De que fala o filme "O Espelho" de Andrei Tarkovsky? Seria um delírio autoindulgente? Ou uma terapia poética? Talvez uma confissão dos pecados do russo enquanto homem e poeta? Ou uma junção disso tudo? A resposta parece tender para a última hipótese, muito pelo filme do russo consistir num exercício de meditação introspectiva irônica, nos termos do Northrop Frye, que almeja a contemplação dos processos desagregadores que fragmentam a alma do diretor, mas que fazem sua arte. A narrativa irônica tem como característica central não apenas a sub capacitação de seus personagens em detrimento de uma situação narrativa, mas também a profunda incompreensão dos mesmos no que diz respeito à própria interioridade. O herói irônico não entende a própria alma.
Utilizando-se do Espelho como um símbolo universal para a alma humana, o cineasta incumbe-se da tarefa de reconciliar seu mito pessoal (microcosmo) com o mito macrocósmico de seu horizonte de consciência, mito este que toma as feições pálidas e austeras da mãe Rússia em todos os seus desdobramentos no contexto da primeira metade do século XX.
A mãe do cineasta, personagem central do mito introspectivo do poeta, é a ponte que liga os dois mundos – o mito do poeta e o mito da pátria, atuando tanto como o símbolo que melhor descreve sua alma, lhe definindo os contornos substanciais, assim como simboliza a esplendorosa Mãe Rússia. Operária de prensas móveis, o esprit de corps que evoca faz parte do mito russo em amplo sentido: o imaginário das planícies, a horizontalidade extrema da espiritualidade russa, a caminhada pela estepe, as chamas da revolução que emergem da passionalidade dos povos – chamas essas que nunca alcançam de fato a transcendentalidade ou a teofania, como se queixa o narrador quando as compara a uma pálida impressão das chamas angelicais de Moisés. A presença soberana da mãe do diretor e poeta é o mito mais importante do filme, já que é nela que tanto as potências simbolizantes quanto a expressividade dos afetos se manifesta. A alma é a silhueta do homem.
Disso se segue a tipologia antitranscendental e numinosa da alma do russo, que é a de todo o filme: em determinado ponto as elucubrações do cineasta sobre o cristianismo revelam toda sua condição espiritual. Diz algo sobre terem deixado o mundo cristão para serem cristãos – referindo-se aqui ao povo russo e à grande cisma. Odeia Dostoiévski e todos os avanços que o literato 'faz' em direção a sua ex-mulher. Odeia a reverência a Dostoiévski, o mais aclamado dos autores russos, por causa de sua flagrante atitude crítica ao espírito russo, ao mesmo tempo em que ama sua pátria e se sente mais digno de representá-la. Batiza o filho de Ignat num delírio solar e masculino, mas é na elevação do corpo aquático de sua mãe que vê redenção. Vê-se como emasculado poeta que é prescindível por soldados e forasteiros. Vê sua pátria com carinho e pesar; pesar por conseguir amá-la e contemplá-la em imensa desproporção à sua capacidade de irradiar, moldar e orgulhá-la. Vê o fogo como um elemento destrutivo, como parte do imaginário bélico. Nunca deixa de ser um pobre menino do interior.
É nessa insuficiência solar que as imagens do filme fazem sentido. Existe uma cosmogonia elementar nas imagens flagradas por Tarkovsky: o fogo destrói as imagens no 'tempo' (em cores), ao passo que sua 'eternidade' parece ser abissal e aquosa (em preto e branco). A terra é simbolizada pela planície da marcha soviética; o ar surge de forma muito rarefeita nos últimos suspiros do poeta, simbolizado pelo pássaro. Se dum ponto de vista tradicional existe uma hierarquia clara entre os elementos que simbolizam a irradiação e a lei e os elementos que simbolizam a submissão (ar, fogo, água e terra, nesta ordem), vê-se diferente na alma do russo: é na Sofia, no Das Ewig-Weibliche, na força criativa abissal do Pégaso e das Musas – a pátria é sua musa – que a "eternidade" é cristalizada. Tarkovsky crê no feminino sobre o masculino porque ama o feminino e teme o masculino. Ama as artes e despreza a razão. É a vitória do eros sobre o logos, da alma sobre o espírito.
No fim de sua confissão, termina por admitir derrota frente a Dostoiévski. Cai de cama sem um único sintoma físico. Cai de cama ao olhar pro espelho. Vê-se como um indigente das coisas do espírito. Recorre à solução alquímica: Igne natura renovatur integra, mas menos por ser um devoto de INRI do que por ser devoto de Dante e de sua descida aos infernos – o filme admite sua crise rumo ao bosque sombrio nos últimos segundos. Crê nos ciclos poéticos como os pagãos creram nos ciclos das estações, como um eterno processo dialético – agora cristalizado em sua obra – de fins e recomeços, de morte e renascimento. Ao se permitir morrer na tela, admite-se por fim como um desses artistas que acharam no cinema um recurso último para a escandalosa confissão megalomaníaca dos pecados e das perversões como matéria-prima de que são feitos seus sonhos.