sábado, 11 de outubro de 2025

Por que Hipnos tem asas na cabeça?

                

Parece que o estado de vigília nos induz à memória. Mas por quê?

Ciro dos Anjos sugere que há uma batalha sendo travada nos espaços contíguos de nossa alma neste momento. De um lado, a sedução por uma entrega plena ao sono, que parece ser análoga ao nosso desejo íntimo pela morte. Não o desejo por um suicídio, ou mesmo pela destruição, mas um anseio de eternidade. Do outro, há uma contumaz recusa da nossa parte em nos entregarmos: é a resistência da vida, de nosso enxofre interior, mas que também pode ser tomada por uma recusa em tomar parte na vigília e em nossa parcela de entrega na arte da contemplação, recusa bruta e inconsequente muitas vezes, além de insensível.

Os lados deste eterno conflito podem estar certos ou errados dependendo da sabedoria do dia. Vale ressaltar, contudo, aquilo que há de mais digno na imagem da vigília, da obnubilação, que é a nobilíssima reconstituição desinteressada e perfeitamente harmônica daquilo que compõe nossas lembranças, antecipação da imagem final de nossa eternidade.

As memórias em que transitamos neste sereno estado são ornamentadas pela mais elevada arte: nelas temos acesso ao nosso mythos pessoal, com inserções muito mitigadas de nossas intenções superficiais. Se entregues o bastante àquilo que enxergamos como nossos propósitos, como nosso fim último, somos agraciados com o testemunho da mais perfeita harmonia, na qual tomamos parte somente enquanto dançarinos e músicos que respeitam o tempo. Nosso testemunho lembra um quadro de Watteau, na qual estão contidas todas nossas particularidades, mas em obediência, em vigília, em reservada e luminosa contemplação.

E é neste acesso magicamente eterno de nossas lembranças, que revela o brilho celeste e numinoso que docilmente se irradia dos fantasmas de nossas almas que podemos entender um pouco do que há por trás do misterioso busto de Hipnos, deus pagão do sono, irmão gêmeos de Thanatos, deus da morte, ambos filhos da noite: é, sobretudo, símbolo de uma possibilidade que nos foi concedida: a de um vislumbre.

Somos agraciados um vislumbre no ato da vigília, na sagrada experiência temporal do sono: trata-se de um vislumbre das alturas, representado pelas asas em sua cabeça, que visam tão somente a suspensão de nossos pensamentos para que a eternidade biográfica que habita em nós se imponha com o peso de uma pena.



sábado, 4 de outubro de 2025

Simone Weil explica a dor e o drama romântico de Heinrich von Kleist


As consequências últimas de uma tese. 

Ler Simone Weil pode provocar dores de cabeça, febre, torpor, assombro, desassombro e leveza. Num único parágrafo do ensaio Vide et Compensation, descreve a autora com o gracejo, a simplicidade e a depurada malícia dos infantes — quase que en passant — aquilo que há de mais profundo no drama do Michael Kohlhaas de Heinrich von Kleist, drama que por sua vez exorta, de maneira cirúrgica, o drama universal do homem que perde seus cavalos. Tal explicação é derivada de sua profunda meditação a respeito da dor:

"Dores de cabeça. Em certo momento: a dor diminui se for projetada no universo, mas com isso o universo se altera; a dor fica mais viva quando volta para o seu lugar, mas algo em mim não sofre e permanece em contato com um universo que não foi alterado. Agir da mesma forma com as paixões. Fazê-las descer, concentrá-las em um ponto e desinteressar-se delas. Tratar assim, especialmente, todas as dores. Impedir que elas se aproximem das coisas. A busca do equilíbrio é má porque é imaginária. A vingança. Mesmo se nós realmente matarmos ou torturarmos os nossos inimigos, de certo modo, isso é imaginário."

Em primeiro lugar, devemos esclarecer o problema trazido pela autora. Em seguida, uma vez entendida sua morfologia, veremos sua aplicabilidade no contexto das formas culturais. Por fim, explicaremos o drama de Kleist em toda sua aplicabilidade universal.

Quando Simone diz que a «dor diminui se for projetada no universo, mas com isso o universo se altera», se vê repetida no Livro do Desassossego quando diz Bernardo Soares que «doem-me a cabeça e o universo». Esta ideia parte da universalização da dor, para que nos vejamos livres do particular: se partidários de uma dor universal, seremos então capazes de abstrair nossa responsabilidade, bem como de nossa vergonha. Enquanto partidários de uma dor universal, estamos justificados, e a justificação nos acomoda. Relativizaríamos a falta de uma perna se fôssemos todos pernetas. Por outro lado, se a dor é sua e só sua, ela é um problema seu. Mas a universalização do problema está prevista em sua dialética. Lança o homem seu problema ao mundo, e o problema do homem se torna o problema do mundo, e isto é natural: se os efeitos disso serão imaginários ou concretos, depende da força do homem em questão. No mais das vezes, a tendência é que este seja um ato irônico, que tem como consequência radical a desilusão do mundo, ou a mágoa do mundo. 

Se o primeiro passo é o de universalizar o problema, o próximo — isto é, numa resolução natural das emoções, em que a emoção não se sobrepõe à razão, nem a contamina — é o da necessária humanização dessa dor: «a dor fica mais viva quando volta para o seu lugar». A dor que sai, volta, e com toda intensidade. Contudo, «mas algo em mim não sofre e permanece em contato com um universo que não foi alterado.» O que acontece aqui?

Ao extirpar a dor pela sua universalização, ateia-se fogo no mundo. Mas o mundo não deve ser destruído. Destruir o mundo é destruir o próprio homem em definitivo. Todo impulso revolucionário se vê vítima de um delírio da intemporalidade, de uma suspensão do tempo por meio da obtenção de uma paródia da eternidade, como fez Agave em As Bacantes. Conclusão possível: não devemos queimar o mundo para que nossa dor seja relativizada. Apesar da amargura, nossas dores continuam sendo nossas. Não é que elas sejam exclusivamente nossas: a especificidade de nossa dor é responsabilidade nossa. É possível contemplá-la, contudo, no seio da eternidade, pela participação no ser. Através da participação no ser, acha-se orientação para o sentido da dor, por analogia. Para que encontremos orientação, a dor deve voltar para nós, e o mundo, naquilo em que se vê inalterado, provê subsistência e estabilidade ao que sentimos. Mais que isso: tira da dor o seu caráter de ferida incurável e atribui-lhe a naturalidade. Livre da intemporalidade e do desespero, retomamos nossa capacidade de pensar e de sofrer a ação do tempo. Somos capazes de contemplar a chaga, restituída de sentido. A dor que mata é a da loucura. É a dor de atear fogo ao mundo; é a dor dos irrazoáveis e céleres. 

