terça-feira, 2 de abril de 2024

Heróis lunares


A ideia de um “herói lunar” pode soar estranha e até contraintuitiva à primeira vista, mas fica fácil de se argumentar em favor de um determinado tipo se tomarmos como ponto de partida uma base sólida e fundamentada na mitologia e nos clássicos. Falo que essa ideia pode parecer contraintuitiva pelo mero fato de que homens, em essência, são representados pelo Sol, e mulheres pela Lua. Assim sendo, devemos fundamentar um pouco de nossa argumentação em favor daquilo que poderíamos tomar como homens lunares, ou homens femininos. Uma vez definido o homem, falaremos do herói.

A lua enquanto objeto simbólico está ligada aos ciclos biológicos e a tudo aquilo que é do reino do vir-a-ser: as transformações biológicas, as mudanças de tamanho, forma e natureza elementar. Liga-se então ao feminino e à natureza em sua contínua transição de ciclos e paixões, qualidades constitutivas daquilo que conhecemos na tradição como mundo sublunar e mundo supralunar, sendo este relativo ao que supera o conhecido, o circunscrito, a lua (daí a expressão ‘lunático’), e sendo aquele a realidade dominada e subjugada pelos ciclos da matéria. Creio que seja fácil de ver onde quero chegar com isso: somos perfeitamente capazes de elencar o caráter intrínseco dos símbolos narrativos, tanto de sujeitos como de predicados. 

Seria um erro elencar um personagem como Hamlet ou Odisseu, por exemplo, símbolos de aspectos máximos da universalidade humana (o segundo sendo o mais humano de todos os heróis gregos) como personagens lunares, ainda que exerçam certos aspectos dessa qualidade. Precisamos proceder com cuidado nessas definições. O que retém a unidade sintética é o próprio símbolo, ou seja, a própria lua: os exemplos respectivos que melhor a caracterizam costumam ser felizes encontros entre situações e estados anímicos.

Agora vamos ao que interessa: que são os heróis lunares? Homens tensionados e movidos pelas paixões e por um sentimento lúgubre da realidade, cujos arcos tendem geralmente ou à redenção pessoal, ou à tragédia. É também uma qualidade de muita importância para o tipo a capacidade de introspecção e do bom juízo. Se a lua é o elemento feminino universal por excelência, é dela que se derivam as qualidades mais intuitivas e o bom foresight perante a realidade concreta. O herói lunar tem uma grande compreensão do mundo material, da qual se utiliza para o bom exercício da razão prática. Quando desgovernado, costuma tender a revoluções e a uma burocratização típica dos maus líderes. Exerce muito melhor seu papel enquanto filósofo e conselheiro. 

As características lunares são muito próprias dos ninjas, por exemplo, a casta burocrática e da espionagem do Japão feudal. Consolidam a figura do herói silencioso. O mesmo caberia para o dilema do Batman enquanto figura noturna. Os xátrias ideais de Platão na República seriam guerreiros análogos a cães de boa raça: filósofos por natureza, por saberem diferenciar, ou seja, distinguir o bem e o mal, a fidelidade e a infidelidade, exercem o papel de guardas perfeitos, guardas lunares  as sentinelas são um exemplo dessa qualidade noturna. Talvez uma boa dicotomia de conceitos elucidativos seja o par formado por certeza e dúvida - o herói solar é e não poderia não ser, enquanto que o herói lunar busca e por isso precisa ver. Um deve se domar, ao passo que outro precisa aprender a se afirmar em termos espirituais? deve empreender uma busca existencial por seu papel no mundo.

O sol é expansão indefinida enquanto a lua é perfeitamente circunscrita. É por isso que a fé perfeita de Maria e a Verdade encarnada pelo Cristo são exemplos supremos da Lua e do Sol em suas acepções mais universais e inesgotáveis, na medida em que a fé perfeita é o exemplo máximo da devoção ao Sol (Deus) e o amor infinito do Cristo é a própria encarnação daquilo que é.

Talvez o exemplo mais adequado em termos mitológicos de um herói lunar no mundo antigo seja Orfeu, um semideus de talento musical e encantatório notáveis traços notórios de tudo aquilo que é lunar em suas características mais oníricas e ilusórias  que se dirige ao submundo na tentativa de resgatar sua amada, confiante em suas habilidades universais de sedução e de encantamento. Orfeu é por definição o desbravador dos mistérios ctônicos, subterrâneos, na esperança de que suas ações possam mover montanhas: flectere si nequeo superos acheronta moveboHabilidoso e de propósito fraco, introspectivo e iludido, como um típico homem lunar, Orfeu não dá saltos de fé: seu papel não é o de liderar, mas de aconselhar, de revelar as verdades superiores. Deve obedecer aos deuses para que sua identidade finalmente se esclareça.

A história de Orfeu ilustra muito bem ambos aspectos narrativos do herói lunar: tanto o da tragédia pessoal, ao ser despedaçado pelas Bacantes, numa exortação simbólica de seu desespero por se libertar do mundo material, quanto o da redenção pessoal no exercício de seu papel oracular. A música funciona como uma exortação de sua compreensão intuitiva do mundo material da ótica da eternidade.

Para alongar um pouco a reflexão e fornecer mais perspectivas, alguns exemplos da cultura pop: Light Yagami é um perfeito exemplo de um encontro entre a mentalidade tipicamente lunar do povo japonês — povo ligado à revolta dos xátrias e à própria natureza enquanto objeto de fascínio — com um conflito psicológico de escala global. Kira vs. L se caracteriza como um conflito entre personagens lunares em orientações distintas, mas semelhantes: é o conflito dos burocratas contra os tecnocratas. A própria ideia do nome "Kira" representa uma projeção, uma sombra na parede que simula a presença de um Deus. Além do nome do próprio Yagami ser de fato escrito com o kanji de lua (月). A orientação trágica nessa história é evidente, já que a lua seria aqui o próprio símbolo da busca pelo aprisionamento do mundo em um simulacro da ordem.

Outro exemplo elucidativo é o da tensão entre a lua e o sol na dinâmica de Yang Wenli e Reinhard von Lohengramm, este sendo o leão napolêonico conquistador enquanto aquele exerce a função de historiador, filósofo e exegeta por excelência de toda a história, desejando a todo o tempo, acordar do pesadelo da história, parafraseando o Stephen Dedalus de James Joyce, outro herói lunar. 

Em outra acepção, é possível localizá-lo em jornadas de redenção pessoal — ou na jornada de formação, num bildungsroman. O certo é que, em se tratando de heróis lunares, os dilemas do vir-a-ser e o exercício das tarefas privadas e espirituais importam mais que a impetuosidade desgovernada do espírito faustiano. Ao homem lunar o zelo, a sabedoria e a razão prática importam mais para o exercício pleno de seu papel cósmico do que aquilo que é ofertado pelo destino ávido e ordinário que aguarda os recusantes do papel que lhes foi reservado na hierarquia das coisas de Deus.

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