow, a poor player
That struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more; it is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.

Macbeth.

A tecnognose, termo cunhado por Hermínio Fontes em seu livro Experimentum Humanum, é um tema amplamente popularizado e pouco entendido entre os ilustres membros da nova intelectualidade brasileira. O termo consiste na combinação de duas palavras superficialmente antagônicas, já que a concepção de técnica em sentido tradicional seria radicalmente antignóstica, consistindo essencialmente num recurso que visa o auxílio à vida humana por meio da  intervenção no mundo material. Todavia, a combinação das palavras aponta muito mais para a fragilidade do entendimento da tecnologia como algo controlável dentro de uma sociedade secularizada, já que seus limites excederam há muito o interesse de concórdia com a natureza, ou mesmo o de manipulação exclusiva do inorgânico pelo orgânico. A tecnologia que poderia ser tida como algo benéfico, controlado, que visa o auxílio da vida do homem é algo muito distante da perspectiva que a engenharia biológica promoveu desde o século XIX, por exemplo. Tornando sua influência algo cada vez mais intoxicante, a tecnologia passou a contemplar os interesses gnosticizantes da obtenção de um conhecimento salvífico por meio da imanência, como na obtenção do moto perpétuo, projeto que tem seu ápice na corrida atômica, assim como por meio dos esforços transhumanistas de forma geral.

O contexto em que a filosofia da tecnologia nasce é o de um mundo pós-revolução industrial, que investiga as minúcias na ruptura entre a visão clássica da natureza, natura naturans, a natureza ativa que delineia os propósitos divinos, e a visão de natura naturata, uma natureza estratificada, entendida como tudo aquilo que simplesmente é. Nesse contexto, subproduto do projeto iluminista de mecanização do homem, entende-se a natureza como uma matéria-prima que deve ter como agente principal os esforços prometeicos do homem, desligada então de seu thelos. Surgem nesse contexto teorias como a antropologia tecnológica de Ernst Kapp, uma antropologia baseada na ideia de que todo artefado tecnológico já criado pelo homem se trataria na verdade de uma projeção antropomórfica, uma projeção de características exclusivamente humanas. Este é um dos esforços teóricos de racionalizar as muitas utopias e paraísos terrestres ansiados por uma humanidade bastarda, exilada, que age à revelia da graça. Kapp defendia que a natureza humana só poderia ser compreendida através dos artefatos técnicos, favorecendo assim a "meta história da tecnologia" como conhecimento quintessencial da auto compreensão do homem, que antes de ter acesso à técnica seria tido como o homo abisconditus, em estado de ocultação, e que enfim se tornaria o homo manifestus, o homem autoconsciente. Não é necessário dizer que essa teoria vai na contramão da meta história do logos, que entende o propósito nos esforços do homem antigo como volições orientadas para uma finalidade religiosa e simbólica no mais das vezes: basta observar a meta história defendida por Mircea Eliade quando o mesmo trata da elaboração de armas criadas primeiro como objetos simbólicos, como é o caso das pedras-de-raio feitas de meteoritos, que funcionavam como símbolos das hierofanias do raio e da queda dos astros, hierofanias estas que simbolizavam, numa concepção tradicional, as intervenções do céu sobre a terra. 

É claro que o desenvolvimento da tecnologia em conjunto com os avanços da eletricidade dá luz a novas bestas: o que se encontrava perdido pela história das ideias, fragmentado, diluído e insinuado, pôde enfim ganhar vida através da obtenção dos recursos necessários. A digitalização da sociedade é um processo irreversível de alquimia quantitativa. O ponto mais importante nesse processo é a gradual e irreversível ascensão da informação a um estatuto ontológico que a aproxima do espírito e a distancia da matéria, tornando assim a obtenção e o controle da informação e dos dados a imanentização do que antes não passava de uma teoria do conhecimento salvífico e de um desejo pela experiência da transcendência. A sublimação da informação se torna assim o ápice de um tipo novo de projeto gnosticizante, um projeto que visa a transcendência da condição humana por meio da maximização sensorial, da obtenção de corpos mais fortes que sirvam de receptáculo para nossas mentes — que passam a ser vistas como análogas a computadores. 

Pode-se entender com profundidade o delírio de controle da natureza em suas representações simbólicas na ficção, que costumam manifestar-se no tropo do tecnognóstico que anseia por um triunfo sobre o feminino. O seio da mãe que Demian quer conquistar na obra homônima de Hermann Hesse e a Eva do Futuro de L'Isle Adam são grandes exemplos dessa correlação entre a adesão de um estilo de vida fisicamente ativo e espiritualmente ocioso com a devoção ao feminino como um símbolo da natureza. A devoção ao mundo material antevê a decadência do espírito do homem.

No conto "O Homem Invisível" do primeiro livro dos contos do Padre Brown, vemos a história de uma Laura que é disputada por dois homens que querem sua mão. Laura evoca a musa de Petrarca, a qual tanto Otto Preminger quanto David Lynch prestam tributo em suas obras. Após dizer-lhes que são homens incapazes de formar uma vida por conta própria, os dois rejeitados fazem adesão de métodos distintos para lhe conquistar: um deles, o vilão que dá nome ao conto, evoca os poderes do Anel de Giges de Platão como possibilidade da ação do absurdo sob a ocultação do ordinário, tornando-se um assassino que age disfarçado de carteiro. O outro é um tecnognóstico de fato, criador de servos robóticos cumpridores de tarefas domésticas. Tem-se aqui dois homens que se inclinam para um sistema solipsista após a rejeição do feminino, tropo que alude ao sentimento de exílio que todo gnóstico nutre em seu peito: é o momento em que, ao se sentirem rejeitados pela atração de Vênus, sentem-se coagidos à realização da própria vontade utópica através da técnica. Por meio do Anel de Giges alguém poderia simplesmente desfrutar dos prazeres do mundo sem nunca ser responsabilizado moralmente. Seria como desaparecer. Por meio de escravos artificiais alguém poderia se eximir indefinidamente do trabalho.