«Mas algo em mim não sofre e permanece em contato com um universo que não foi alterado. Agir da mesma forma com as paixões. Fazê-las descer, concentrá-las em um ponto e desinteressar-se delas. Tratar assim, especialmente, todas as dores. Impedir que elas se aproximem das coisas.»

Estipulamos então que a dor vai para o mundo quando se quer curá-la em definitivo. A cura definitiva de uma dor só pode ser obtida por uma panaceia. Nos termos propostos pela autora, a panaceia é exatamente isto: alterar o universo, reescrever seus predicados existenciais para que suas cadeias causais naturais não mais nos aflijam. Suspender o tempo e viver na intemporalidade. Viver numa pintura.

O retorno da dor significa, então, a aceitação de termos existenciais relativos, ou seja: preserva-se ao menos parte de nossa imagem do mundo, ao mesmo tempo em que preservamos nossa consciência, ainda que doloridos. Aceitamos (e acolhemos) a dor como parte da existência. É escrever mais por estar paralítico; é desenvolver mais a audição por ser cego. 

Aceitamos os termos relativos porque precisamos do mundo, de um mundo estável, coeso, que subsista alicerçado na razão. Pois só a razão e a razoabilidade podem curar nossas chagas. Só a razão pode se sobrepor à desrazão do mundo.

Existem, contudo, diferentes dores e diferentes mundos. Uma dor legítima, oriunda de um forte sentimento de injustiça, evoca, por vezes, um buraco mítico, uma dissonância universal. É o caso de Jó, que é forçado a perseverar no limite da chaga e da desrazão, exemplificando de forma perfeita e eficaz o problema da dor, da mais desarrazoada das dores.

Um caso literário de semelhante natureza — por analogia — é o de Michael Kohlhaas, de Heinrich von Kleist. Fiz alusão ao problema universal do homem que perde seus cavalos. O que isso quer dizer?

No drama, Kohlhaas é um cuidador de cavalos de Brandemburgo que se vê num imbróglio: não tem permissão de fazer comércio com seus cavalos quando está a caminho da Saxônia porque um pequeno nobre, Wenzel von Tronka, decide atrapalhá-lo, exigindo-lhe um passe legal. Tal cobrança não é nem ao menos lícita. Contudo, o pequeno entrave desencadeia a mais profunda transformação na vida do homem, que perde um par de cavalos negros como colateral. Os cavalos, que ficam na propriedade de von Tronka, são tratados com descaso e crueldade, deixando de ostentar a rica aparência que um dia tiveram, tornando-se feios e desnutridos. A perda dos cavalos ocasiona na rebelião de Kohlhaas, que por sua vez ateia fogo ao castelo de Wunker e inicia uma campanha de terror em Wittenberg, na Alta Saxônia. Vende suas propriedades por uma bagatela e perde até sua mulher no processo. É condenado à morte, enfim, mas não antes de ter seus cavalos restituídos. 

Mas o que acontece de fato aqui? Por que escreveria Kleist um drama de proporções históricas só por causa do roubo de um par de cavalos?

Os cavalos de Kohlhaas, junto a seu dono, constituem a imagem da alma como aludida no Fédro de Platão. Se tomarmos a forma da alma como uma tipologia constituída pelo cocheiro e seus dois corcéis, o cocheiro, representado por Kohlhaas, perde o acesso às suas possibilidades cósmicas ao perder seus cavalos. Em termos claros, Kleist é destituído de sua capacidade simbólica tanto de elevação quanto de paixão. Não pode subir às alturas e nem descer ao Hades. O ataque feito pela burocracia dos príncipe-eleitores foi contra sua eminência. Em termos trágicos, testemunhamos aqui o furto da excelência de um homem distinto. O ataque visa diminuí-lo, por meio de um golpe em seu espírito. 

Destituído do par de cavalos, temos uma deformação em sua alma, uma mácula. O cavalo é um animal psicopompico, que vive na metaxis. É próprio de sua natureza a travessia, seja às profundezas do abismo ou ao topo dos picos. Se não é possível a Kohlhaas nem sequer a clareza de um destino, o que lhe resta? Não é considerado de todo como criminoso, angariando até o apelo e a simpatia do Eleitor de Brandemburgo e a restituição última de seus cavalos; tampouco pode ser considerado herói, já que se entrega por inteiro à vingança em seus últimos momentos, ao se recusar a transmitir a enigmática mensagem da cigana ao Eleitor da Saxônia, mensagem cujo conteúdo diz respeito ao futuro do Ducado. Somos forçados a nos perguntar: quem é Michael Kohlhaas?

Os dramas de Kleist transformam suas personagens em oportunidades para o embate entre a graça e o pecado, como em Die Marquise von O; ou transformam-no num viator, por meio do qual um drama existencial ganha palco, como vemos aqui. Temos assim a prefiguração de um drama irônico, mas um drama irônico de contornos místicos; um drama irônico que não é regido pela inteira falta de capacidade, mas pela forçosa obtenção de vinganças relativas e de vitórias relativas. É o drama de uma alma deformada.

A dor de uma alma ferida, destituída de possibilidades intuitivas de resolução cósmica, recorre de imediato ao problema de que falamos hoje: Kohlhaas se torna um incendiário, alguém que leva a dor de sua injustiça ao mundo ao seu redor. Só que esse drama não é parido no seio de uma ilegitimidade. O mundo de Kohlhaas é deturpado per se, e ambiciona que haja uma deturpação na alma de todo eminente, de todo aquele que ousa se destacar. Ao tentar forçar a mão sobre a ameaça de um germanista legítimo, de um possível Bulla Felix, Kohlhaas reage como uma fera encurralada. Temos então a ilustração de uma dissonância mítica, da suspensão de uma dor na marcha da narrativa histórica. 

Todos os estados de espírito em Kohlhaas são transitivos. A perda de autonomia o torna um homem dependente. Sua dependência, contudo, depende de outras dependências. Se a ação de um herói já não subsiste por si, em outras palavras, se um homem vocacionado para o heroísmo se vê destituído de seus meios de ação, mas a sombra de seu heroísmo ainda é projetada no mundo ao seu redor, existem aí duas opções: ou estamos falando de um homem louco, ou existem forças que querem ter controle sobre este bode expiatório. No caso do drama de Kleist, existe tanto a força estatal quanto a da própria providência. Que a um homem capaz de brandir a própria espada, mas desarrazoado o bastante para apontá-la até contra si mesmo seja permitida a participação na narrativa histórica e nos desenlaces do futuro da Alemanha, é algo que só Deus possa permitir. A instável fisionomia de um ex-cavaleiro como Michael Kohlhaas serve, portanto, como uma profecia do destino da Saxônia. Lançado em 1810, o livro prenuncia a Revolução de 48. Como diz a Virgem Vermelha:

«A vingança. Mesmo se nós realmente matarmos ou torturarmos os nossos inimigos, de certo modo, isso é imaginário.»

