sexta-feira, 25 de julho de 2025

Não Entendo Nada Desse Seu Esplendor


(...)

Toda essa multidão iluminada
anda muito ocupada
para a dor, para o amor,
vai-te embora, Reparata,
que esta cidade te mata!  
 
(...)

eu não entendo nada do esplendor
terrestre dessa gente,
eu sou pedestre, não sou inteligente,
pago pedágio ao chão que Deus botou
ao alcance do pobre obediente.

Santa Reparata deixa Florença, de Bruno Tolentino

 

quinta-feira, 24 de julho de 2025

A Busca Pelo Esplendor e a Verdade Poética em Suzumiya Haruhi

I. A Narrativa do Esplendor


O esplendor não se deixa facilmente definir, tocar, intuir, articular, e muito menos inteligir. É algo que tanto excede a circunferência de nossos sentidos quanto petrifica e extasia nossa arquitetura mental. De certa maneira, é como o sol do meio-dia, em toda sua pluripotencialidade vivificante e incendiária, benfazeja e maléfica. Por si só, poder-se-ia encará-lo como o vislumbre das potências sagradas presentes no cosmo e no sublime visível que irradia da criação, no imanente, pois encarar o conceito de sublime per se, neste caso, sem traçar-lhe as genealogias místicas e ritualísticas cabíveis, seria necessariamente uma alienação romântica de sua significação histórica.

Tentam os intelectuais radicalmente secularizados dar-lhe um nome: chamam-lhe de romantismo, de abismo, de absoluto. Tentam os artistas, por outro lado, sem a pretensão de definí-lo, tomá-lo como o eixo da realidade, o princípio e o fim de todas as coisas, como numa atitude que tende mais à aproximação do que à posse. Nas palavras do professor Orlando Fedeli, teria esta busca como fim a obtenção do "conhecimento do incognoscível", um dos mais cobiçados desideratos românticos. Esta definição é, no entanto, insuficiente.

Pois é na superabundância de insuficiência que rastejam os românticos. Seriam a ausência, a lacuna, o oco, a insatisfação... Tratar-se-iam todos estes termos de descritores mais ou menos eficazes daquele que é de fato o conceito da essência da psicologia romântica. E sua fulgurante e desmedida manifestação, como o brilho ofuscante de uma nova, ou mesmo como a própria essência do já aludido sol do meio-dia — muito semelhante à de um combustus astrológico — também se afigura como parte de sua natureza. Mas dela jamais chega muito perto o romântico, sob o risco de pôr fim à própria busca, sendo a busca ela mesma, a mobilização, a travessia na tempestade, a inquietação e o nervosismo... Em suma, poder-se-ia dizer que, de certa maneira, todos estes descritores, semelhantes enquanto esforços definidores de uma patologia, de uma nervosidade intermitente, ainda que não sirvam de definições exaustivas da ação romântica, indicariam, ao menos, alguns dos contornos da natureza errante e do perigoso flerte com o não-ser tão típicos dessa mentalidade. Se não é a busca incessante o próprio desiderato, seria, pra dizer o mínimo, a expressão mais natural e inalienável da ação romântica.

Se a natureza deste abismo na alma está intimamente ligada ao próprio movimento de queda livre, da atitude do Le Mat do Tarot, percebe-se o seguinte: que há um desvio da psicologia romântica em relação aos verdadeiros caminhos da graça, que presumem a incorporação ritualística para a purificação eventual do ser. Presumem então que o abismo da alma se torne o límpido reflexo da imagem de Deus no céu. Sendo o romantismo um caso especial de alienação, é natural constatar que a psicologia romântica predica, como uma de suas possibilidades, a ação de um criador que não vê analogia na própria criação, ou de um parente que não vê analogia com seus próprios filhos. 

Em outras palavras, o imenso precipício da alma de um poeta atormentado pelo romantismo pode não entender bem as etapas necessárias para a obtenção desse esplendor. Esse saltus não passou despercebido aos românticos, muito inteligentes, tendo muitos deles, na desesperada tentativa de superar a lacuna que jaz disposta entre o abismo e a luz, entre o possível e o impossível, entre aquele que é o objeto último de desejo e a própria "infinita subjetividade", a incorporação cada vez mais compulsiva de heresias e de iniciações alternativas. Não é do propósito deste texto examinar a complexidade das premissas que se seguem destas considerações, mas é importante esclarecer bem que o panorama da psicologia romântica configura uma alienação, uma coincidentia oppositorum que resplandece sobre as fundações carcomidas de uma contradição fundamental, necessariamente intransponível. Este é o cenário que descreve a psicologia de Haruhi Suzumiya e das metáforas literárias construídas por Nagaru Tanigawa, seu autor.


II. Haruhi Suzumiya, Nagato Yuki e a superação do despeito poético de Nagaru Tanigawa


A análise que se segue é pertinente aos eventos adaptados na animação oficial de Suzumiya Haruhi, produzida pela Kyoto Animation entre 2006 e 2010.

Certa feita, em uma entrevista feita num questionário de Light Novels com o então editor de Tanigawa, Arata Ueno, pediram-lhe uma descrição do perfil dos artistas por trás de "Haruhi Suzumiya", Nagaru Tanigawa (roteirista) e Ito Noizi (ilustradora). A parte da resposta que nos interessa é o seguinte trecho:

"Tanigawa-sensei é extremamente taciturno e culto. Ele provavelmente tem um disco rígido de alta capacidade na cabeça, com memória e CPU sempre funcionando a toda velocidade. As palavras que ele produz são sempre concisas e precisas."

Não derivo as reflexões a seguir a partir da prova: ao contrário, tendo já intuído o elemento de "eu poético" como parte da natureza ensaística de seu trabalho, apenas pude confirmar minhas suspeitas quanto à natureza profunda de Tanigawa. Pois não escapa aos olhares mais atentos a função narrativa de Nagato Yuki na obra em questão, sendo a personagem quase que um perfeito espelho da psicologia do autor. Melancólica em sentido clássico, Nagato é o elemento neurótico por excelência da narrativa, encarnada por uma figura do mundo supralunar, uma alienígena, que participa da entidade que chamam de Mente Suprema dos Dados, uma entidade (ou facção) responsável pela intelligentsia do mundo ficcional de Haruhi — ainda que de forma inteiramente alienada, já que não dão boas explicações para a natureza deste mundo as entidades cósmicas da série. Tratam-se elas mesmas de contrafactuais metaficcionais. 

