sexta-feira, 19 de abril de 2024

O Mito Cosmogônico em Saint Seiya


O mito moderno pode ser descrito como um conflito de forças pela “realidade suprema”, no seguinte sentido: para cada forma absorvida e simbolizada pelo ethos moderno existe uma paixão, um gênero literário, uma forma narrativa subjacente que a orienta e contém em si aquilo que podemos chamar de seu verdadeiro propósito. 

Por trás do que aparenta ser uma heterotopia organizada pela harmonia artística, existe uma luta axiológica pela soberania. Isso pode ser visto nas tragicomédias shakespearanas como Midsummer Night’s Dream, peça na qual o bardo narra os conflitos alquímicos entre o céu e a terra à guisa do caos mitológico, reorganizando o tempo e o espaço das personagens mitológicas em conformidade com o caos qualitativo espaço/temporal que é consequência inelutável do avanço dos tempos. 

Pode-se intuir a mesma forma narrativa nas obras da cultura pop munidas de grande consciência poética e simbólica, como no Sandman de Neil Gaiman e no mito cosmogônico dos Cavaleiros do Zodíaco, no qual podemos desvelar, se observarmos atentamente, a continuidade dos esforços sintetizantes das narrativas cosmogônicas. Trata-se de um mito cosmogônico por ser, em essência, uma narrativa que descreve as metamorfoses cósmicas do mundo moderno: as armaduras simbolizam as formas da nova casta dos heróis, transformando o homem do ferro em guerreiro santo através de uma alquimia microcósmica, e a nova disposição dos velhos deuses simboliza a pulsão abissal macrocósmica como o grande monstro a ser vencido no mundo moderno.

Consoante à ideologia alquímica está o ferreiro, o garimpeiro e todo devoto do minério e da forja desde o início dos tempos. Sua primeira intuição do sagrado que habita os metais deu-se ao ver as estrelas caírem do céu e trazerem sua graça para perto. Com muita reverência perante o milagre que viam, extraíam daquilo que chamamos de meteoritos a matéria-prima necessária para a forja de ferramentas primordialmente simbólicas, como as pedras de raio, que simbolizavam a hierofania ali testemunhada, dando-lhe a forma de um machado de duas lâminas que representava o trovão e a fecundação do deus do céu sobre a mãe terra. 

Eventualmente o ferro adquiriu um papel central nas bases civilizacionais, o que acabou por afastá-lo de suas qualidades sagradas em prol daquilo que é meramente instrumental e profano, mas os vestígios da eternidade não podem ser apagados: subsistem nas histórias, nos símbolos e no mito. 

Na narrativa de Saint Seiya, é precisamente na brilhante combinação entre o sagrado e profano que nascem as armaduras dos cavaleiros, descritas no Hipermito de Kurumada como o casamento alquímico entre o oricalco, metal que é descrito no Timeu de Platão como oriundo da civilização perdida de Atlantis, e o gamânio, metal ficcional de origem estelar, como são as próprias pedras de raio. As armaduras só podem ser reconstruídas com pó de estrelas ou com o sangue de cavaleiros e deuses, dois símbolos macrocósmicos, o segundo referente à imolação de um deus ou de um santo.

Os cavaleiros são quase-santos, ou indivíduos em busca da santidade, como descrito no título original da obra. A armadura simboliza um destino, a vestimenta macrocósmica que orienta o homem em seu microcosmo. 

É como a descrição paulina da fé como uma armadura, uma vestimenta contra as tentações e as vicissitudes ocasionadas pelo mal, assim como é também a armadura de natureza simbólica semelhante àquela do escudo de Aquiles forjado por Hefesto, o ferreiro alquimista, como descrito no canto 18 da Ilíada, que simbolizava o papel de subserviência ao macrocosmo e ao destino da civilização que Aquiles passaria a representar daquele ponto em diante: todo o macrocosmo do mundo grego estava contido no escudo, como um símbolo do vir-a-ser da vontade dos deuses.

 O mesmo pode ser dito das armaduras dos cavaleiros, que carregam em si a simbolização das qualidades a serem aperfeiçoadas em suas trajetórias em busca da santidade. À medida que um cavaleiro aumenta seu cosmo, sua armadura é graduada na hierarquia dos metais: do bronze à prata, da prata ao ouro, do ouro ao metal glorioso das armaduras divinas. 