Só a razão pode se sobrepor à desrazão do mundo. A que conclusão chegamos com relação ao que diz Simone Weil? Qual a conclusão radical de sua tese? De que a alternativa à responsabilizar-se pela dor é a destruição mútua entre o homem e o mundo. Em um estado social de absoluta transitividade, a fragilidade das almas e das formas se torna autoevidente. Kohlhaas permite que as dores e as paixões toquem nas coisas, ateando fogo ao mundo. A restituição de seus cavalos não restitui sua alma: passando-os para seus filhos, assegura-se de ato magnânimo, que será substituído quase que imediatamente por sua vingança contra o Eleitorado da Saxônia. Perde sua identidade e se confunde com seu papel histórico, com um destino externo ao seu. Torna-se assim, de forma conclusa, uma personagem histórica, uma ilustração das consequências últimas do colapso entre a dor e o mundo. 

O mundo destrói Kleist e Kohlhaas ateia-lhe fogo. O drama que se inicia na deformação de nossas almas toma proporções históricas no momento em que abdicamos de nossas possibilidades de redenção, de nossa possível jornada de retorno a um mundo inalterado. Simone Weil sabe muito bem disso.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

O Intrincado Simbolismo da Fortuna no Destino da Rainha Hécuba




rex sedet in vertice
caveat ruinam!
nam sub axe legimus
Hecubam reginam.

Carmina Burana: Fortune plango vulnera


"O que foi, será,
O que se fez, se tornará a fazer:
nada há de novo debaixo do sol!"

Eclesiastes 1:9, tradução da Bíblia de Jerusalém


Todo símbolo feminino é, por vocação inata, vitalista. Em uma de suas muitas e brilhantes elucubrações a respeito do Barroco, Eugênio d'Ors, no livro intitulado Lo Barroco, descreve o espírito deste como a humilhação da razão, como um desamparo da estabilidade em favor do dinamismo, como uma vitória da vida sobre a Eternidade. Transmite, enfim, num de seus muitos aforismos, a quintessência do Barroco como expressão morfológica essencial do Eterno Feminino. Tal como na elusiva quadratura do barroco, somos confrontados com um símbolo vitalista na figura da Fortuna, breve e ocasional, sinônimo de fartura e de escassez, musa da vitória e da derrota. Devemos explorar sua difícil natureza através de reflexos, de espelhos culturais; refletidas neles estão as imagens efêmeras da fisionomia de Tique (Τύχη), deusa emergente em tempos escatológicos e quantitativos, nos quais reinam a barbárie e a conquista do mundo; pode-se afirmar isto dos tempos de Alexandre, bem como de nossos tempos. O primeiro espelho cultural a ser analisado é o de Hécuba, soberana da riqueza e da ruína.

A rainha de Tróia — mãe de 50 filhos ou de 19, dependendo da versão do mito — é conhecida como a mater dolorosa do mundo pagão, e é em sua tragédia homônima que testemunhamos o substrato completo de seu sofrimento. No texto de Eurípides, datado de 424 a.C., acompanhamos o trágico destino de Hécuba após a queda de sua pátria, relegada à condição de escrava de Agamênon, rei dos Aqueus. Trata-se Hécuba (Ἑκάβη) de um antropônimo que pode ser interpretado, segundo o Dicionário mítico-etimológico de Junito Brandão, como possível abreviação de Ἑκάβόλος, junção do radical hekás, "ao longe", com o verbo βάλλειν, "lançar, arremessar, a que arremessa ao longe, ao seu bel-prazer, à vontade, à farta, a que atinge seu objetivo", raíz etimológica que a liga também a Hécate, sendo esta o feminino de hékatos, epíteto de Apollo. Hécate, deusa lunar obscura, mas de igual poder ao de Apolo e Artémis, preside tanto a prosperidade dos partos e o sustento da juventude quanto a aparição dos fantasmas; é deusa das triplicidades intramundanas e da mágica, cultuada nas encruzilhadas. Hécate representa um aspecto lunar nefasto, a lua das intoxicações e dos delírios; a lua das formas de manipulação do feminino por meio da bruxaria. Isto é muito importante para o entendimento do papel profundo de Hécuba em seu reflexo da imagem da Fortuna.

Se há uma narrativa na qual a rainha da ruína é representada como uma bruxa do inconsciente, como imagem da vingança da mãe terrível do mundo pagão, é na obra do tragedista de Salamina: ao receber a mais devastadora notícia para uma mãe, que é a da morte de dois de seus mais queridos filhos, Polixena e Polidoro, recorre Hécuba à força telúrica de Hécate para a execução de sua vingança. Embora não possa levá-la a Pirro, que por exigência do espírito de seu já falecido pai, Aquiles, havia sacrificado a virgem Polixena para aplacar a ira do Pelida, demonstra astúcia diabólica o suficiente para que despeje seu veneno diretamente no cálice dos reis, o primeiro deles sendo o de Agamênon, seu atual mestre, e o segundo de Polimestor, um rei da Trácia, este o assassino de Polidoro. 

As tragédias de Eurípides são marcadas por um distinto favorecimento do drama humano sobre a dignidade dos deuses. Eurípdes, ao contrário de Sófocles, seu rival, e de Ésquilo, seu antecessor, atacava com muito mais assertividade o espírito de seu tempo, abstraindo a imagem dos deuses até que fosse mais direta a contemplação de suas essências, transpondo a barreira do símbolo até o objeto simbolizado. Em um contexto de formas incertas no tocante à sociedade grega, de um espírito pitoresco na representação das estruturas de sua realidade, é sentida com mais leveza a influência da Moira, representativa do destino cego, inelutável, outrora soberana do teatro. Ao contrário, é na deliberação das ações das personagens de Eurípides que se concentra o drama. O contexto da tragédia de Eurípides é, portanto, o da dessacralização. Temos aqui a oportunidade de examinar a psicologia da Fortuna, refletida e encarnada na vingança de Hécuba — a vingança contra os reis que sentam ao topo da Roda da Fortuna, inconscientes da frugalidade de suas posições. A dolorosa viagem de retorno dos gregos é também o momento de transição das eras. Passados os 10 anos da guerra de Tróia, termina-se um ciclo cósmico; vem o giro da Roda para todos.