Em outras palavras, Nagato Yuki constitui uma metáfora metaficcional para a dimensão "literária" deste universo. Talvez fosse mais próprio dizer, na verdade, que a metáfora ficcional a que se refere a personagem-símbolo seja a da mercurialidade e do roteiro, já que a dimensão literária contém, na própria arquitetura, todos os lados do quadrado, todas as dimensões substanciais de um drama, e não somente uma parte. Yuki é parte do projeto, a parte referen à metáfora dos dados e de tudo aquilo relacionado às primeiras dimensões da palavra, em suas acepções gramaticais e lógicas. Isolada, referir-se-ia à palavra morta. O papel de Nagato parece ser o do entendimento frio e lógico do texto. Tem a capacidade de organizar a narrativa, até de solucioná-la via dei ex machina em diversos momentos, mas se vê, no mais das vezes, no papel de observadora do desenvolvimento natural das premissas que se predicam a partir de Suzumiya e de Kyon, que são as verdadeiras estrelas, como encarnações de Altair e de Vega, como ficará claro mais à frente.

Eis a natureza íntima da série e de seu criador: Tanigawa, um franco-atirador do consumo de literatura sci-fi, não parece crer na fria disposição da consistência interna de um texto como a chave para a criação de uma narrativa perfeita. Ao contrário, parece relutantemente crer — relutância vista no "Desaparecimento de Haruhi Suzumiya" — no esplendor solar de Haruhi como o verdadeiro epicentro da verdade poética. Mas percebe-se que no encontro destas metáforas antropomórficas reside o verdadeiro propósito de sua investigação narrativa: o que há de humano, de espiritual e de maravilhoso no imediato. É este também o drama de Haruhi, assim como o de Nagato. O aparente desamor de Nagato Yuki vai sendo gradualmente vertido em humana melancolia, em drama irônico de identificação e sensibilização com todas as coisas, pois não é na irresolução de uma tirânica identidade solar, mas na suave e racional identificação narrativa com o mundo ao seu redor que pode achar cura para as dores. É no interesse cada vez mais humano pelas narrativas alheias que Nagato encontra seu tesouro interior.

Não é então seu papel narrativo o da personificação de um UFO, mas o de símbolo deste reino de possibilidades de dados e de contrafactuais, desse espelho mercurial que reflete as diversas fisionomias. Em um primeiro momento, a impossibilidade analógica torna o seu papel primordial o de um frio motor narrativo, do já mencionado deus ex machina. Há, porém, uma eventual sublimação dos dados armazenados e da memória, talvez por meio da repetição — como no oito infinito — às mesmas personagens, a um mesmo conjunto de naturezas humanas, discernível, cada vez mais definido e inteligível... E brota enfim o que há ali de mais verdadeiramente humano, como numa gradual transformação desse mercúrio alquímico. Surge aí a narrativa da melancolia, da neurose, do desespero irônico em viver um hipotético romance de inverno, em que o sol já não lhe transtorne com o brilho da aventura. 

E também tem fim esta jornada. Cada um dos arcos de Suzumiya Haruhi funciona como corsi e ricorsi: a cada nova incursão, a cada nova imersão num mesmo conjunto de dramas, há um fortalecimento da natureza mesma destes dramas, um encorpamento do papel de cada membro do elenco. Os "atores", escolhidos a dedo por Haruhi Suzumiya, quase que como se tivesse vida própria e soubesse mais perfeitamente dos papéis a serem ali interpretados do que o próprio Tanigawa jamais seria capaz, têm como missão a mais desafiadora das aventuras: devem preencher o oco infinito no ventre de Haruhi, que só pode ser preenchido pela própria eternidade. E devem mostrar-lhe essa eternidade, cada um por vez e todos ao mesmo tempo, por meio do insistente desvelamento das maravilhas cotidianas. 


III. Asahina Mikuru e a experiência estética do tempo 


Asahina Mikuru é escolhida como mascote, garçonete, garota propaganda e experimento humano — para virtualmente qualquer papel que envolva uma fantasia — da "SOS Brigade". Argumenta Haruhi que, para que qualquer empresa tenha sucesso, precisa de algo que seduza a audiência, de um candy eye. E os argumentos param por aí. Asahina foi escolhida por sua incrível beleza, quase que feita sob medida para este fim. Após a submissão de longos e torturantes minutos de nosso tempo no testemunho das delirantes fantasias fetichistas que impõe Haruhi à pobre moça, descobre-se sua real identidade: trata-se de uma viajante no tempo, parte de ainda outra misteriosa facção que, além da Mente Suprema de Dados de Nagato e da Agência de Koizumi, quer interferir nos eventos da linha do tempo em que vive Suzumiya. 

Não acho que análises esquemáticas tenham razão de ser pros propósitos da obra, uma vez que a maioria das explicações elucidativas que possamos dar sejam inteiramente poéticas. Mesmo assim, alguns alicerces simbólicos podem ser nos úteis nesta investigação. É impossível ignorar um certo aspecto libriano em Asahina, que age como serviçal do tempo (Saturno) pelas vias da conciliação (Vênus). Com efeito, ela de fato nasce sob o signo de Libra, dia 21 de outubro. Não é de todo ignorável este dado, como veremos a seguir. 

A deliberação de elencar uma atriz pela sua beleza é lugar comum em toda a indústria cultural, a partir do momento em que a alegoria de Vênus tornou-se menos abstrata e mais corpórea. Este é o papel de Asahina, tanto dum ponto de vista metaficcional quanto diegético: tanto serve de guia no tempo quanto de conciliação dramática. Asahina encarna também as metáforas do tempo narrativo, mas de um tempo bergsoniano, que diz respeito à duração do tempo e à sua qualidade, e não à manipulação eficiente de suas estruturas, haja vista a enorme superioridade de Nagato para este fim. Em cada ocasião de recurso/retorno a um tempo qualitativamente fundamental do enredo, Asahina opera como um guia para Kyon, que se sente tremendamente atraído pela moça, ainda que de forma inofensiva. Os tempos narrativos em que Kyon se perde com Asahina são quase sempre nostálgicos, românticos, ainda mais se tivermos em mente a própria estrutura metonímica do drama que vivem na série: Kyon é sempre o cavaleiro que salva a princesa Asahina de todo o mal do mundo, papel que se acostuma a reencenar repetidas vezes, até que esteja apto a salvar a verdadeira princesa das garras da melancolia.