Todas essas implicações são elucidadas pelo mito de Hefesto que é também o mito do coxo: segundo Paul Diel, o coxo é desprovido da capacidade de se firmar por conta de sua deficiência, ilustrando assim a condição de alguém que não consegue o firmamento da própria alma. Pode se tornar alguém ressentido, insidioso e propenso à vingança por meio de jogos solipsistas e de um delírio demiúrgico. Hefesto, através de sua teia, captura sua esposa Afrodite (com quem nutre essa relação de devoção à natureza e ao feminino, sendo ela a própria Vênus) enquanto ela o trai com Ares, o deus da guerra, a manifestação da vontade marcial. Esta dinâmica entre os três deuses, os deuses que simbolizam atração (Vênus), repulsão (Marte), e a técnica (Hefesto), representa o ciclo inquebrável do qual a técnica se vê vítima quando não utilizada como uma ferramenta dos propósitos divinos. 

Quando a técnica incorre no delírio demiúrgico, toma a forma da rede de Vulcanus, a forma dessa teia que captura os amantes que representam a um só tempo sua maior obsessão e sua fonte de desgraça; quando utilizada como acessório divino, dá a luz a Palas Atena, aceitando humildemente seu papel enquanto apoio da inteligência e da vontade divina, abrindo então a cabeça de Zeus para que a deusa da pólis surja. Todos os afetos tecnognósticos fazem parte dessa rede de Vulcanus. A experiência digital, cada vez mais solipsista, ilude e manipula através dos afetos de atração e repulsão, elevando os que são digitalmente aclamados e soterrando os que de alguma forma se veem vítimas do algoritmo, da comunidade ou de qualquer conjunto de dados que atue insidiosamente por trás da tela. 

Os esforços prometeicos de expandir a inteligência humana, dum ponto de vista mitológico, são acompanhados pela punição dada por Zeus na criação da figura feminina, a figura de Pandora, como um outro símbolo do mundo material e de suas paixões. A inteligência solipsista levada ao extremo evoca o aspecto nefasto de Prometeu: o homem se torna cada vez mais solitário, cada vez mais obcecado com jogos particulares, com a pluripotência sensorial, com a experiência digital, experiência que é ao mesmo tempo catártica aos sentidos e carcereira do espírito. Levada ao extremo, a tecnognose culmina no propósito de findar os esforços do homem na busca pela perfeição, pelo amor, pelo fim da luta, do trabalho e da responsabilidade individual, diluindo a experiência ao ponto de anular as barreiras entre o masculino e o feminino. Isto é algo plenamente visível nos desenvolvimentos transhumanistas tanto do nosso cotidiano quanto na ficção, como é o caso de personagens como Motoko Kusanagi, um ciborgue de traços andróginos que funciona simultaneamente como soldado perfeito e como objeto de desejo. 

O tropo do fim da história, um outro objetivo da tecnognose, foi também brilhantemente retratado na ficção. É um tropo que consiste na busca do homem pelo fim de todo o sofrimento humano através da unificação da imagem do mundo, transformando-o cada vez mais num parque de diversões homogêneo que possibilita simulacros de experiências históricas através da "gamificação" da experiência moderna. Vemos o retrato dessa realidade em Gankutsuou, uma adaptação animada do Conde de Monte Cristo. Lá, em sua releitura futurística dos eventos descritos por Dumas, há a ilustração do ímpeto humano por reconstruir espacial e sensorialmente uma miríade de cenários históricos a fim de burlar a percepção de avanço dos tempos. A imagem de um carnaval de Veneza hospedado na lua, como vista nos primeiros episódios, é ilustrativa o suficiente do que de fato há por trás da ascensão da informação e da digitalização irrefletida da experiência: a prisão sublunar no eterno carnaval.

Quando a informação é cultuada como soberana, vemo-nos vítimas do reino da quantidade. Quando presos no reino da quantidade, estamos também presos na rede de Vulcanus. Enquanto perseguirmos a imagem do eterno feminino, estaremos presos ao que pudermos oferecer enquanto falsidade e mitologia pessoal. Seremos forçados ao aperfeiçoamento irracional do corpo, dos sentidos, de nossas capacidades e da nossa imagem, ao passo que nossa experiência espiritual se tornará cada vez mais evanescente. Quanto mais a quantidade é venerada, mais somos vítimas do azul das telas, dessa ilusão de uma experiência universal e libertadora que é essencialmente contextual e aprisionadora, tal como o mundo sublunar. Quanto mais atados à rede de Hefesto, mais nos vemos sobrepujados pelas nossas paixões e pela natureza em fúria e desordem. O destino do homem afogado nos prazeres da tecnognose é viver a ilusão do triunfo sobre a natureza, ignorante de sua trágica derrota sob os pés da desalmada Hera.

A tecnognose e o triunfo da natureza sobre o homem

Out, out, brief candle! Life’s but a walking shadow, a poor player That struts and frets his hour upon the stage, And then is heard no more;...