No espírito desinibido de Eurípides no que diz respeito ao próprio ethos, somos agraciados com alguns símbolos esclarecedores. Em determinado momento, no comovente luto pela morte de seus filhos — seus maiores tesouros —, chega a dizer a rainha Hécuba que é preferível a habilidade da sofística a qualquer penetração na verdade, pois é por meio dela que os homens manipulam e impõem suas vontades. É nítida a necessidade que sente Hécuba de ter contato com a magia; quer dobrar os joelhos de Agamênon, rei dos aqueus, para que este facilite sua vingança contra o assassino de Polidoro, seu filho que era até então hóspede na Trácia. Esta magia é simbolizada pela sofística, a arte da manipulação. Um dos argumentos de que se utiliza para convencer Agamênon é o do Eros: este está agora com Cassandra, outra das filhas de Hécuba, em sua cama. Quando caiu Tróia, abriu-se da sagrada Íllion um baú de tesouros. Seus espólios, simbolizados pelos filhos de Hécuba, criaram dívidas sagradas, não escritas, dos captores para com seus escravos. Tornou-se a profetisa um ardil do Eros, ferida no coração de Agamênon. Sente que deve zelar por sua reputação e por sua nova concubina, e deixa-se enfeitiçar pelas palavras de Hécuba, que o encara do fundo do abismo com a graveza e com o terror de um monstro do Hades. Logra êxito em sua vingança: cega Polimestor, devoto da Fortuna, condenando-lhe a um exílio do belo e da concupiscência.

Perder seus dois filhos de maneira tão brutal foi um golpe mais pesado que o próprio incêndio de Íllion; ambos, Polixena e Polidoro, simbolizam o conjunto de seus tesouros, a imagem de sua realeza perdida. O prefixo polýs (πολύς) (muitos, numeroso) de ambos os nomes não é arbitrário: Polixena (Πολυξένη) quer dizer "a muito hospitaleira", ao passo que Polidoro (Πολύδωρος) quer dizer "o que traz muitos dons/presentes", ou "o que custa muitos presentes". Polixena é, portanto, em sua infinita dignidade e beleza, a própria imagem do esplendor régio, da realeza receptiva, acolhedora de quaisquer destinos: não fraqueja perante a adaga de Pirro, e com sua castidade mantida até o fim, tem a garganta cortada com os seios à mostra numa das cenas mais arrasadoras da história da literatura. Polidoro, em contrapartida, o caçula de Príamo, fora enviado pelo pai à Trácia, para que ficasse sob os cuidados de Polimestor durante a guerra. Ao seu lado estava grande parte do Tesouro de Íllion. Ao saber da queda do povo de Heitor, não hesita Polimestor (cuja etimologia, Πολυμήστωρ, indica um homem de "muitos planos") em assassinar o jovem herdeiro. Assassinado brutalmente por quem lhe devia hospitalidade, Polidoro carregava consigo a própria materialidade da Fortuna, a prosperidade e governança de seu povo. Juntos, irmã e irmão foram tomados da rainha num único giro da Roda, furtando-lhe o que havia de mais precioso: seu espírito.

Passa Hécuba a reinar nas profundezas do vazio a partir daquele instante. Outrora no topo da Roda, gozando da plenitude de seus tesouros, toma parte na queda vertiginosa não só de seu status social, mas de sua intuição para o sagrado, de sua compreensão da própria estrutura da realidade em sentido último. No momento em que o sagrado é inteiramente maculado, submerge das profundezas do Tártaro a cratofania profana, que assume a vacância do trono: "onde não há rei, o rei é Pan". A queda da Moira é a queda da própria estrutura da realidade grega; a crise da Guerra do Peloponeso, contexto em que a Tragédia de Eurípides foi escrita, é o nec plus ultra da antiguidade clássica. É visível sua decadência final, sua escatologia, que dará lugar a formas dispersas e disruptivas da divindade. É o próprio Eurípides que anuncia a chegada de Dionísio como que em tom de Certidão de óbito da Hélade; Hécuba, "mater dolorosa pagã", simboliza o esvaziamento espiritual que dá lugar à ação da Fortuna, que move os homens do topo à base, do amor ao ódio, da plenitude ao vazio, dinâmica que dá vazão ao ímpeto da vitória total — sob risco iminente de derrota decisiva, aniquilante. É deusa bruta a Fortuna, cega, arbitrária, impiedosa, que presenteia a todos de acordo com suas capacidades de conquista. A Fortuna é uma deusa que valoriza sobremaneira o delírio de grandeza.

Esse delírio de grandeza é corolário das exigências de Tique. A única intuição que resta aos homens descrentes da providência é a da conquista do mundo, do epítome das capacidades, da síntese forçosa de uma ordem biônica... Esta imagem fica clara em Alexanderschlacht, de Albrecht Altdorfer: existe uma síntese que mais soa como um amálgama no testemunho da vitória de Alexandre sobre Dario III. A união dos mundos retratada na pintura chega a se assemelhar a uma espécie de síntese nórdica entre o Niflheim e o Muspelheim, entre o mundo de gelo e o mundo de fogo. Curiosamente, a Batalha de Isso ocorre nas imediações da região da Turquia, região na qual esteve Tróia um dia...




Um copo meio cheio não cumpre os requisitos de libação à Fortuna. Deve-se enchê-lo até que transborde e se esvazie. A lei da Fortuna está ligada aos modos da natureza, às leis do tempo profano, sem analogia com a eternidade; triunfa os que são agraciados pelo amor e pela plenitude, e sucumbem os mortos do Hades. É mais vítima da Fortuna quem perde a intuição para o sagrado, o contato com sua genealogia divina. Todos são vítimas da Fortuna: velut luna statu variabilis. Mas são vítimas da Fortuna enquanto corpos arrastados pelo vendaval, jogados de um lado para o outro; ao espírito, contudo, uma vez que haja intuição para o sagrado e para as verdades superiores — sejam as da Moira ou da Providência —, são reservados os movimentos típicos de uma paixão, em que há uma total entrega à comoção total de nossa condição, comoção reafirmada pelas nossas certezas espirituais, e pelo sofrimento pelo qual passaremos na persistência do ser. Mais se comove quem é mais íntegro de espírito. A isto nos remete o sacrifício de Polixena. Hécuba, que sofre no vazio, tem no peito a síntese do pathos tardio do mundo pagão, aquilo que resta das dores uma vez que entregues aos caprichos da natureza tempestuosa, aos caprichos da Fortuna. O sofrimento ctônico a transforma em bruxa, rainha das profundezas, de maneira semelhante ao momento em que o desejo ilegítimo de Macbeth faz com Três Bruxas — e não Três Graças — entrem em seu caminho: fair is foul and foul is fair.