Pode-se concluir que o papel que Asahina exerce no psicodrama haruhista é o de símbolo do amor, da beleza e do romantismo suscitados na experiência de reencenação dramática de Kyon. Se Nagato encarna as estruturas lógicas das leis da realidade ficcional, Asahina personifica a experiência estética e o romantismo destas viagens, a natureza cíclica de eterno retorno que Kyon deve se dispor a tomar parte para que a princesa seja salva do castelo de sua alma. É a indução ao drama extrovertido no mythos de Haruhi.


IV. Koizumi e a Arquitetura Mental do Drama Introspectivo


O tropo do estudante transferido é o maior suscitador de mistérios em Haruhi, e mistérios são grandes suscitadores de tensões e estímulos narrativos. Também são a origem de um fascínio pelo indeterminado, que é uma outra maneira de dizer "fascínio pelo próprio mistério." Koizumi surge como mestre dos mistérios, assumindo papéis cênicos e dramatúrgicos cada vez mais extravagantes. É responsável por muitos dos plots que mantêm a mente e as emoções de Haruhi satisfeitas. Sua verdadeira identidade é a de um "esper", e o caráter arcano do personagem dá vida à metáfora literária da dimensão psicológica da narrativa. No mais das vezes, Koizumi é alguém correto e inofensivo, mas sugestivo de um excessus na realidade, de uma inquietação sutil e imprevisível quanto a terrores que podem abalar de vez a estrutura deste mundo. 

Se Nagato representa a inteligência lógica do texto e Asahina o seu romantismo estético, Koizumi representa a psicologia, a arquitetura interior tanto de Suzumiya quanto da estrutura do universo, sendo ambos a mesma coisa sob um mesmo aspecto dentro das histórias que o têm como epicentro: o plot da ilha misteriosa é um exemplo claro desse tipo de narrativa, tendo como desfecho forçoso a invenção de uma solução otimista para o mistério, para que o imaginário de Suzumiya não seja inteiramente tomado por um deletério pessimismo. Koizumi tem uma interpretação antagônica à de Asahina no ínterim: enquanto a viajante no tempo crê que Haruhi influencia a realidade, mas que o mundo sempre existiu daquela forma, Koizumi crê em Suzumiya como o centro mesmo do universo, como uma entidade voluntarista que pode criar e destruir. Asahina simboliza o otimismo narrativo, e tem em Koizumi seu opositor. É de certa forma o maior devoto da deusa, tendo Nagato um interesse muito mais especulativo quanto ao papel de Suzumiya na ordem cósmica. 

Assim sendo, Koizumi é a figura que dá vida aos mistérios mais sutis do subconsciente de Suzumiya. Há sempre algo de cênico e teatral em suas aparições, assim como algo de espacialmente assertivo em seu domínio, o que parece conduzí-lo ao papel de curador das imagens e dos fantasmas que assolam os estados anímicos de Suzumiya. Poder-se-ia fazer, ainda que de forma grosseira, a analogia tripartite entre Corpo, Alma e Espírito nas figuras de Asahina, Koizumi e Nagato, respectivamente. Mas os esquemas só nos servirão de guias para um propósito maior: o de entender o theatrum mundi que é criado a partir da reunião — ou mesmo criação? — do elenco. 

Serve Koizumi então como o mediador do tom da narrativa: atentando-se constantemente aos estados psicológicos e anímicos de Suzumiya, visa uma mediação moderada entre as partes para que não haja rompimento do equilíbrio. Atua nos bastidores e organiza o espaço cênico com a harmonia entre as partes da alma sempre em mente.


V. Theatrum Mundi, Altair e Vega

I hold the world but as the world, Gratiano;

A stage where every man must play a part,

And mine a sad one.

— Act I, Scene I, The Merchant of Venice


O espírito da nobre e profunda cosmovisão que associa o mundo ao teatro é graciosamente revivido em Suzumiya Haruhi, tendo cada um de seus protagonistas uma função metaficcional crítica no exorcismo da melancolia de sua personagem-título. A narrativa de eterno retorno repete-se aqui sucessivas vezes: sejam nos engenhosos plots de Koizumi ou na criação de um filme que tem Haruhi como diretora e membros da SOS Brigade como atores, estamos sempre a reviver a experiência do psicodrama cósmico que busca resolver a tensão fundamental no coração de Haruhi. Estes papéis podem ser constantemente invertidos de acordo com o tempo cósmico, que sempre corresponde a determinada fase narrativa e a determinado estado de espírito, como no arco do Oito Infinito, em que os dias de verão se repetem milhares de vezes — algo como quinze mil quinhentos e trinta e dois vezes, para ser preciso — número que parece coincidentemente análogo ao tempo que levaria a viagem do desejo de Haruhi até Altair (dezesseis mil anos-luz), desejo que a heroína faz no dia do Tanabata — o encontro anual de Altair e Vega — pedindo à estrela que faça o mundo girar em torno da própria Haruhi. É exatamente a imanentização deste desejo que ocorre no verão: onde sua solaridade é mais forte, quase que em combustão, Haruhi faz com que o tempo gire em torno de si mesma. A única oposição a esse desejo é a autoafirmação de Vega, sua contraparte no céu, que é simbolizado na série pela ação de Kyon. Esta oposição só pode se fazer valer pelo outro desejo da protagonista: o de que a Terra gire na direção oposta. Kyon, ao finalmente admitir que não fez o dever de casa e exigir que toda a SOS Brigade se reúna com ele para a conclusão da tarefa, faz com que a Terra gire ao contrário, e faz assim com que Haruhi seja passageira e não o piloto por trás dos eventos, concluindo então o arco. 

