segunda-feira, 1 de abril de 2024

A Engenharia Social em Eyes Wide Shut

Nigredo, escuro em latim, é uma fase do processo de transmutação dos metais em ouro na alquimia: a fase negra. Tal ideia remonta um sem fim de ritos iniciáticos que dizem respeito à “morte” do iniciado, a um movimento de queda, estranhamento e alienação que antecipa o momento de purificação branca, algo como o equivalente à ressurreição. Tal processo pode também ser comparado ao que se conhece como “Noite de Saturno”, um momento em que a matéria-prima alquímica é submetida à putrefação, ao caos e à desordem, até mesmo à loucura. É o que se entende como “morrer para o mundo”. Um dos motes narrativos mais explorados na história do cinema para a representação deste estado é o da Noite, como paisagem amorfa predominante e núcleo de possibilidades indefinidas. Na contemplação da vastidão de aparências do mundo moderno pelo vácuo da madrugada, o homem se encontra com o reino dos pesadelos.
É claro que a descrição de tal processo, isto é, o da retirada do homem de seu estado de inércia para ser submetido a uma sequência desgovernada de transformações tem um sentido completamente distinto das intenções mais nobres da tradição hermética. No Mundo Moderno, chamamos tal processo de Engenharia Social, que transforma o homem num experimento, cujo fim é o cumprimento de certas agendas, como a sublimação da Revolução Sexual como “Realidade Suprema.” Uma das obras que melhor expõem este tropo é “De Olhos Bem Fechados” de Stanley Kubrick.
Existe um processo alquímico explícito no filme, iniciado no momento em que a serpente feminina, Alice, projeta seu universo supralunar sobre Bill, seu marido, um homem que não possui valor intrínseco e nenhum resquício de consciência de suas circunstâncias. Bill é um bom burguês, um médico bem pago e satisfeito com as regalias e pequenos prêmios que a vida lhe ofertou, sendo o maior destes sua esposa. É essa condição de ingenuidade e satisfação material plena que o torna um paciente tão sedutor para as transformações da engenharia social. Bill e Alice, vividos por Tom Cruise e Nicole Kidman, são o protótipo ideal de um “casal perfeito”. É no rompimento das crenças dessa utopia que ambos os personagens vão exercer seus papéis na “grande obra.” Sua substância deve ser alterada e moldada para ser submetida à magnum opus da revolução sexual, que suplanta o masculino pelo feminino. O mundo obscuro de De Olhos Bem Fechados e a consciência erótica de Alice estão diretamente ligados, sendo um a projeção do outro. No momento em que Alice projeta seu subconsciente desgovernado em Bill através de uma exposição do erotismo que jazia dormente em seu espírito, o processo alquímico se inicia, separando-o e dividindo-o de sua unidade familiar, lançando-o por fim no precipício da noite.
O que se segue a partir daí na jornada de Bill é um processo de Nigredo, mas nos termos da Engenharia Social. Se a Unidade for dividida, haverá uma progressão dialética natural de volta à unidade, mas uma unidade então adulterada e satanizada. A nomenclatura da Engenharia Social substitui então o Nigredo por Freezing, isolamento do indivíduo, que ruma ao Unfreezing, a falsa purificação. Bill é submetido então do processo negro ao branco, sendo, por fim, purificado e reintegrado à unidade do lar pelo perdão de Alice, submetendo-se por fim à realidade da revolução sexual, cujo prêmio no “fim do arco-íris”, o pote de ouro, é o do privilégio sexual. É também esse o motivo pelo qual os símbolos de fertilidade são abundantes no filme: A Romã, o carrinho de neném e todos os símbolos natalinos, só que invertidos, satanizados. O que era então símbolo da unidade sagrada do nascimento divino, da encarnação do Logos, regride a um estado decaído de uma realidade alquímica e cosmológica, que é a “Realidade Suprema” do mundo moderno. O espírito “natalino” anseia pelo retorno a uma era em que as mulheres perdiam a virgindade para ir ter com os homens que “realmente queriam.”
Esse é o mundo romano das Saturnálias, parafraseando o húngaro que seduz Alice no começo do filme, que cita o poeta Ovídio com o intuito de transportá-la ao mundo orgiástico pagão dos ancestrais da Europa. Mais tarde no filme, no encontro de Bill com os mistérios da seita satânica, nota-se que o interior da mansão gótica nova yorkina foi transformado num neoclassicismo que preside orgias romanas ecumênicas.
O mundo moderno, mitológico em sua natureza profunda, é incapaz de explicar a si mesmo. A explicação verdadeira para ele está em seus referentes pagãos cosmológicos. Nesse sentido as 24 horas de uma jornada no tempo presente de uma noite natalina se passam, na verdade, num “Eterno Carnaval” saturnino. Nisto também se explica a dialética entre Sonho e Realidade, que se trata na verdade de uma dissonância cognitiva que bifurca a consciência do homem moderno para não ser mais capaz de enxergar a verdade, mas somente uma dialética de opostos que devem enfim concordar e buscar a unidade. Temos então a inversão simbólica da modernidade: uma soma de elementos que intenciona a construção de uma ordem biônica. Eis o Casamento do Céu e do Inferno, uma perversão alquímica suprema do que deveria ser a união entre o Céu e a Terra: forças mortalmente antagônicas devem ser sintetizadas, com o fim de intoxicar a verdade com o veneno da mentira. Esse é o sentido profundo da corrupção do casamento, sublimado na inversão completa dos papéis. Nisto entra também a inversão do rito litúrgico romeno da missa satânica que abre o ritual que Bill testemunha: o sacerdote maligno, que em muito lembra o Apolônio de Soleviev, o papa do Anticristo, incensa as prostitutas que servem, em sentido último, como substitutas sacrificiais da Sagrada Eucaristia.