Já esclarecido o sofrimento da mater dolorosa pagã, deve-se trazer luz, por fim, a um último assunto: por que exige plenitude a Fortuna? A resposta para isso se encontra na psicologia profunda da quantidade e da habilidade. A cegueira para a providência e para os desígnios divinos nos torna cativos de nossas capacidades; seja pela busca da plenitude de si, ou mesmo pela formação de uma identidade, de uma imagem-síntese que sirva de metonímia das virtudes — praticamente condição sine qua non para a sobrevivência de nossos tempos, especialmente em âmbito digital —, tornamo-nos cada vez mais ligados aos tesouros do mundo, ao contato com o belo imediato e com o sensualismo. Este conjunto de tesouros se materializa na figura da Fortuna, a deusa da fragmentação desordenada, da riqueza, do império do múltiplo. Sua imagem não se perfaz por analogia celeste, mas por síntese terrestre: é como a Loteria da Babilônia, uma síntese de forças tirânicas que devora os homens em sua orgulhosa indignidade. Não se pode evitar a própria deformação ao exaltar o profano, a iniquidade, a bruteza e o arbitrário. 

E por trás de toda essa incapacidade de solitude, dos ânimos de tortura, dessa alienação de nossas vocações em favor da conquista da Fortuna, Vulgívaga da Babilônia, existe uma compulsão, um terror intermitente, uma fuga injustificável da morte e do salto de fé. Temos medo de morrer como Polixena por sermos fracos de espírito. Depositamos nossas esperanças na ocasião, na oportunidade, na intensidade do momento, na sedução, na entrega à inteireza de experiência, por sermos demasiado covardes para a jornada rumo aos Grandes Mistérios que começa em nosso espírito.

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

A Arte da Erudição e o Eterno Rembrandt

Todo processo de erudição é arte; é metamorfose; é instrução; é desembrutecer. À revelia dos incentivos saturninos para que nos tornemos duros e inflexíveis como a ponta de uma lança adamantina — estado no qual nos tornamos igualmente quebradiços e descartáveis, tal como o grafite — reside na brandura e na admoestação dos afetos a verdadeira erudição. Pois mesmo o vasto acúmulo na memória é, na verdade, a transformação da memória; substitui-se a lânguida imagem da mulher transeunte pela forte reminiscência de Elektra. Transmuta-se o espaço interno da memória, do breu da caverna ao fulgor das catedrais. Outrossim, modifica-se o ritmo do corpo, as próprias disposições morais de nossa conduta, no interminável labor de domesticar os sentidos pela admoestação  lírica e musical. Todo esse projeto de dignificação do homem é no que de fato consiste a erudição e a aquisição de cultura; vem para nos transformar, para suavizar nossas feições anímicas. Vem para depurar os minerais de nosso espírito em metais nobres. Dá-se então no espírito da contemplação — e portanto da interpenetração, ou seja, nas trocas com o mundo imediato ao seu redor, cujo olhar faz com que um quarto escuro, antes sinônimo do insólito e do claustrofóbico, torne-se um nascedouro da fé, da filosofia e do olhar cristalino para as essências — a verdade da erudição. 

Esta verdade pode ser contemplada nas pinturas de Rembrandt, o grande alquimista da Arte Holandesa, autor cujos temas preferidos não se derivam das formas clássicas, nem das grandes viagens, mas da depuração pictórica da terra em ouro por meio da interpenetração entre sua visão transcendental e sua realidade imediata. O fundo marrom de Rembrandt é um tema universal da pintura holandesa — tornando-se um padrão do retratismo — que é por ele levado ao extremo filosófico, tornando-se o reduto próprio da alquimia do homem, do eterno vir-a-ser. Este espírito é também o que o torna um mestre da transformação anímica pelo trajeto próprio da pintura: podemos vê-la se transformar diante de nossos olhos, conquanto paralisada. Eis o grande desenhista da imagem do mistério da alma.


Tudo isto pode ser entendido sem demora na contemplação de duas de suas obras mais icônicas: a pintura do "Filósofo em Meditação", datada de 1632, e na peça conhecida como "Aristóteles Contemplando o Busto de Homero", de 1653. Os detalhes filológicos não nos interessam. Ambas as pinturas devem seu significado à cadeia causal histórica da qual fazem parte, que se perfaz na tradição da História da Arte e em suas recepções simbólicas. Na primeira vemos a figura do filósofo posto à esquerda da ascensão pela espiral, ou seja, no divórcio da circularidade terrestre que se predica do reconhecimento de princípios superiores. Vemos também que a luz de que se utiliza em sua atividade contemplativa não vem do trabalho do homem, mas da qualidade do tempo. Senta-se em oposição à fogueira e zelosamente exposto ao que parece ser um ocaso.

A luz do sol produz um esclarecimento régio em sua mente, luz que separa o reino da contemplação e a atividade corriqueira, cisão expressa na divisa entre o completo breu nas bordas do quadro e as superfícies iluminadas pelo sol. Não ocorre esta cisão sem um aparente pesar, contudo: percebe-se um esforço, na figura do filósofo, de elevação da própria solidão, abdicando de sua mobilidade — tem as pernas ocultadas pelas sombras — e até mesmo de sua visão, também obscurecida. A circularidade com que o espaço cênico é delineada pela luz expõe, por fim, a conformidade cósmica com que Rembrandt projeta o papel do filósofo: vê-se topologicamente desfavorecido em todos os sentidos, habitando a parte esquerda inferior da roda do mundo, vítima tanto do ocaso quanto da moléstia do sul — direção cósmica das seduções e das tentações. Mais do que a mera circularidade, o contraste entre sombra e luz delineia a forma de um ovo cósmico. É a parição do filósofo, um nascituro do pensamento numinoso. É como se o filósofo se dirigisse espiritualmente às margens do mundo, à beira do abismo, achando somente n'Ele a verdadeira luz. Ilumina-se então todo seu microcosmo, rico de propósito e de direção. Esta direção é a da ascensão. Deve levantar-se e subir as escadas: logo é hora do jantar.


Em semelhante espírito de transformação, contempla-se a síntese própria da arte da erudição nesta segunda pintura. Toca Aristóteles com sua mão direita o topo da cabeça do busto de Homero; segura com a esquerda a corrente dourada, suposto prêmio que lhe foi dado por Alexandre. A mão direita importa-lhe muito mais que a esquerda, esta soterrada pelas sombras.


