Nigredo é uma fase do processo de transmutação dos metais em ouro na alquimia: a fase negra. Tal ideia remonta a um sem fim de ritos iniciáticos que dizem respeito à “morte” do iniciado, a um movimento de queda, estranhamento e alienação, que antecipa o momento de purificação branca, algo como o equivalente à ressurreição. Tal processo pode também ser comparado ao que se conhece como “Noite de Saturno”, um momento em que a matéria-prima alquímica é submetida à putrefação, ao caos e à desordem, até mesmo à loucura. É o que se entende como “morrer para o mundo”. Um dos motes narrativos mais explorados na história do cinema para a representação deste estado é o da Noite, como paisagem amorfa predominante e núcleo de possibilidades indefinidas. É na contemplação da vastidão das aparências do mundo moderno pela madrugada que o homem se encontra com o reino dos pesadelos.
É certo que a descrição do nigredo em termos modernos é muito diferente do que era pretendido pela tradição hermética. Falamos aqui da retirada do homem de seu estado de inércia para que seja submetido a uma sequência desgovernada de transformações, e não dos pressupostos de evolução espiritual dos antigos. No Mundo Moderno chamamos tal processo de Engenharia Social, que transforma o homem num experimento, cujo fim é o cumprimento de certas agendas, como a sublimação da Revolução Sexual à condição de “realidade suprema.” Uma das obras que melhor expõem este tropo é o Eyes Wide Shut de Stanley Kubrick.
Existe um processo de transmutação explícito no filme, iniciado no momento em que a serpente alquímica, Alice, projeta seu universo supralunar sobre Bill, seu marido, um homem que não possui valor intrínseco e nenhum resquício de consciência de suas circunstâncias. Bill é um bom burguês, um médico bem pago e satisfeito com as regalias e pequenos prêmios que a vida lhe ofertou, sendo o maior destes sua esposa. É essa condição de ingenuidade e satisfação material plena que o torna um paciente tão propício às transformações da engenharia social. Bill e Alice, vividos por Tom Cruise e Nicole Kidman, são o protótipo ideal de um “casal perfeito”. É no rompimento das crenças dessa utopia que ambos os personagens vão exercer seus papéis na “grande obra.” Sua substância deve ser alterada e moldada para se submeter à magnum opus da revolução sexual, que suplanta o masculino pelo feminino. O mundo obscuro de De Olhos Bem Fechados e a consciência erótica de Alice estão diretamente ligados, sendo um a projeção do outro. No momento em que Alice projeta seu subconsciente desgovernado em Bill através da exposição de seu erotismo feérico latente, o processo alquímico se inicia, separando-o, dividindo-o, alienando-o de si e da unidade da família, lançando-o por fim no precipício da noite.
O que se segue a partir daí na jornada de Bill é um processo de nigredo, mas nos termos da Engenharia Social. Se a unidade for dividida, haverá uma progressão dialética natural de retorno à unidade, mas uma unidade então adulterada (e satanizada, nos termos postos por Guénon quando se refere à inversão simbólica). A nomenclatura da Engenharia Social substitui então o nigredo por freezing, o isolamento do indivíduo, que ruma ao unfreezing, sua falsa purificação. Bill passa então do processo negro ao branco, sendo então "purificado" e "reintegrado" à unidade do lar pelo perdão de Alice, submetendo-se assim à realidade da revolução sexual, cujo prêmio no “fim do arco-íris”, o pote de ouro, é o do privilégio sexual pela "posse" do feminino. É também esse o motivo pelo qual os símbolos de fertilidade são abundantes no filme: a romã, o carrinho de neném e as inversões simbólicas natalinas, que transformam o casamento num jardim dos prazeres. O que se afigurava então como símbolo da sagrada família e da natividade, da encarnação do logos e do sentido da história, regride a um estado decaído de uma realidade pagã e alquímica, que parece se afigurar como a “realidade suprema” do mundo moderno.
O espírito “natalino” anseia então pelo retorno a um tempo em que as mulheres perdiam a virgindade para então se deitarem com os homens que “realmente queriam”, parafraseando Sandor Svavost, o húngaro que seduz Alice no começo do filme. O mundo moderno anseia pelo retorno à Era de Ouro. Este é o mundo romano das saturnálias, o festival que coincide temporalmente com a celebração cristã do Natal, um festival de inverno de Saturno, da colheita iminente na primavera e de Dionísio.
Sandor cita o poeta Ovídio para Alice quando fala de sua Ars Amatoria, falando-lhe de toda diversão incessante que o poeta teve — a despeito de seu fim trágico, quando exilado no Ponto. Este momento marca o início da iniciação de Alice às possibilidades hedônicas do mundo moderno. Mitológico em sua natureza profunda, o mundo moderno é incapaz de explicar a si em seus próprios termos. A explicação de sua natureza está em seus referentes pagãos e nos mitos antigos, aos quais prestam culto a psicanálise, a ciência moderna, as heresias vigentes e nosso próprio modo de agir e ser. Vive-se com o intuito de emular o voluntarismo dos deuses e de dominar o próximo.