A solução cósmica para os heróis parece ser sempre catártica: tomando parte numa aventura incontrolável, aproximam-se da verdade de sua condição humana. Por meio da conformação individual com seus papéis fundamentais — como os elementos narrativos que simbolizam Asahina, Koizumi e Nagato —  cada personagem pode achar seu drama fundamental, sua razão de ser. A cena em que Haruhi toca "God Knows" no festival de outono, dispondo-se inteiramente a ajudar uma banda desfalcada e a aprender a música para tocá-la e cantá-la em uma hora, talvez seja a mais icônica dum ponto de vista da catarse e do expurgo para a personagem, já que há ali uma plena participação e uma total rejeição ao controle. O filme de Haruhi é um desastre cômico, o hilário resultado de um completo descontrole na tentativa tirânica de criar algo perfeito, mas sua participação musical no festival é genuinamente graciosa e memorável, um estrondoso espetáculo animado, sem precedentes ou sucessores em toda a história da indústria. 



Cada um dos heróis é capaz de entender-se no outro e na imagem inteligível do mundo pela via da catarse. A busca de Tanigawa pelo que há de mais essencial e humano nas narrativas, pela verdade poética, é refletida em alguma medida em todo o elenco principal. Kyon, que tem como papel cósmico o movimento diametralmente oposto ao de Haruhi, tendo Vega como seu motivo narrativo, o oposto de Altair, deve aprender os ensinamentos dos deuses (ou da "deusa") em sua ascensão e trazê-los de volta aos seus em sua descida — arco encenado com clareza no "Desaparecimento de Suzumiya". Traz então a capacidade de esplendor natural de Suzumiya para seu cotidiano; reflete esta mesma luz que obteve nas alturas sobre sua experiência mundana, sobre seus tesouros pessoais, sendo ele mesmo o agente que torna Suzumiya o que ela vem a ser, quando viaja no tempo no dia 7 de julho e diz-lhe que John Smith ainda encherá o mundo de aventuras e de esplendor. Exerce então Kyon o papel de poeta humano, de aprendiz dos deuses, do futuro sábio que supera a húbris e que dá a Suzumiya os contornos da verdade poética. Resgatando-lhe o esplendor infantil em sua viagem no tempo, enchendo-lhe de esperança quanto ao futuro, expõe a luz da deusa para ela mesma, fazendo com que intuitivamente perceba que não deve buscar seu tesouro por aí: já é dona dele, na medida em que se perceba no próximo. Faz-se necessário o divórcio da própria alienação e de sua incompreensão do mundo.

Altair e Vega são divididos no céu estrelado pela Via Láctea, pelo luminoso rio de possibilidades ascendentes, pelo leite primitivo, o primeiro e mais importante alimento do homem. Uma vez por ano, no dia 7 de julho, o Tanabata, também conhecido como Festival das Estrelas, celebra o momento miraculoso em que a união do casal é finalmente possível, encontrando-se a estrela real com a estrela plebeia. Atravessando o imenso abismo das individualidades hipotéticas, acham-se na atualidade possível. Na cosmovisão de Tanigawa, acertadamente, o tesouro não se esconde por trás da insaciável busca pelo esplendor, representada por Altair, mas na nobre propagação das verdades observáveis e contempláveis deste mundo que faz Vega. É no amor mundano sob a luz das estrelas que a aflita Suzumiya pode achar repouso, na desilusão da tirania e da solidão e no tenro encontro com a encantadora visão de sua identidade refletida sobre toda a criação. Eis a narrativa de amor do possível com o impossível.


terça-feira, 22 de julho de 2025

A Inversão do Simbolismo, Nietzsche e a Espada de Dâmocles


A conclusão a que chega E. Michael Jones sobre o espírito da revolução na vida e obra de Nietzsche, filólogo, filósofo e ex-professor da Universidade da Basileia, é a de que o propósito último desta revolução, ainda que fundamentada na liberação sexual e no espírito de Baco, não é o da própria entrega ao espírito orgiástico, mas o da revolução social e da "libertação" do homem pelo mito do super-homem. Seu fim mesmo, segundo o dr. Jones no livro Dyonisus Rising, é o da resgatar o poder primitivo da escuridão em que habita o Eros da cosmologia Órfica, poder este que consiste no apelo à matrilinearidade de Nix, a selvagem lunaridade e afrontosa melancolia das eras, para que traga enfim o crepúsculo do qual se vale Cronos em seu ataque sorrateiro a Urano. Nas dinâmicas entre Eros e Psiquê, conclui-se, gostaria o revoltoso discípulo de Richard Wagner que a escuridão e o ocaso do primeiro preterissem a solaridade e a ascensão da aurora do segundo. 

Atribuindo a soberania e a suma às sombras dos tempos, ao negrume de Saturno — utilizando-se de uma série de falácias genealógicas para tal — Nietzsche, que apesar de suas andanças em prostíbulos e da contração voluntária de doenças venéreas, pouco experienciou ele mesmo de uma plena liberdade sexual, determinou que a manifestação última do dionisíaco em si não se daria pelo próprio sexo, mas pelo poder de escravizar os homens com a ilusão da liberdade no desejo — uma contradição de termos. Neste sentido, poder-se-ia dizer que fora Nietzsche um legítimo antecessor do espírito da Era de Aquário, um protótipo de maestro saturnino que 'congela' e 'descongela' as almas dos homens, como faz Dioniso na peça de Eurípides, As Bacantes. Pela tentação do poder, esta figura saturnina que carrega consigo o espírito do indeterminado é capaz de manipular os homens sem que estes se deem conta das forças ocultas atrás de si, utilizando-se para este intento de imagens e símbolos corruptos, que contém neles mesmos premissas ocultas: a liberdade sexual que promete Baco é, na verdade, a escravidão e a servidão à noite e ao abismo. Haja vista os frutos de sua filosofia, é seguro dizer que teve êxito apoteótico o projeto de escravização e de putrefação dos homens sob o disfarce da libertação, do prazer e da alegria. Utiliza-se então Nietzsche, desta maneira, da força de Dionísio para inverter os símbolos e atribuir bem ao mal e liberdade à escravidão. 

