sexta-feira, 5 de setembro de 2025

O Intrincado Simbolismo da Fortuna no Destino da Rainha Hécuba




rex sedet in vertice

caveat ruinam!

nam sub axe legimus

Hecubam reginam.

Carmina Burana: Fortune plango vulnera



"O que foi, será,

O que se fez, se tornará a fazer:

nada há de novo debaixo do sol!"

Eclesiastes 1:9, tradução da Bíblia de Jerusalém


Todo símbolo feminino é, por vocação inata, vitalista. Em uma de suas muitas e brilhantes elucubrações a respeito do Barroco, Eugênio d'Ors, no livro intitulado Lo Barroco, descreve o espírito deste como a humilhação da razão, como um desamparo da estabilidade em favor do dinamismo, como uma vitória da vida sobre a Eternidade. Transmite, enfim, num de seus muitos aforismos, a quintessência do Barroco como expressão morfológica essencial do Eterno Feminino. Tal como na elusiva quadratura do barroco, somos confrontados com um símbolo vitalista na figura da Fortuna, breve e ocasional, sinônimo de fartura e de escassez, musa da vitória e da derrota. Devemos explorar sua difícil natureza através de reflexos, de espelhos culturais; refletidas neles estão as imagens efêmeras da fisionomia de Tique (Τύχη), deusa emergente em tempos escatológicos e quantitativos, nos quais reinam a barbárie e a conquista do mundo; pode-se afirmar isto dos tempos de Alexandre, bem como de nossos tempos. O primeiro espelho cultural a ser analisado é o de Hécuba, soberana da riqueza e da ruína.

A rainha de Tróia — mãe de 50 filhos ou de 19, dependendo da versão do mito — é conhecida como a mater dolorosa do mundo pagão, e é em sua tragédia homônima que testemunhamos o substrato completo de seu sofrimento. No texto de Eurípides, datado de 424 a.C., acompanhamos o trágico destino de Hécuba após a queda de sua pátria, relegada à condição de escrava de Agamênon, rei dos Aqueus. Trata-se Hécuba (Ἑκάβη) de um antropônimo que pode ser interpretado, segundo o Dicionário mítico-etimológico de Junito Brandão, como possível abreviação de (Ἑκάβόλος), junção do radical hekás, "ao longe", com o verbo (βάλλειν), "lançar, arremessar, a que arremessa ao longe, ao seu bel-prazer, à vontade, à farta, a que atinge seu objetivo", raíz etimológica que a liga também a Hécate, sendo esta o feminino de hékatos, epíteto de Apollo. Hécate, deusa lunar obscura, mas de igual poder ao de Apolo e Artémis, preside tanto a prosperidade dos partos e o sustento da juventude quanto a aparição dos fantasmas; é deusa das triplicidades intramundanas e da mágica, cultuada nas encruzilhadas. Hécate representa um aspecto lunar nefasto, a lua das intoxicações e dos delírios; a lua das formas de manipulação do feminino por meio da bruxaria. Isto é muito importante para o entendimento do papel profundo de Hécuba em seu reflexo da imagem da Fortuna.

Se há uma narrativa na qual a rainha da ruína é representada como uma bruxa do inconsciente, como imagem da vingança da mãe terrível do mundo pagão, é na obra do tragedista de Salamina: ao receber a mais devastadora notícia para uma mãe, que é a da morte de dois de seus mais queridos filhos, Polixena e Polidoro, recorre Hécuba à força telúrica de Hécate para a execução de sua vingança. Embora não possa levá-la a Pirro, que por exigência do espírito de seu já falecido pai, Aquiles, havia sacrificado a virgem Polixena para aplacar a ira do Pelida, demonstra astúcia diabólica o suficiente para que despeje seu veneno diretamente no cálice dos reis, o primeiro deles sendo o de Agamênon, seu atual mestre, e o segundo de Polimestor, um rei da Trácia, este o assassino de Polidoro. 

As tragédias de Eurípides são marcadas por um distinto favorecimento do drama humano sobre a dignidade dos deuses. Eurípdes, ao contrário de Sófocles, seu rival, e de Ésquilo, seu antecessor, atacava com muito mais assertividade o espírito de seu tempo, abstraindo a imagem dos deuses até que fosse mais direta a contemplação de suas essências, transpondo a barreira do símbolo até o objeto simbolizado. Em um contexto de formas incertas no tocante à sociedade grega, de um espírito pitoresco na representação das estruturas de sua realidade, é sentida com mais leveza a influência da Moira, representativa do destino cego, inelutável, outrora soberana do teatro. Ao contrário, é na deliberação das ações das personagens de Eurípides que se concentra o drama. O contexto da tragédia de Eurípides é, portanto, o da dessacralização. Temos aqui a oportunidade de examinar a psicologia da Fortuna, refletida e encarnada na vingança de Hécuba — a vingança contra os reis que sentam ao topo da Roda da Fortuna, inconscientes da frugalidade de suas posições. A dolorosa viagem de retorno dos gregos é também o momento de transição das eras. Passados os 10 anos da guerra de Tróia, termina-se um ciclo cósmico; vem o giro da Roda para todos.