Vejamos aqui as prioridades do artista: percebamos, em primeiro lugar, o trajeto da luz, onde se encontra o verdadeiro ouro, pois é no drama da luz que a matéria-prima de Rembrandt é sublimada e purificada. Parece estar de frente para Aristóteles, cuidadosamente iluminando apenas a parte superior de seu corpo, limitada contudo à altura dos olhos, estando a testa parcialmente ocultada pela sombra do chapéu. Este recorte de luz é dramático a níveis devastadores. Embora a luz toque os olhos de Aristóteles, não os clareia. Seu olhar repousa sobre Homero, que recebe agradecido o insight da luz em sua mente. Homero era poeta cego; Aristóteles, filósofo de olhos garços. Seu olhar, no entanto, parece voltar-se mais para dentro que para fora. Ao fixar seus olhos em Homero, vê refletido em si o desejo de continuar com a própria depuração, com a arte da reconstrução de si, mesmo depois de obtidos os prêmios do mundo — mais do que isso, mesmo depois de alcançado o cume do pensamento. 

É visível a tensão do estado de espírito de Aristóteles refletida em suas vestes: seu chapéu preto, que impede-lhe o contato direto com a luz — como  tem Homero — e também suas vestes pretas, contrastam com a túnica branca, que sobrepõe o preto, dando-lhe maleabilidade, fluidez e poder reflexivo: reflete a luz em seus braços, em seu contínuo trabalho. Liga-se então Aristóteles a Homero da mesma forma com que a episteme se liga ao discurso poético. Esta simboliza o início, e aquela o fim da vida filosófica. Mas a vida do homem em Rembrandt é um ciclo de fins e recomeços, expressos aqui no túnel do tempo que liga o velho poeta ao grande Estagirita. Rembrandt é o pintor do mistério da alma, de ambivalência terrestre e aquática. Vê-se aqui então o processo de descongelamento, de solvência do negrume saturnino expresso nos trajes de Aristóteles. Aristóteles se descongela, se reconstrói, reavalia-se no tempo. Prepara-se assim para morrer: só a morte deve trazer-lhe a última cristalização, o endurecimento definitivo das feições. Mas a alma deve ser purificada em toda sua aquosidade. O trabalho do filósofo é, portanto, o da infindável reconstrução anímica na antessala da morte, renunciando aos prêmios do mundo e às próprias convicções cristalizadas... 

Vive a reconstrução dos que muito sabem dos séculos e dos milênios, mas que sempre aprendem a respeito dos dias, da eterna atualidade da existência. O poeta, perpetuador da sabedoria diária, da sabedoria das narrativas possíveis, é o eterno professor do presente — eternamente jovem. Aprende-se na arte a reconstrução de nosso ser, a reconfiguração de nossas formas interiores, o desembrutecer das nossas certezas abstratas, atropeladas pela marcha do tempo. É no trânsito entre os níveis discursivos que o Estagirita se torna artista, artista de si. Não pela fabricação de esculturas, mas pela absorção e pelo aprendizado da eterna sabedoria do momento, do eterno destronar da própria majestade. Vê-se aí o verdadeiro propósito da arte da erudição: solve et coagula.

segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Da Natureza dos Gêmeos e a Helena de Eurípides


Diz respeito aos Gêmeos do Zodíaco, adversários cingidos em firme enlace; aparições fantasmáticas de um solvente breu escatológico; duplicados pilares justapostos nas entradas e saídas; baluartes da fortaleza celeste e confinadores do desacerto pedestre, o primeiro e mais importante desacordo do ser: trata-se do mito fundante de Caim e Abel, da dissensão entre a imagem que vê o homem no espelho e aquilo que intui, às cegas, a respeito de si e do mundo; trata-se do despertar da consciência sensível e da concupiscência da carne, do imaginário da queda, da experiência da alteridade, da consciência humana a respeito do bem e do mal e do gatilho que desperta o desejo do homem pelo fogo prometeico, que impele-o, finalmente, ávido e célere, ébrio de indagações e empossado das percatas de Hermes, a trilhar os nobres e destemidos passos na estrada da filosofia e do conhecimento humano, estrada amiúde tortuosa e abstrusa, bifurcada nas armadilhas dos sentidos, que guiam o coração dos sábios ao topo da colina e a maledicente fronte dos incautos ao fundo do despenhadeiro.

Predicam-se muitas coisas do signo de Gêmeos, como o Domicílio de Mercúrio e o Exílio de Júpiter, relevantes dados para nosso intento. Tanto Gêmeos quanto Virgem são domicílio de Mercúrio e exílio de Júpiter; em contrapartida, tanto Sagitário quanto Peixes são governados por Júpiter e exílios de Mercúrio — sendo Peixes o signo de sua queda. A conclusão relevante a se extrair disso é a da existência de uma tensão fundamental entre Mercúrio e Júpiter. Existem muitas maneiras de explicar essa tensão, mas creio existir uma necessidade de me ater ao sintético e uno para superação de tensões e contradições. Outrossim, a relação entre Júpiter e Mercúrio pode ser explicada pela tensão entre o Uno e o Múltiplo, entre a vontade que reside n'Ele e nos pensamentos e intuições dos homens. Se o que há de magnânimo e uno no símbolo de Júpiter estiver alocado em um signo mercurial, haverá uma impostura hierárquica: a vontade do céu será preterida pelas confabulações terrestres. O mesmo vale para um mercúrio alocado em signo jovial: deve haver silêncio do servo na casa do rei. O desenho desta complexa relação pode ser entendido no próprio glifo do signo de Gêmeos.





É prontamente visível sua semelhança com a imagem de um pórtico arquitetônico, assim como a homologia — e analogia, no caso em questão —  com os pilares duplos na entrada de algum templo antigo de nave simples; é também semelhante aos pilares de Hércules, e aos pilares ritualísticos de Hermes, presentes nos ritos maçônicos. Por extensão principiológica, qualquer paridade de pilastras contém, em sua natureza, algo da essência de Gêmeos, que é simbolizado no corpo humano pelos braços. Os pilares sustentam o teto, e o teto é símbolo do céu. Os braços de Atlas sustentam o céu da mesma forma que os pilares de Hércules servem como nec plus ultra: horizontalmente, depois do Estreito de Gilbraltar, para além dali está a montanha do Purgatório — como descreve Ulisses de sua última viagem com os Argonautas no canto XXVI da Comédia de Dante, a viagem que os impele a atravessar o mundo conhecido, de encontro aos portões da morte...