Para Guénon, que aborda o tema de forma preliminar — tema ainda hoje não suficientemente desenvolvido — no Le Règne de la Quantité et les Signes des Temps, toda inversão do simbolismo é um caso de satanismo. É óbvia a analogia e a razão de tal conclusão: a inversão do simbolismo pressupõe, em última instância, uma inversão hierárquica, uma expressão contundente da ilegitimidade e da insubordinação que visa a deformação das bases fundamentais da estrutura da realidade. Se Saturno se sentasse no trono solar — tensão antagônica evidenciada no eixo narrativo de oposição entre Leão e Aquário — conceder-se-ia à matéria, ao fatalismo e à contração o papel primaz da ordem cósmica, sem que haja relação natural entre a alma e o corpo de que se fala. Em outras palavras: seria como pilotar a carruagem do Sol com a alma de Hades, cujo intento último é o de coleta das almas e cujo ofício é o da jurisdição dos mistérios e da morte. Mas não pode a sombra irradiar luz, ainda que seja seu oposto complementar. Não poderia então igualar-se uma ilusão à realidade, pois não são da mesma essência. É da natureza do real o movimento cujo destino é seu propósito último: é da natureza da ilusão a estagnação, ainda que pareça se movimentar, pois o movimento de um sistema controlado é o de um vai e vem, de uma repetição cíclica de gratificações imediatas que acompanham as oscilações do tédio. E por não partilharem de um mesmo fim, não se predicam do mesmo princípio, haja vista que a realidade é fruto da criação de Deus e a ilusão é criada pelo demônio. 

Trata-se então a ilusão de uma manifestação da inversão do simbolismo. Não pode um ato antinatural desvelar uma verdade natural, pois não há nada de antinatural por detrás da natureza. Ao contrário do que sugere Nietzsche em sua deformada interpretação de Édipo, não poderia a natureza revelar seus segredos se fosse ela violada pela ação antinatural do homem. O mito de Édipo não expressa a vitória do antinatural sobre o natural, mas a incompreensão profunda e concreta de sua própria biografia, de sua gens e, portanto, de uma parcela fundamental daquilo que o constitui. Para Nietzsche, o aguilhão que perfura a natureza (o incesto cometido por Édipo e o assassinato de seu pai) é também apontado para o próprio homem, pois o que há de natural nele também deve ser destruído. Mas não há nada de antinatural por detrás da natureza, apenas da ilusão, que é o que verdadeiramente se quebra em Édipo ao descobrir a verdade por trás de sua biografia. Toda ilusão, portanto, contém em si a espada que pode e deve perfurá-la, e é disso que trata o mito da Espada de Dâmocles, narrado por Cícero no capítulo V das Tusculanae Disputationes

O mito de Dâmocles conta a história do tirano Dionísio I, de Siracusa, que governou entre o século V e o século IV a.C., um tirano verdadeiramente dionisíaco, sendo ele mesmo um homem encantador, capaz, mas também injusto e pérfido. Tendo intenções corruptas de governança, cria uma ilusão "perfeita" em torno de si: dorme numa cama acessível apenas por uma ponte, afastada do palácio; não governa de um púlpito ou de um altar, mas sobre o topo de uma grande Torre — o corpo antinatural do Tarot —, não confia nem sua cabeça nem sua garganta ao barbeiro, mas somente às suas escravizadas filhas, e delega todo o trabalho aos escravos que fabrica, muitas vezes tirados de outras famílias nobres, ou a estranhos e bárbaros continuamente vigiados. Nada na vida de Dionísio ocorre de forma natural, e toda a aparente perfeição de seu reino é fundamentada numa contínua tensão e num tortuoso desacordo em sua alma. Tal tensão é exposta de forma claríssima quando Dâmocles, um de seus bajuladores e prováveis confidentes amorosos (à moda 'grega', nas palavras de Cícero) expressa grande inveja da "felicidade" de que goza Dionísio. Ofertando-lhe um dia de governo para que experimente tal gozo, vê Dâmocles encantado com tamanha abundância e fertilidade, até que vê pendurada sobre si uma brilhante espada, pendurada por um único fio da crina de um cavalo. Dionísio, ao pôr Dâmocles em seu lugar, que prontamente abdica do poder e do trono naquele momento, expõe, pela catarse do teatro, a verdade da farsa em que vive: que jamais deveria um palácio (ou um castelo, simbolicamente) ser vertido em prisão; que a felicidade incondicional é, na verdade, a infelicidade voluntária. Que a liberdade em que vive é, na verdade, a mais profunda escravidão, e que a espada que devia atacar seus inimigos e defender-lhe, vive apontada para si.

A detenção do indeterminado e a superação do homem pelo super-homem que propõe Nietzsche, conclui-se, é uma inversão do simbolismo, um caso de satanismo, pois não pode viver uma indeterminação num corpo e alma determinados, nem conviver o antinatural com o natural, muito menos governá-lo. A corrupção da natureza é a corrupção da origem e do propósito, dos quais não se pode desligar, e é nesta impiedosa sátira, nesta diabólica tentação que subsistem a natureza do dionisíaco e todos os meios de ação da injustiça, das ilusões, do controle e das manipulações que tão "naturalmente" repousam em nossas vidas e em nosso tempo. 

sexta-feira, 18 de julho de 2025

A Cura e a Peste



Propôs-se Nietzsche a ocupar não só um dos assentos, mas o trono mesmo, na história das ideias, da corte do espírito anti-socrático. Se observarmos o simbolismo histórico de cada uma destas figuras com atenção, seremos forçados a concluir sem demora que ali se afigura o reavivamento do eterno conflito entre a Fênix e a Serpente, entre o Cristo e o Anticristo, entre a Cura e a Peçonha, conflito no qual existe uma relação profunda e misteriosa entre a deterioração do corpo e a cura dos males da alma. Esta relação não é estabelecida, entretanto, da forma como o ex-professor da Basileia gostaria: não se trata de uma forçosa cadeia causal, nem de relação antinatural entre o enlouquecimento voluntário e a obtenção da fortuna da sabedoria, mas de uma correlação estabelecida entre a priorização das coisas da alma e do espírito e a eventual purga da animalidade física do homem. O peso da filosofia do martelo não esclarece a seus devotos seguidores que é na busca voluntária pelo suicídio que alguém expressa de maneira mais eficaz o seu profundo apego às coisas do mundo, a superabundância imanente de sua realidade imediata.

Este preâmbulo não tem como propósito a exaustão de um problema milenar, mas serve de fundamentação suficiente para uma breve consideração simbólica que possa responder à seguinte pergunta: afinal de contas, por que é que Sócrates sacrifica um galo a Asclépio no Fédon, se está às beiras de beber Cicuta e de cruzar os portões da morte? Onde se vê aí a cura ministrada pelo filho de Apolo?