Mas o mais importante aqui não é propriamente a hierarquia dos metais enquanto matéria, e sim as qualidades que Kurumada centraliza em seu mito através dos cavaleiros de bronze que são escolhidos como os principais protetores de Atena: se prestarmos atenção às constelações que regem esses personagens, perceberemos que todas se tratam de coniunctios, de casamentos alquímicos das qualidades que aspiram ao céu e às estrelas.
O Pégaso simboliza o corpo renascido após a morte do dragão alquímico representado pela Medusa, assim como também a união das qualidades da água e do ar, daquilo que é úmido, cálido e elevado, pois o Pégaso é o gerador mitológico da fonte que inspira as Musas em Hipocrene, além de ser um animal alado: simboliza assim as águas superiores das nuvens que se opõem às águas do abismo, como descreve Guénon. 

O mesmo pode ser dito das constelações de Cisne, Dragão e Fênix, todas criaturas contabilizadas no Le Bestiaire du Christ como animais que simbolizam a Cristo (qualidade solar suprema) de várias maneiras. O estudo aprofundado dessas qualidades valeria por si só um ensaio gigantesco, mas basta dizer, para nossos propósitos, que seja o virtus draconis de Shiryu, a prefiguração do Espírito Santo do Cisne de Hyoga, ou a imortalidade solar do corpo glorioso ressuscitado da Fênix de Ikki, temos aqui dispostas várias representações mais do que claras, somadas a do Pégaso, do processo alquímico que descreve a busca pela santidade: passada a fase do Nigredo, o despedaçamento do corpo material, atinge-se o Albedo, ou seja, a purificação, uma apta descrição da jornada da santidade.
 O mesmo cabe para a constelação de Andrômeda e seu cavaleiro, embora em outra perspectiva mitológica: seu destino é o da devoção incondicional ao sol (Perseu, Fênix e Atena) perante o confronto com o abismo (Ceto).

Além do simbolismo microcósmico das armaduras como uma intuição simbólica dos esforços cosmogônicos de verter a natureza férrea do homem moderno, existe uma aparente tensão macrocósmica na obra que deve ser esclarecida como mais um esforço simbólico da ordem: essa “tensão” se dá na pluralidade simbólica do mito grego junto a uma cosmovisão cristã. 

O que se afigura como tensão nada mais é do que a instrumentalização do mythos grego como um símbolo do logos. O cristianismo se utiliza tanto da filosofia grega quanto do direito romano como ferramentas essenciais em suas bases civilizacionais, nomeando a sabedoria que antecede a revelação como logos spermatikos: é no encontro dessas formas que surge aquilo que se convencionou chamar de civilização ocidental, alicerçada materialmente na arte da construção maçônica e no domínio extremo da técnica dos homens de ferro. 

O mesmo encontro de formas civilizacionais pode ser visto aqui. A poética do Kurumada é orientada por aquilo que chama no Hipermito de “Big Will”. É o que dá forma aos deuses, aos titãs, ao mundo e aos homens. O Big Will, se desvelado mais atentamente, nada mais é do que a força das metamorfoses que atualiza as formas e os símbolos numa constante busca pela representação mais aperfeiçoada da ordem, numa demonstração poética daquilo que Voegelin chama de “salto no ser”: a busca pela enteléquia, a atualização máxima das potências. 

No caso do espírito grego, os conceitos míticos se atualizam, através de uma sucessão de esforços holísticos, na figura de Palas Atena como o símbolo máximo da inteligência. Trata-se do nous divino, do intelecto de Zeus parido pela fenda feita por Hefesto o ferreiro alquimista na cabeça de seu pai, em sua forma transmutada e definitiva, guardada pela égide sagrada e coberta pelo revestimento glorioso. Atena é o centro da pólis, da organização social e símbolo mítico da inteligência e da justiça.

A defesa de Palas Atena no isolamento do Santuário representa a centralização do mundo em torno do corpo místico da verdade. O cumprimento do destino estelar simboliza a reorientação do olhar dos homens de ferro em direção ao céu. O sacrifício de sangue de um cavaleiro para ressuscitar uma armadura representa a purificação do profano e a evolução dos metais. A explosão do cosmo representa o espelhamento da ordem celeste no corpo do homem. Os sacrifícios de Atena representam a devoção ao logos. O mito cosmogônico narra o mundo das vicissitudes da santidade. O retorno dos velhos deuses descreve o mundo moderno como o abismo das paixões. O triunfo sobre essas forças por meio do sacrifício pessoal representa o único retorno que nos cabe: o retorno à verdade, ao sagrado, à limpidez de um olhar tão puro e a um corpo tão leve que nos guie às estrelas.

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