sexta-feira, 18 de julho de 2025

A Cura e a Peste



Propôs-se Nietzsche a ocupar não só um dos assentos, mas o trono mesmo, na história das ideias, da corte do espírito anti-socrático. Se observarmos o simbolismo histórico de cada uma destas figuras com atenção, seremos forçados a concluir sem demora que ali se afigura o reavivamento do eterno conflito entre a Fênix e a Serpente, entre o Cristo e o Anticristo, entre a Cura e a Peçonha, conflito no qual existe uma relação profunda e misteriosa entre a deterioração do corpo e a cura dos males da alma. Esta relação não é estabelecida, entretanto, da forma como o ex-professor da Basileia gostaria: não se trata de uma forçosa cadeia causal, nem de relação antinatural entre o enlouquecimento voluntário e a obtenção da fortuna da sabedoria, mas de uma correlação estabelecida entre a priorização das coisas da alma e do espírito e a eventual purga da animalidade física do homem. O peso da filosofia do martelo não esclarece a seus devotos seguidores que é na busca voluntária pelo suicídio que alguém expressa de maneira mais eficaz o seu profundo apego às coisas do mundo, a superabundância imanente de sua realidade imediata.

Este preâmbulo não tem como propósito a exaustão de um problema milenar, mas serve de fundamentação suficiente para uma breve consideração simbólica que possa responder à seguinte pergunta: afinal de contas, por que é que Sócrates sacrifica um galo a Asclépio no Fédon, se está às beiras de beber Cicuta e de cruzar os portões da morte? Onde se vê aí a cura ministrada pelo filho de Apolo?

Para tanto, vamos retomar a noção de que a cura e a peste estão intimamente ligadas. A serpente é o anátema supremo do homem, o símbolo da impossibilidade voluntária de transcendência, o animal da horizontalidade máxima, e é um dos símbolos mais proeminentes do portador da peçonha, que tenta e corrompe. Em diversos pontos de sua filosofia, Nietzsche parece sugerir que haja uma elevação possível aos que buscam voluntariamente pela dissonância, pelo desacordo, pelo jihad contra as formas e pela "transvaloração dos valores". Embora tremendamente ineficaz em sua conclusão, não é de todo um erro perceber que haja uma relação entre o veneno e o antídoto, tal como na medicina. Se é do veneno que se extrai o antídoto, é porque há na superação da deterioração do corpo o encontro com as formas perfeitas da eternidade, estas sim imperecíveis. 

Mas este encontro só pode se efetivar na medida em que a busca se conduz à cura, e à cura da alma sobretudo. Quando Sócrates consagra o galo a Asclépio logo antes de beber Cicuta, está consagrando o veneno da Cicuta para que ela aja como o antídoto definitivo, o antídoto que cura as incertezas e imperfeições do corpo que porventura tenham se transladado para sua alma; trata-se aí do antídoto para as impurezas que acumulamos na nossa vontade, em nossos pensamentos e em nosso propósito último, já distanciado da perfeição e desesperado pela elevação da matéria e de nossa experiência neste plano. Toletino diz que "a 'morte de Deus' não produz o advento do super-homem, é uma mentira do Zaratustra alemão; o que ela produz, como se vem verificando ao longo deste nosso curto e enfatuado século, é o sistemático e sintomático massacre do homem pelo rato" no prefácio do 'Mundo como ideia.'

Ora, a peste do rato, o veneno da serpente e a picada do escorpião são análogos. Na exaltação da solipsista experiência da autoafirmação enquanto animal rastejante, enfezada criatura que almeja reinar sobre os homens, vê-se o massacre da espécie humana e do próprio indivíduo. A catábase ocasionada pelo signo de Escorpião não deve ser exaltada, mas consagrada, sublimada. O veneno deve ser elevado à condição de antídoto; as lições que o mal nos dá sobre nossas imperfeições e intoxicações mais profundas servem para uma busca mais certeira e mais perfeita pela cura, pela expansão, pela piedade da qual participamos quando lutamos pela vida e rejeitamos a ideologia da morte. Sócrates consagra o galo a Asclépio porque ele consagra o próprio veneno que beberá em instantes, para que sua substância se torne, então, algo além de um veneno. Consagra a substância para que não mais aja como ocasião de desespero e de dores pérfidas, mas de um reestabelecimento final da plenitude de sua alma na persistência do ser.

A Cura e a Peste

Propôs-se Nietzsche a ocupar não só um dos assentos, mas o trono mesmo, na história das ideias, da corte do espírito anti-socrático. Se obse...