No espírito desinibido de Eurípides no que diz respeito ao próprio ethos, somos agraciados com alguns símbolos esclarecedores. Em determinado momento, no comovente luto pela morte de seus filhos — seus maiores tesouros —, chega a dizer a rainha Hécuba que é preferível a habilidade da sofística a qualquer penetração na verdade, pois é por meio dela que os homens manipulam e impõem suas vontades. É nítida a necessidade que sente Hécuba de ter contato com a magia; quer dobrar os joelhos de Agamênon, rei dos aqueus, para que este facilite sua vingança contra o assassino de Polidoro, seu filho que era até então hóspede na Trácia. Esta magia é simbolizada pela sofística, a arte da manipulação. Um dos argumentos de que se utiliza para convencer Agamênon é o do Eros: este está agora com Cassandra, outra das filhas de Hécuba, em sua cama. Quando caiu Tróia, abriu-se da sagrada Íllion um baú de tesouros. Seus espólios, simbolizados pelos filhos de Hécuba, criaram dívidas sagradas, não escritas, dos captores para com seus escravos. Tornou-se a profetisa um ardil do Eros, ferida no coração de Agamênon. Sente que deve zelar por sua reputação e por sua nova concubina, e deixa-se enfeitiçar pelas palavras de Hécuba, que o encara do fundo do abismo com a graveza e com o terror de um monstro do Hades. Logra êxito em sua vingança: cega Polimestor, devoto da Fortuna, condenando-lhe a um exílio do belo e da concupiscência.

Perder seus dois filhos de maneira tão brutal foi um golpe mais pesado que o próprio incêndio de Íllion; ambos, Polixena e Polidoro, simbolizam o conjunto de seus tesouros, a imagem de sua realeza perdida. O prefixo polýs (πολύς) (muitos, numeroso) de ambos os nomes não é arbitrário: Polixena (Πολυξένη) quer dizer "a muito hospitaleira", ao passo que Polidoro (Πολύδωρος) quer dizer "o que traz muitos dons/presentes", ou "o que custa muitos presentes". Polixena é, portanto, em sua infinita dignidade e beleza, a própria imagem do esplendor régio, da realeza receptiva, acolhedora de quaisquer destinos: não fraqueja perante a adaga de Pirro, e com sua castidade mantida até o fim, tem a garganta cortada com os seios à mostra numa das cenas mais arrasadoras da história da literatura. Polidoro, em contrapartida, o caçula de Príamo, fora enviado pelo pai à Trácia, para que ficasse sob os cuidados de Polimestor durante a guerra. Ao seu lado estava grande parte do Tesouro de Íllion. Ao saber da queda do povo de Heitor, não hesita Polimestor (cuja etimologia, Πολυμήστωρ, indica um homem de "muitos planos") em assassinar o jovem herdeiro. Assassinado brutalmente por quem lhe devia hospitalidade, Polidoro carregava consigo a própria materialidade da Fortuna, a prosperidade e governança de seu povo. Juntos, irmã e irmão foram tomados da rainha num único giro da Roda, furtando-lhe o que havia de mais precioso: seu espírito.

Passa Hécuba a reinar nas profundezas do vazio a partir daquele instante. Outrora no topo da Roda, gozando da plenitude de seus tesouros, toma parte na queda vertiginosa não só de seu status social, mas de sua intuição para o sagrado, de sua compreensão da própria estrutura da realidade em sentido último. No momento em que o sagrado é inteiramente maculado, submerge das profundezas do Tártaro a cratofania profana, que assume a vacância do trono: "onde não há rei, o rei é Pan". A queda da Moira é a queda da própria estrutura da realidade grega; a crise da Guerra do Peloponeso, contexto em que a Tragédia de Eurípides foi escrita, é o nec plus ultra da antiguidade clássica. É visível sua decadência final, sua escatologia, que dará lugar a formas dispersas e disruptivas da divindade. É o próprio Eurípides que anuncia a chegada de Dionísio como que em tom de Certidão de óbito da Hélade; Hécuba, "mater dolorosa pagã", simboliza o esvaziamento espiritual que dá lugar à ação da Fortuna, que move os homens do topo à base, do amor ao ódio, da plenitude ao vazio, dinâmica que dá vazão ao ímpeto da vitória total — sob risco iminente de derrota decisiva, aniquilante. É deusa bruta a Fortuna, cega, arbitrária, impiedosa, que presenteia a todos de acordo com suas capacidades de conquista. A Fortuna é uma deusa que valoriza sobremaneira o delírio de grandeza.