O propósito é claro: o sacrifício de Jesus Cristo deve ser suplantado pela ideologia do Anticristo, substituindo o Cordeiro de Deus, por fim, por sacrifícios HUMANOS daqueles que são vistos como membros das castas mais baixas, as quais, no decorrer filme, provam-se como únicas retentoras de resquícios morais e de algum senso de sacrifício genuíno, como “Mandy” que é puxada pela mão da “Morte” à direita, em contraste com os caminhos pela via esquerda que Bill passa a percorrer voluntariamente na segunda metade do filme, aludindo aos caminhos da vida e da morte em sentido ESSENCIAL
É provável que todas as prostitutas do filme tenham sido sacrificadas pelo rito satânico (após serem sexualmente consumidas), inclusive “Domino”, a moça grata pelos momentos de compaixão de Bill. Mas a clareza diegética disso não é necessária, pois é da natureza poética desse filme a manutenção de um sentido dúplice, mercurial, que submeta o espectador a um estado de consciência bifurcado similar ao que Bill se vê vítima. Os jogos dúplices são intermináveis, tendo como provável chave hermenêutica o momento em que Ziegler, um membro do culto que é também amigo do casal, diz a Bill que nunca houve uma “segunda senha” de admissão. Bill, alienado demais para notar o ato falho, não percebe o sentido profundo da coisa: que não existem duas histórias a serem contadas, só o cruel encontro com a verdade através de sua exposição à morte poderia salvar sua alma — como quando olha NOS OLHOS do cadáver de Mandy ao descobrir o que aconteceu.
Da primeira à segunda metade do filme, dividido exatamente ao meio pela cena do ritual satânico carnavalesco, os caminhos de Bill expressam a dualidade em sua consciência adulterada: de vítima brutalizada por imagens mentais inquietantes da hipótese do adultério de Alice, caminhando a esmo pela noite em busca de respostas, a matéria-prima alquímica se torna mais e mais agravada pela culpa, que atinge seu Nadir no sacrifício de uma mulher “inocente” que morre pela redenção de seus erros perante o tribunal satânico. A consciência de Bill, já bifurcada pelo conflito com a realidade anímica de sua esposa, é forçada então a buscar a unidade pela responsabilidade de seus atos, voltando ao lar e se “confessando” diante de sua esposa, selando assim um pacto karmático e causal com o culto diabólico ao se submeter à “Realidade Suprema” tanto da mulher moderna, vivificada por Alice, quanto da revolução sexual e da inversão dos papéis matrimoniais.
Isso é muito bem representado pelas insinuações do que parece ser uma luz mística externa ao apartamento do casal, que reflete os recônditos do subconsciente lunar de sua esposa, buscando como fim último a subversão completa dos papéis do casal e a consolidação dessa alquimia sexual. É consumada a falsa purificação. Entendendo-se de novo como parte de uma unidade sacramental, Bill se vê submetido, desta vez, às leis implacáveis da revolução sexual, que transformam o casamento numa busca pelo ouro da liberdade sexual e da irresponsabilidade parental. Ao que tudo indica, o fim do filme aponta para uma FORTE insinuação de que a filha do casal, Helena, está sendo vendida para o culto — e que poderá ser substituída por sucessivas relações sexuais, fonte abundante e “inesgotável” de fertilidade, o que não passa de mero simulacro da sensação de eterno vigor da Era de Ouro. Isso também serve como vitória da igualdade global sobre o indivíduo e o senso hierárquico, que transforma o seio familiar na imagem e espelho de uma sociedade corrompida.
É importante acrescentar, por fim, dois pontos do simbolismo latente no Epitáfio de Kubrick: o primeiro é o arco-íris que leva ao pote de ouro, mais um simbolismo inequívoco da alquimia: as 7 cores que representam os estados do ser que vivificam a trajetória rumo ao êxito da Grande Obra. Existe também um simbolismo crucial nas máscaras do Carnaval de Veneza usadas pelos participantes do culto: servem como chave “mágica” que materialmente submete seus participantes à realidade do “Eterno Carnaval” nos termos de Guénon — a realidade da inversão simbólica completa, da inversão das castas: sacerdotes satânicos bestializados, prostitutas sacrificiais virtuosas. Este é o mundo da Saturnália, assim como é, também, espiritual e psiquicamente, um olhar cristalino e resoluto sobre a realidade das castas dominantes do mundo moderno: a plutocracia, afundada nas águas dos Vayshás, assim como as terras de Veneza. É a imanentização por excelência da realidade abissal dos que foram confinados na religião satânica do Anticristo.

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