Verticalmente está o céu. Não o próprio Empíreo, mas a imagem mediada do céu, o céu da inspiração e das imagens da vontade divina, expressa na direção dos ventos, no movimento dos pássaros e no desenho das nuvens... Júpiter está hierarquicamente no teto, sustentado pelas pilastras, pelos braços suplicantes de Gêmeos. O céu não precisa ser sustentado pelas estruturas humanas: ao contrário, as pilastras devem convergir para o topo, porque é no topo que se perfaz a hierarquia do simbolismo arquitetônico, que representa o mundo terrestre, erguido e constituído à imagem do céu. Na religio romana, o Flamen Dialis — sacerdote de Júpiter — está acima dos gêmeos Quirinalis e Martialis, manifestações religiosas da Paz e da Guerra. O poder de Júpiter é o poder da mágica, da mágica una e indivisível que nos leva à busca pela participação no ser.

Os Gêmeos estão nos portões, assim como Janus, às portas de um mundo invertido, posto de cabeça para baixo, compreendido num intrincado jogo de oposições. Está aí também a primeira aparição de Mercúrio no Zodíaco, e é na entrada de Mercúrio que ocorre um processo alquímico, que divide a matéria-prima a ser depurada. O processo iniciado em Gêmeos é o de depuração da matéria, que deve ser finalizado em Virgem, na recepção mercurial da terra, por meio da admoestação virginiana na iniciação religiosa da fé, no alimento íntimo da esperança. Gêmeos, assim como Janus, está nos portões de entrada e de saída: está no que aprendem os homens com os outros homens, no princípio da alteridade. Gêmeos lida com as limitações do mundo criado, com a quadratura — em oposição à circularidade da abóboda celeste de Júpiter, manifestada no conhecimento de Deus alocado em Sagitário, sua oposição. A jornada de Gêmeos a Sagitário é, portanto, uma jornada de formação, um bildung, que parte do primeiro contato com o conhecimento humano até a sublimação de suas contradições internas na unidade do ser sagitariano, que entende o conhecimento em sua dimensão transcendental. É o conhecimento da centelha divina de Prometeu, que reconhece no destino humano um potencial de superação da sociedade dos velhos deuses.

Esse potencial está contido nas contradições geminianas. O potencial do conhecimento é um momento do despertar para a analogia, que vê refletida em si e nos próprios signos íntimos todas as imagens do mundo. A coisa em si e a analogia da coisa se encontram em Gêmeos. A paz se perfaz pela guerra, e a guerra almeja como fim último a paz. O simbolismo do jogo de xadrez é, portanto, de natureza geminiana: as andanças entre as casas brancas e pretas simbolizam os constantes saltos entre o símbolo e a coisa simbolizada, entre a difícil experiência do ser e seu reflexo. Não é possível obter unidade terrestre: somos cativos dum jogo de oposições. 

A unidade celeste é, portanto, o objeto de desejo último dos expatriados de Gêmeos. Podem derivar daí a tirania do poder que sustentam na formação dos Impérios — como se dá a formação do Império Romano, no sacrifício de um Gêmeo para a sustentação do poder de um outro, que encarna sua potência e simbolicamente o absorve, como que na junção de duas metades. O destino meta histórico do Império Romano revelou, contudo, seu papel ancilar: serviu de síntese de oposições, de reunião dos povos, até o momento fatídico em que se tornou o centro do mundo, tudo para servir n'Ele e para Ele. O papel meta histórico de Gêmeos era o do serviço ao Cristo e sua igreja. Magnus ab integro saeclorum nascitur ordo.

Vemos na tragédia que escreveu Eurípides sobre Helena um dos primeiros documentos históricos do papel simbólico de Gêmeos. Na tragédia, existem duas Helenas: um fantasma levado para Tróia por Paris, como prêmio de Afrodite, e a verdadeira Helena, fiel esposa de Menelau, mantida sob a proteção de Proteus no Egito. A verdadeira Helena foi levada até lá por Hermes, que é o deus referente a Mercúrio. Inicia-se o processo alquímico. Já na premissa estão contidas importantes considerações simbólicas: enquanto o fantasma, a analogia, o símbolo da beleza é dado a Paris como troféu espúrio do amor erótico, a própria Helena é condenada ao sofrimento de ter uma reputação dissonante de sua natureza profunda, de ser vítima dos ardis dos deuses. A reputação é sinônimo de posição na Roda da Fortuna para os gregos, e foi lançada Helena na parte tormentosa de seu eixo. Está aí a narrativa de queda e de eventual redenção. A redenção de Helena só é possível pelo reencontro com Menelau e pela restituição de sua vida doméstica. Deve, então, se despir da desgraça que lhe traz o döppelganger: são falsos os presentes da Fortuna, e por extensão, os da fama. O mundo da fama e das imagens deve ser superado pela experiência doméstica, pois já está o mundo grego mesmo em uma transição de eras. Dá mais valor Eurípides aos homens e seu destino que aos velhos deuses. E com razão.

Ao fim da peça, somos lembrados da genealogia de nossa heroína: é membro da família dos Dioscuri, ou seja, dos irmãos mitológicos que simbolizam Gêmeos. Pollux, o irmão imortal e Castor, o irmão mortal, são da linhagem de Zeus, que é Júpiter. No fim do drama, facilitam os irmãos a fuga de Helena, em um dos muitos dei ex machina do dramaturgo de Salamina. Isto porque os Gêmeos aqui estão em sincronia, em uníssono: corroboram para a redenção possível de Helena, para uma redenção doméstica, na superação de seu status de mais bela mulher da Lacedemônia para a conformação de seu papel cósmico na obediência ao marido (sacerdote do culto doméstico) e ao pai céu. 

A meditação profunda da psicologia de Gêmeos é aqui elucidada. A célere mobilidade do Gêmeos no fim da Primavera é uma antessala pros mistérios da alma, para a experiência do abismo, uma efervescência alquímica que prefigura a jornada do conhecimento. Essa antessala consiste na fértil contemplação das possibilidades, mas também na apresentação de um problema no potencial humano: a contradição da mortalidade e da imortalidade testemunhada nos Dioscuri é também parte da nossa condição. Temos a possibilidade de atingir o topo do mundo e de mover montanhas, assim como somos admoestados por nossas limitações existenciais. Tomamos nota de nossos limites após o percebimento da vastidão de nosso potencial. Agimos então, absorvida a lição, em duplas: os dois pontos que delimitam uma reta simbolizam também a nossa necessidade de deslocamento, de uma trajetória humana que visa uma elevação supra-humana, contradições com as quais devemos lidar até que trabalhem juntas, com estas duas mãos e estes dois braços, na construção de um altar para Deus e no proferir das preces que nos erguerão aos braços do Pai.

sábado, 9 de agosto de 2025

O Espírito Saturnino do Romantismo




É provável que algum homem maior e melhor — penso em Girard ou Eliade — já tenha articulado o que descreverei nas próximas linhas, mas estando no fim ou no começo, na parição ou na propagação de um pensamento verdadeiro, ergo com igual desassombro a bandeira dos patriotas da razão e da clareza no combate ao virulento espírito da grosseria, do obscurecimento, da infidelidade e da intoxicação. 