Para tanto, vamos retomar a noção de que a cura e a peste estão intimamente ligadas. A serpente é o anátema supremo do homem, o símbolo da impossibilidade voluntária de transcendência, o animal da horizontalidade máxima, e é um dos símbolos mais proeminentes do portador da peçonha, que tenta e corrompe. Em diversos pontos de sua filosofia, Nietzsche parece sugerir que haja uma elevação possível aos que buscam voluntariamente pela dissonância, pelo desacordo, pelo jihad contra as formas e pela "transvaloração dos valores". Embora tremendamente ineficaz em sua conclusão, não é de todo um erro perceber que haja uma relação entre o veneno e o antídoto, tal como na medicina. Se é do veneno que se extrai o antídoto, é porque há na superação da deterioração do corpo o encontro com as formas perfeitas da eternidade, estas sim imperecíveis. 

Mas este encontro só pode se efetivar na medida em que a busca se conduz à cura, e à cura da alma sobretudo. Quando Sócrates consagra o galo a Asclépio logo antes de beber Cicuta, está consagrando o veneno da Cicuta para que ela aja como o antídoto definitivo, o antídoto que cura as incertezas e imperfeições do corpo que porventura tenham se transladado para sua alma; trata-se aí do antídoto para as impurezas que acumulamos na nossa vontade, em nossos pensamentos e em nosso propósito último, já distanciado da perfeição e desesperado pela elevação da matéria e de nossa experiência neste plano. Toletino diz que "a 'morte de Deus' não produz o advento do super-homem, é uma mentira do Zaratustra alemão; o que ela produz, como se vem verificando ao longo deste nosso curto e enfatuado século, é o sistemático e sintomático massacre do homem pelo rato" no prefácio do "Mundo como ideia."

Ora, a peste do rato, o veneno da serpente e a picada do escorpião são análogos. Na exaltação da solipsista experiência da autoafirmação enquanto animal rastejante, enfezada criatura que almeja reinar sobre os homens, vê-se o massacre da espécie humana e do próprio indivíduo. A catábase ocasionada pelo signo de Escorpião não deve ser exaltada, mas consagrada, sublimada. O veneno deve ser elevado à condição de antídoto; as lições que o mal nos dá sobre nossas imperfeições e intoxicações mais profundas servem para uma busca mais certeira e mais perfeita pela cura, pela expansão, pela piedade da qual participamos quando lutamos pela vida e rejeitamos a ideologia da morte. Sócrates consagra o galo a Asclépio porque ele consagra o próprio veneno que beberá em instantes, para que sua substância se torne, então, algo além de um veneno. Consagra a substância para que não mais aja como ocasião de desespero e de dores pérfidas, mas de um reestabelecimento final da plenitude de sua alma na persistência do ser.

quinta-feira, 22 de maio de 2025

A Lunaridade de Orfeu


Tive, anteriormente, a audácia de classificar alguns heróis em determinados tipos astrológicos, dentre os quais estava presente a figura de Orfeu, o poeta, profeta, místico e herói grego. Para Orfeu, determinei-lhe a lunaridade. Atribuí a Orfeu a qualidade de desbravador dos mistérios ctônicos, com algo de encantado/encantador e algo de iludido. Embora sejam percepções corretas em sua essência, são ainda articulações embrionárias que carecem de maior elaboração. Eis-me aqui para dar continuidade à tarefa.

É trabalho ingrato ilustrar ou dar luz a uma intuição óbvia. Ou, ao menos, que me foi óbvia. Jamais cogitei a hipótese de associar a figura de Orfeu a qualquer outro astro que não à própria Lua. Colocando-lhe os pingos nos is de forma mais sinestésica, é-me muito clara a frieza de constituição, o oraculismo, a magia noturna, a melancolia e a graveza lúgubre e soturna que circundam todo o imaginário do herói. Mas é possível também desenvolver alguns argumentos que fortaleçam essa percepção, como veremos a seguir. 

Em primeiro lugar, vamos nos deter com mais atenção no porquê de Orfeu não se enquadrar bem nos arquétipos saturninos, joviais, marciais, venusianos ou mercuriais. 

I. Apesar de sua graveza melancólica, Orfeu não é nem de longe um realista, um organizador ou um controlador. Ao contrário: Orfeu se qualifica como um desafiador da ordem cósmica, como alguém que quer deter o controle do mundo 'sublunar' pela própria capacidade de encantamento e de êxtase, ou seja, por participação e por deleite. Por essas razões, dificilmente poder-se-ia chamar Orfeu de saturnino. Existe uma imperfeição, uma multiplicidade e uma instabilidade nos desejos de Orfeu, instabilidade que se afigura como a própria autoimagem do herói, como examinaremos mais à frente.

II. Apesar de sê-lhe atribuído o papel sacerdotal (ora de Dioniso, ora de Apolo), o sacerdócio de Orfeu é inteiramente intramundano. Quer servir de receptáculo da experiência da verdade, sacrificando tudo o que há de suspenso e elevado para tal. Há muito pouco de expansivo e de aéreo em Orfeu: trata-se de um herói contraído, de um herói que quer tudo para si. Tenta salvar Eurídice e fracassa, porque não quer sacrificar-se por Eurídice — não sacrificará nenhum capricho por ela —, mas mantê-la junto a todos os desejos que lhe aprouverem. De modo que a fumaça do sacrifício sacerdotal tão típica de Júpiter (e Sagitário) torna-se um elemento muito distante das ações de Orfeu. Por essas razões, não poderíamos chamar Orfeu de jovial.

III. Apesar de sua vocação cósmica e mítica como músico, Orfeu não apresenta mais traços marciais. Sua poesia cósmica e contemplação melancólica da passagem do tempo parecem afastá-lo em demasia da beligerância e da conquista. Por essas razões, não poderíamos chamar Orfeu de marcial.