Esse delírio de grandeza é corolário das exigências de Tique. A única intuição que resta aos homens descrentes da providência é a da conquista do mundo, do epítome das capacidades, da síntese forçosa de uma ordem biônica... Esta imagem fica clara em Alexanderschlacht, de Albrecht Altdorfer: existe uma síntese que mais soa como um amálgama no testemunho da vitória de Alexandre sobre Dario III. A união dos mundos retratada na pintura chega a se assemelhar a uma espécie de síntese nórdica entre o Niflheim e o Muspelheim, entre o mundo de gelo e o mundo de fogo. Curiosamente, a Batalha de Isso ocorre nas imediações da região da Turquia, região na qual esteve Tróia um dia...




Um copo meio cheio não cumpre os requisitos de libação à Fortuna. Deve-se enchê-lo até que transborde e se esvazie. A lei da Fortuna está ligada aos modos da natureza, às leis do tempo profano, sem analogia com a eternidade; triunfa os que são agraciados pelo amor e pela plenitude, e sucumbem os mortos do Hades. É mais vítima da Fortuna quem perde a intuição para o sagrado, o contato com sua genealogia divina. Todos são vítimas da Fortuna: velut luna statu variabilis. Mas são vítimas da Fortuna enquanto corpos arrastados pelo vendaval, jogados de um lado para o outro; ao espírito, contudo, uma vez que haja intuição para o sagrado e para as verdades superiores — sejam as da Moira ou da Providência —, são reservados os movimentos típicos de uma paixão, em que há uma total entrega à comoção total de nossa condição, comoção reafirmada pelas nossas certezas espirituais, e pelo sofrimento pelo qual passaremos na persistência do ser. Mais se comove quem é mais íntegro de espírito. A isto nos remete o sacrifício de Polixena. Hécuba, que sofre no vazio, tem no peito a síntese do pathos tardio do mundo pagão, aquilo que resta das dores uma vez que entregues aos caprichos da natureza tempestuosa, aos caprichos da Fortuna. O sofrimento ctônico a transforma em bruxa, rainha das profundezas, de maneira semelhante ao momento em que o desejo ilegítimo de Macbeth faz com Três Bruxas — e não Três Graças — entrem em seu caminho: fair is foul and foul is fair.

Já esclarecido o sofrimento da mater dolorosa pagã, deve-se trazer luz, por fim, a um último assunto: por que exige plenitude a Fortuna? A resposta para isso se encontra na psicologia profunda da quantidade e da habilidade. A cegueira para a providência e para os desígnios divinos nos torna cativos de nossas capacidades; seja pela busca da plenitude de si, ou mesmo pela formação de uma identidade, de uma imagem-síntese que sirva de metonímia das virtudes — praticamente condição sine qua non para a sobrevivência de nossos tempos, especialmente em âmbito digital —, tornamo-nos cada vez mais ligados aos tesouros do mundo, ao contato com o belo imediato e com o sensualismo. Este conjunto de tesouros se materializa na figura da Fortuna, a deusa da fragmentação desordenada, da riqueza, do império do múltiplo. Sua imagem não se perfaz por analogia celeste, mas por síntese terrestre: é como a Loteria da Babilônia, uma síntese de forças tirânicas que devora os homens em sua orgulhosa indignidade. Não se pode evitar a própria deformação ao exaltar o profano, a iniquidade, a bruteza e o arbitrário. 

E por trás de toda essa incapacidade de solitude, dos ânimos de tortura, dessa alienação de nossas vocações em favor da conquista da Fortuna, Vulgívaga da Babilônia, existe uma compulsão, um terror intermitente, uma fuga injustificável da morte e do salto de fé. Temos medo de morrer como Polixena por sermos fracos de espírito. Depositamos nossas esperanças na ocasião, na oportunidade, na intensidade do momento, na sedução, na entrega à inteireza de experiência, por sermos demasiado covardes para a jornada rumo aos Grandes Mistérios que começa em nosso espírito.

O Intrincado Simbolismo da Fortuna no Destino da Rainha Hécuba

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