Nesse sentido, as 24 horas da jornada narrativa de Bill numa noite natalina se passam num “eterno carnaval” saturnino em última análise. Nisto também se explica a dialética entre sonho e realidade, que se trata na verdade de uma dissonância cognitiva que bifurca a consciência do homem moderno para não ser mais capaz de enxergar a verdade, mas somente uma dialética de opostos que devem enfim ser sintetizados. Temos então a inversão simbólica da modernidade: uma síntese de elementos dissonantes que visa erigir uma ordem biônica. Eis o Casamento do Céu e do Inferno, uma perversão alquímica suprema do que deveria ser a união entre o Céu e a Terra: forças mortalmente antagônicas devem ser sintetizadas com o fim de intoxicar a verdade com o veneno da mentira. Esse é o sentido profundo da corrupção do casamento, sublimado na inversão completa dos papéis. Nisto entra também a inversão do rito litúrgico romeno da missa satânica que abre o ritual que Bill testemunha: o sacerdote maligno, que em muito lembra o Apolônio de Soleviev, o papa do Anticristo, incensa as prostitutas que servem, em sentido último, como alternativas de sacrifício à Sagrada Eucaristia. Cumprem o mesmo papel das Mênades de Dionísio.
O propósito é claro: o sacrifício de Cristo deve ser suplantado pela ideologia do Anticristo, substituindo o Cordeiro de Deus por sacrifícios humanos das castas inferiores, as quais, no decorrer filme, provam-se como únicas retentoras de resquícios morais e de algum senso de sacrifício genuíno, como Mandy, que é oferecida em sacrifício no lugar de Bill.
Existem muitos destinos insinuados ou simplesmente ocultos no filme, mas a clareza diegética não se faz necessária aqui, já que é da natureza poética desse filme a duplicidade, a mercurialidade, a indução a um estado de espírito tal que imponha à nossa consciência a mesma bifurcação por qual passa Bill. Os jogos dúplices são intermináveis, tendo o filme como provável chave hermenêutica o momento em que Ziegler — um membro do culto que é também amigo do casal — diz a Bill que nunca houve uma “segunda senha” de admissão. Alienado demais para notar o ato falho, Bill não percebe o sentido simbólico da situação dramática: que não existem duas histórias a serem contadas, assim como não existem duas verdades. Só o cruel encontro com a verdade através de sua exposição à morte poderia salvar sua alma — como quando olha diretamente nos olhos do cadáver de Mandy ao descobrir o que aconteceu.
Da primeira à segunda metade do filme, dividido exatamente ao meio pela cena do ritual satânico carnavalesco, os caminhos de Bill expressam a dualidade em sua consciência adulterada: de vítima brutalizada por imagens mentais inquietantes (pela hipótese do adultério de Alice), que caminha a esmo pela noite em busca de respostas, a matéria-prima alquímica se torna mais e mais agravada pela culpa, que atinge seu nadir no sacrifício de uma mulher “inocente” que morre pela redenção de seus erros perante um tribunal satânico. A consciência de Bill, já bifurcada pelo conflito com a realidade anímica de sua esposa, é forçada então a buscar a unidade pela responsabilidade de seus atos, voltando ao lar e se “confessando” para sua esposa, selando assim um pacto kármico (e sanguinolento) com o culto diabólico, ao se submeter tanto à “realidade suprema” projetada pela deificação imanente da sexualidade da mulher moderna, vivificada pelo corpo e pelos desejos de Alice, quanto da revolução sexual como todo e da inversão dos papéis matrimoniais.
Isto é muito bem representado pelas insinuações do que parece ser uma luz mística externa ao apartamento do casal (e a quase toda cena intramuros do filme), que reflete os recônditos do subconsciente lunar de sua esposa, buscando como fim último a subversão completa dos papéis do casal e a consolidação dessa alquimia sexual. É consumada enfim a falsa purificação. Entendendo-se de novo como parte de uma unidade sacramental, Bill se vê submetido, desta vez, às leis implacáveis da revolução sexual, que transformam o casamento numa busca pelo “ouro” da liberdade sexual. As últimas palavras do filme dizem que eles devem "foder" antes de qualquer coisa. O prazer sexual se torna assim o thelos do casamento, seu sentido último. Isto também ilustra a vitória da religião global sobre o indivíduo, uma vitória do mundo moderno sobre a tradição e sobre as essências. É a ação insidiosa do mundo sobre a família, que a invade e a transforma em seu núcleo, na imagem e espelho de uma sociedade corrompida.
É importante acrescentar, por fim, dois pontos do simbolismo latente no epitáfio de Kubrick: o primeiro é o arco-íris que leva ao pote de ouro, mais um simbolismo inequívoco da alquimia. São as 7 cores que representam os estados do ser que vivificam a trajetória rumo ao êxito da Grande Obra. Existe também um simbolismo crucial nas máscaras do Carnaval de Veneza usadas pelos participantes do culto: servem como chave “mágica” que materialmente submete seus participantes à realidade do “Eterno Carnaval” nos termos de Guénon — a realidade da inversão simbólica completa, da inversão das castas e de todas as essências.
A magnum opus de Kubrick é a tragédia carnavalesca por excelência, mas ela vai além: trata-se também de uma denúncia, de um clamor por justiça. Trata-se de uma denúncia quanto à realidade da casta dominante do mundo moderno, a plutocracia, afundada no abismo dos vayshás. Esta é uma realidade cuja fundamentação última é a da religião da imanência, da estratificação e da petrificação da natureza humana. Afundados no abismo, os plutocratas transformam o homem numa mercadoria, numa estátua, num artigo de luxo. Transformam a família moderna no anátema da sagrada família. Transformam a vida do homem numa prisão, em suma. Numa prisão de escravos de Dionísio, de servos bestializados da revolução sexual, de esfomeados e pedintes que vendem a própria primogenitura por uma única noite no jardim das delícias. É a realidade abissal dos que estão confinados na religião satânica do anticristo.