IV. Apesar de sua aparente natureza sedutora, seria mais plausível afirmar que Orfeu é maior vítima de um encanto exterior do que mestre ele mesmo de um encantamento profundo e duradouro sobre outrem. Orfeu comove multidões e até deuses com seu canto, mas só temporariamente e sob certas condições. Orfeu sempre busca o encanto de sua lira a fim de obter uma musa inefável, uma musa que é sempre reflexo dele, parte dele, extensão dele, seja essa musa alguma expressão da arte (pensemos aqui no Orfeu de Cocteau) ou a própria Euridice, que, consoante Paul Diel, seria o simbolismo da alma órfica, do centro de sua alma. É sempre fracassado em sua tentativa; não resgata a musa, nem mesmo por ímpeto carnal — é como se nem mesmo a desejasse o suficiente. Isso porque Orfeu se distrai com todo e qualquer estímulo que surge em seu caminho: não tendo clareza do que quer, quer tudo que existe sob a face da terra. Este querer pode se afigurar tanto como um desejo erótico como num desejo autodestrutivo e antierótico, com delírios ascéticos de todo tipo. Orfeu também é um mau guia: não consegue conduzir Eurídice pra fora do Hades, sendo incapaz de produzir o bem, seja o bem menor de Vênus ou o bem maior de Júpiter. Por essas razões, não poderíamos chamar Orfeu de venusiano.

V. Apesar de sua volatilidade e dispersão perante as possibilidades, Orfeu não age com qualquer resquício de inteligência e obsessão organizacional. Ao contrário, é vítima de uma obsessão cujos contornos lhe são misteriosos. Não é um herói notável por sua capacidade comunicativa, nem pelo fluxo neurótico de consciência; é misterioso até para si, movendo-se pelo talento e pelo dom da transformação, por tudo aquilo que simplesmente irradia em sua constituição (não se trata a Lua do astro cujo pecado é a Preguiça? Cuja representação antropomórfica seria aquela do Bebê?), transitando entre os diferentes planos de existência em busca de uma resposta poética, de uma imagem sintetizante cuja natureza é necessariamente estilhaçada, ainda que não a perceba como tal. Busca uma pureza poética, uma síntese de estados anímicos e uma unidade múltipla que só são possíveis dentro da ilusão da imagem. Por essas razões, por essa falta de discernimento intelectivo, não poderíamos chamar Orfeu de mercurial.

Resta-nos o exame do Sol e da Lua. Existe uma via na qual Orfeu possa ser posto em posição de solaridade: numa cosmologia órfica. Mas este é um assunto demasiado complexo para os propósitos desta postagem, cujo exame será adiado para uma data futura. Quanto à lunaridade, bem, desta podemos tratar com algo de convicção.

Enquanto regente dos ciclos de geração e corrupção, a Lua é naturalmente um astro transformador. Mas sua posição tradicional a coloca — enquanto símbolo máximo do feminino — como o ponto limítrofe entre as formas perecíveis e imperecíveis, entre o que é passível de mutação cíclica e o que não é. Todos os demais astros a partir de Mercúrio configuram o que chamamos de mundo supralunar, ou seja, tudo aquilo que é significador constante e impassível. Estando a lua à beira dos portões, mas do lado de cá, seria ela mesma regente dos ciclos de transformação terrena tanto quanto seria também ela um corpo modificado neste processo, um corpo que assume formas distintas ao longo do mês. Embora esta qualificação seja óbvia, faz-se necessária para o que vem a seguir. 

A Lua é também um astro cuja constituição é a água, fria e úmida em sua natureza. A água é o elemento de matéria relativa, de densidade relativa — sendo a terra o correspondente da densidade "absoluta". Dum ponto de vista alquímico, seus três pilares metafísicos — Enxofre, Mercúrio e Sal — seriam analogados pelos símbolos naturais Sol, Lua e Terra. Esta mesma tríade seria correspondente à constituição tripartite da natureza humana na tradição ocidental, Espírito, Alma e Corpo, respectivamente. Trata-se a Lua, portanto, do astro de matéria relativa que rege os estados anímicos, as transformações da alma, do conjunto de aspirações, sentimentos e de tudo aquilo que é ávido, de tudo aquilo que anseia pela própria transformação e pela realização mais profunda do desejo. É o feminino saltitante que pode nos elevar ou nos despedaçar, como as Bacantes que despedaçam Orfeu...

Fica então clara a analogia: Orfeu é um viajante, mas não um viajante universal, nem comerciante, nem itinerante. Orfeu é um viajante que transita entre diferentes estados anímicos, entre diferentes pontos da topologia de sua alma. Viaja ao Hades para resgatar Eurídice como quem viaja ao inferno do Ser. Transita entre o Apolíneo e o Dionisíaco, entre a concentração hipotética do ascetismo e a dispersão de excitação máxima da devassidão. Tenta racionalizar e entender a própria alma através dela mesma, sem jamais entender qual papel deve exercer em definitivo, sem jamais aceitar um serviço, um sacrifício genuíno, pois se recusa a abrir mão de quaisquer desejos. Reflete então a imagem do poeta que é devorado pela própria criação, que se enamora das próprias imagens como se fossem mais reais do que a própria realidade. É o arquétipo do poeta que se recusa a poetar. Vê a realidade anímica, então, como um lunático. Circunscreve a própria Imago Animae pela via da obsessão, pela escravidão dos desejos. Seus desejos, naturalmente impossíveis, aprisionam-lhe num aglomerado de contradições e ilusões. Tais contradições, quando levadas a termo na realidade, despedaçam-lhe o corpo, como consequência lógica de suas ações, de sua recusa em aceitar as leis da causalidade como maiores (e mais poderosas) que seus delírios. Incapaz de reconhecer-se como alguém cujo fracasso fundamental é o da formação de uma identidade em conformidade com a ordem cósmica, mantém-se em negação até mesmo quando vítima do karma, tornando-se assim a imagem perfeita da natureza profunda dos artistas modernos, dos poetas malditos de metrópole, dos esteticistas, formalistas e lunáticos inertes; torna-se a imagem quintessencial do poeta em eterna recusa de resolução, de um ponto final; torna-se a imagem do poeta em eterna recusa de tomar parte nos limites verdadeiros de seu humilde ofício. 

sábado, 19 de abril de 2025

A Crucificação Segundo Peter Paul Rubens



Com o espírito contrito e o coração inflamado perante o eterno testamento da salvação dos homens, Rubens captura, com o olhar fulgurante dos barrocos e com a devoção numinosa dos católicos, a maior visão já testemunhada.