Fato é que fui acometido, num contexto de convalescença, por um súbito esclarecimento quanto à natureza de um certo problema humano, de feições humanas, cuja paternidade finalmente pude contemplar, na figura de um pai celeste. Refiro-me aqui ao problema do Romantismo, descendente por sua vez da linhagem de Saturno, o grande maléfico. 

A razão para isto é muito simples — escandalosamente simples. Se prestarmos muita atenção, perceberemos que o romantismo é muito mais frequentemente observado em pessoas frias. Frias e secas, pra ser mais específico. Parte da psicologia romântica envolve uma relação, intermediada em seu seio, do eu em relação ao absoluto, ao indeterminado, este caracterizado por definições fugidias e supremamente abstratas por natureza. Mas esse enamoramento vem de um perfil psicológico que pouco ou nada sabe sobre o amor, e por isso o caracteriza como algo de proporções titânicas, devastadoras, como as da tempestade. Faz até lembrar do José Augusto adaptado por Manoel de Oliveira em Francisca, romântico de caráter violento e saturnino, o segundo traço sendo expresso pela obsessão fúnebre e por sua afeição a experiências intensas. 

José Augusto, assim como todo herói byrônico, é homem de imensa frieza. Certa feita, alguém descreveu o olhar de Byron como o de alguém que projetava chamas negras nas pupilas. A lasciva melancolia de seus olhos vive em desacordo, em desatino, em ânimo de jihad espiritual e de insurreição contra a tendência saturnina de seu destino. Todo romantismo se alimenta de rebeldia, e foi Saturno um dos grandes e primeiros rebeldes. 

É importante pensarmos um pouco na psicologia do romântico, contudo. Essa perturbação em relação à intensidade da experiência aponta para a lacuna oposta: por incapacidade de comoção, busca a experiência mais comovente. Dono de um coração gelado, busca guarida no calor mais ardente. Ama de forma bruta e insensível por não ver escolha além do terremoto como possibilidade de cura e de contato com o discernível. 

Todo romantismo nasce nas profundezas do abismo da alma, no escuro desgoverno de Saturno. Todo romantismo é uma alienação da vida real, uma troca da experiência do imediato pelo delírio do abstrato. Mas a fúnebre presença de Saturno na vida dos homens, conquanto justificada pela influência dos astros nos nascimentos individuais, revela algo mais importante. Se em Júpiter vemos a expansão e a prosperidade na narrativa histórica, é com Saturno que testemunhamos uma dupla possibilidade: ou tratamos nele das grandes crises ou das grandes erupções românticas. Não estaria dada, já em seu cerne simbólico, a natureza mesma do romantismo, ao analisarmos a relação de Cronos com a memória da Era de Ouro nos mitos gregos? 

Embora fosse o deus central deste recorte mítico, dessa era da abundância na qual o tempo experienciava os prazeres da sempiternidade, fora também o responsável pelo assassínio dos próprios filhos, com o fim de manter a imperturbabilidade circular de seu poder. Traduzido em termos psicológicos, vê-se aí a psicologia contraditória do romântico: não tendo qualquer apreço verdadeiro pela realidade concreta, evitando-lhe as vicissitudes e sobrevalorizando uma experiência abstrata e imaginativa do amor, de Deus, da honra e da felicidade, busca o romântico sua fantasia régia, vivida apenas na contradição, no endurecimento do coração e na experiência vertiginosa de retorno a Saturno. 

Pois serão infelizes os que buscam a felicidade; serão instáveis os que buscam a estabilidade. Deve o coração do homem se encher de emoção todos os dias, pois serão massacrados pela carruagem da civilização – parafraseando Balzac – caso contrário. E é na carruagem da civilização que vemos Saturno: de forma terrível pilota o carro, brandindo a longilínea foice em um desordenado e aterrador massacre diário.

Saturno deve ser entendido como o regente da realidade concreta, da moléstia laboriosa do cotidiano. Quando os homens recusam a humilhação imposta pelo arconte da foice, tentam endurecer o próprio coração para que não sejam mais manipulados pelo destino: querem controlá-lo, tornando-se eles mesmos paródias do grande maléfico. Tornam-se homens frios e cruéis, ligados de forma cega e insípida às determinações do indeterminado. Saturno não deve ser venerado, mas superado, e isto se dá somente por meio da submissão total à realidade em Deus.

No esforço de se tornarem invioláveis, tornam-se rijos e venenosos como o chumbo. Pela rejeição quase sempre integral às convenções e ao avanço da civilização, tornam-se quebradiços, inadaptáveis. Pela tentativa de imposição tirânica da própria verdade subjetiva, tornam-se escravos da circularidade, pois o que querem obter como fim último de seus esforços não pode ser alcançado pelos que estão presos nos portões negros. A experiência sublime do amor é inacessível à eterna abstração inalcançável do romântico, assim como à cegueira solipsista e assassina de Cronos, que pensa ver em seu objeto de desejo seu próprio reflexo, ignorando a deformação da própria fronte no espelho. Compartilham, o romantismo e saturno, da cegueira e da auto opacidade dos que não entendem a própria condição, dos que não meditaram verdadeiramente nas palavras cravadas às portas do Oráculo de Delfos: conhece-te a ti mesmo.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

Não Entendo Nada Desse Seu Esplendor


(...)

Toda essa multidão iluminada
anda muito ocupada
para a dor, para o amor,
vai-te embora, Reparata,
que esta cidade te mata!  
 
(...)

eu não entendo nada do esplendor
terrestre dessa gente,
eu sou pedestre, não sou inteligente,
pago pedágio ao chão que Deus botou
ao alcance do pobre obediente.

Santa Reparata deixa Florença, de Bruno Tolentino

 

Por que Hipnos tem asas na cabeça?

                 Parece que o estado de vigília nos induz à memória. Mas por quê? Ciro dos Anjos sugere que há uma batalha sendo travada nos...