É típico da obra de Rubens aquele aspecto o qual poderíamos chamar de espírito flamejante, ou apenas de essência do flamenco. Vê-se na composição a abundância harmônica de formas quase torcidas em quase-espirais, em quase-redemoinhos. Essas torções jamais viram deformidade. O efeito obtido, em verdade, é o contrário: assim como em quase todo mestre barroco, a pintura parece transbordar da tela e nos iludir com a insinuação de um movimento, com a extensão de um tender, com a direção de um tornar-se, fazendo com que pareça estar movendo-se ciclicamente. Com efeito, grande parte das obras de Rubens se utiliza dessa 'chama' para expressar a natureza enquanto propósito. Referindo-nos aqui a seu majestoso trabalho que captura a morte do Cristo, seu gênio artístico atinge o auge da expressão ígnea no pictórico: ilustra o olhar dos católicos sobre a Paixão.

O Corpo de Cristo é o eixo central da pintura, como deve ser. Mas o efeito atingido por essa centralidade é mais que o de uma simples organização geométrica. É gravitacional, centrípeto. Talvez o elemento de maior brilhantismo, neste sentido, seja o corpo do Bom ladrão. O soldado romano sobe para finalizar o trabalho e quebrar as pernas de São Dimas, que estão verdadeiramente tensas, gritando de dor. Mas o peito de São Dimas não foge à morte, e toda a musculatura superior de seu corpo aponta para o Cristo. Seus braços e pernas se agarram em desespero, mas seu peito se entrega à Paixão. Na contorção das formas, Rubens expressa o que a alma quer, frequentemente em relutância ao apetite físico. Em contraste, o segundo ladrão expressa o contrário: desespera-se, precipita-se com os braços em direção ao Cristo perante a morte, num gesto irracional de busca pelo leme, pelo seu salvaguarda. Tenta alcançar-lhe com os braços, mas não entrega sua alma a Deus. Ambos vão em direção ao ponto gravitacional do Cristo, ao eixo da realidade.

Na parte inferior da pintura, mais significados: A Lança de Longinus empunhada por Cassius cria um vínculo entre ele mesmo, que é quem concentra toda a expressão marcial da pintura, e aquele que é o logos divino e o centro pictórico da luz. Cassius perfura o corpo de Cristo quase como se precisasse descobrir, perfurando-lhe o corpo glorioso, de que um Deus é feito. É como se Marte quisesse a glória do Sol. Logo abaixo, mais à direita, vê-se a mão suplicante e os cabelos soltos de Maria Madalena, em um gesto venusiano desesperado, em um pedido de paz e de concórdia. Seu sofrimento é afluente, erótico, tão digno quanto o dos demais, e seus cabelos dourados são a coisa mais próxima de um alívio pros olhos. São João resigna toda sua marcialidade juvenil e mantém-se enlutado, ao lado.

Cada um dos corpos expressa um tipo diferente de sofrimento, de estupor, de pathos: são os diferentes efeitos da paixão sobre as diferentes personagens que tomaram parte no sacrifício dos sacrifícios. A circularidade com que as formas se delineiam é típica da genialidade de Rubens: é por meio dela que tendem umas às outras, que conversam-se entre si, que reúnem-se num único gesto coletivo, num tormento partilhado. Ângulos retos tendem a afirmar a individualidade e a fixidez. A elipse tende ao movimento e à partilha.

A Paixão expressa-se celestialmente no tormento das nuvens, na sugestão da tempestade. Terrestrialmente, o solene luto de Deus é irradiado e refletido pelo sofrimento das criaturas. Também os animais não escapam de sua ira: enquanto o cavalo de Cassius vira a face, envergonhado do ato de seu cavaleiro, o cavalo do outro soldado se prostra perante o Filho do Homem, curvando-lhe a cabeça.

Por fim, a Mater Dolorosa, que escoa todo o sofrimento da ação e sustenta-o na gravidade de seu luto. O plúmbeo véu que cobre seu pálido corpo é justamente onde repousamos o olhar para retirar-nos momentaneamente (e eternamente) do sofrimento testemunhado. Ambos, rigor devocional e solene caridade tomam parte em seu infinitamente digno sofrimento. Pedimos-lhe por misericórdia tal como faríamos, como faremos. Rogai por nós, Santa Mãe de Deus.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

O Diabo de Milton, Júpiter e Saturno na Obra de Cabanel


À revelia de sua posição histórica enquanto marco do neoclassicismo, Cabanel expressa estrondosa devoção a Júpiter, Saturno, aos arcontes e ao espírito romântico em seu icônico trabalho que dá contornos ao Lúcifer de Milton.

Pode-se resumir toda a dinâmica nos substantivos abstratos "expansão" e "contração". Enquanto as potestades — românticas, eróticas, com algo de profanidade, com algo de uma interpretação inevitavelmente erótica e venusiana da natureza do amor — rumam a leste (do nosso ponto de vista), Lúcifer fica para trás. Não é que Lúcifer seja apenas deixado para trás. Ele fica para trás. Sua rebeldia o aprisiona, sua liberdade o acorrenta.

O produto da queda (rejeição do Amor e da Liberdade em Deus) é o fechamento causal de Saturno. As potestades voam porque são como Júpiter. Lúcifer é como Saturno. Os braços de Lúcifer formam um anel, que recruta-lhe os músculos e tensiona-lhe o ser. Suas pernas não se expandem, mas se contraem. Suas asas, membros cuja finalidade é a da expansão, contraem-se elipticamente em torno do olhar feérico do diabo. A spira mirabillis é obtida por meio deste movimento de contração, da contração Saturnina do demônio. Mira o leste e permanece no oeste, no ocaso. Mira o nascer do sol e manifesta-se no poente. Mira a sua oposição natural, a da caridade, com perversão, com graveza. E com dor. Com ódio. Dói-lhe a alma exercer a odiosa função de adversário. E ufana-se por meio dela.

Ufana-se por ser o demônio da circularidade antropoteísta e regente do orgulho romântico. Retém fagulhas joviais na ponta das penas, não se divorciando inteiramente de sua gens, nessa acepção romântica e Miltoniana. Os frutos da pintura não deixam enganar: ainda nos dias de hoje, o trabalho de Cabanel suscita emoções contraditórias no coração de todos os que têm fascínio pelo mal, fascínio pelo abismo, fascínio sombrio e erótico com o ocaso e com o casamento abominável com o nada e com o apagar de luzes da civilização.

Um dos grandes trabalhos saturninos de todos os tempos.

A Arte da Erudição e o Eterno Rembrandt

Todo processo de erudição é arte; é metamorfose; é instrução; é desembrutecer. À revelia dos incentivos saturninos para que nos tornemos dur...