quinta-feira, 22 de maio de 2025

A Lunaridade de Orfeu


Em duas postagens anteriores, intituladas respectivamente de "Heróis Lunares" e "Heróis Solares", tive a audácia de classificar alguns heróis em determinados tipos astrológicos, dentre os quais estava presente a figura de Orfeu, o poeta, profeta, místico e herói grego. Para Orfeu, determinei-lhe a lunaridade. Atribuí a Orfeu a qualidade de desbravador dos mistérios ctônicos, com algo de encantado/encantador e algo de iludido. Embora sejam percepções corretas em sua essência, são ainda articulações embrionárias que carecem de maior elaboração. Eis-me aqui para dar continuidade à tarefa.

É trabalho ingrato ilustrar ou dar luz a uma intuição óbvia. Ou, ao menos, que me foi óbvia. Jamais cogitei a hipótese de associar a figura de Orfeu a qualquer outro astro que não à própria Lua. Colocando-lhe os pingos nos is de forma mais sinestésica, é-me muito clara a frieza de constituição, o oraculismo, a magia noturna, a melancolia e a graveza lúgubre e soturna que circundam todo o imaginário do herói. Mas é possível também desenvolver alguns argumentos que fortaleçam essa percepção, como veremos a seguir. 

Em primeiro lugar, vamos nos deter com mais atenção no porquê de Orfeu não se enquadrar bem nos arquétipos saturninos, joviais, marciais, venusianos ou mercuriais. 

I. Apesar de sua graveza melancólica, Orfeu não é nem de longe um realista, um organizador ou um controlador. Ao contrário: Orfeu se qualifica como um desafiador da ordem cósmica, como alguém que quer deter o controle do mundo 'sublunar' pela própria capacidade de encantamento e de êxtase, ou seja, por participação e por deleite. Por essas razões, dificilmente poder-se-ia chamar Orfeu de saturnino. Existe uma imperfeição, uma multiplicidade e uma instabilidade nos desejos de Orfeu, instabilidade que se afigura como a própria autoimagem do herói, como examinaremos mais à frente.

II. Apesar de sê-lhe atribuído o papel sacerdotal (ora de Dioniso, ora de Apolo), o sacerdócio de Orfeu é inteiramente intramundano. Quer servir de receptáculo da experiência da verdade, sacrificando tudo o que há de suspenso e elevado para tal. Há muito pouco de expansivo e de aéreo em Orfeu: trata-se de um herói contraído, de um herói que quer tudo para si. Tenta salvar Eurídice e fracassa, porque não quer sacrificar-se por Eurídice — não sacrificará nenhum capricho por ela —, mas mantê-la junto a todos os desejos que lhe aprouverem. De modo que a fumaça do sacrifício sacerdotal tão típica de Júpiter (e Sagitário) torna-se um elemento muito distante das ações de Orfeu. Por essas razões, não poderíamos chamar Orfeu de jovial.

III. Apesar de sua vocação cósmica e mítica como músico, Orfeu não apresenta mais traços marciais. Sua poesia cósmica e contemplação melancólica da passagem do tempo parecem afastá-lo em demasia da beligerância e da conquista. Por essas razões, não poderíamos chamar Orfeu de marcial.

IV. Apesar de sua aparente natureza sedutora, seria mais plausível afirmar que Orfeu é maior vítima de um encanto exterior do que mestre ele mesmo de um encantamento profundo e duradouro sobre outrem. Orfeu comove multidões e até deuses com seu canto, mas só temporariamente e sob certas condições. Orfeu sempre busca o encanto de sua lira a fim de obter uma musa inefável, uma musa que é sempre reflexo dele, parte dele, extensão dele, seja essa musa alguma expressão da arte (pensemos aqui no Orfeu de Cocteau) ou a própria Euridice, que, consoante Paul Diel, seria o simbolismo da alma órfica, do centro de sua alma. É sempre fracassado em sua tentativa; não resgata a musa, nem mesmo por ímpeto carnal — é como se nem mesmo a desejasse o suficiente. Isso porque Orfeu se distrai com todo e qualquer estímulo que surge em seu caminho: não tendo clareza do que quer, quer tudo que existe sob a face da terra. Este querer pode se afigurar tanto como um desejo erótico como num desejo autodestrutivo e antierótico, com delírios ascéticos de todo tipo. Orfeu também é um mau guia: não consegue conduzir Eurídice pra fora do Hades, sendo incapaz de produzir o bem, seja o bem menor de Vênus ou o bem maior de Júpiter. Por essas razões, não poderíamos chamar Orfeu de venusiano.

V. Apesar de sua volatilidade e dispersão perante as possibilidades, Orfeu não age com qualquer resquício de inteligência e obsessão organizacional. Ao contrário, é vítima de uma obsessão cujos contornos lhe são misteriosos. Não é um herói notável por sua capacidade comunicativa, nem pelo fluxo neurótico de consciência; é misterioso até para si, movendo-se pelo talento e pelo dom da transformação, por tudo aquilo que simplesmente irradia em sua constituição (não se trata a Lua do astro cujo pecado é a Preguiça? Cuja representação antropomórfica seria aquela do Bebê?), transitando entre os diferentes planos de existência em busca de uma resposta poética, de uma imagem sintetizante cuja natureza é necessariamente estilhaçada, ainda que não a perceba como tal. Busca uma pureza poética, uma síntese de estados anímicos e uma unidade múltipla que só são possíveis dentro da ilusão da imagem. Por essas razões, por essa falta de discernimento intelectivo, não poderíamos chamar Orfeu de mercurial.

Resta-nos o exame do Sol e da Lua. Existe uma via na qual Orfeu possa ser posto em posição de solaridade: numa cosmologia órfica. Mas este é um assunto demasiado complexo para os propósitos desta postagem, cujo exame será adiado para uma data futura. Quanto à lunaridade, bem, desta podemos tratar com algo de convicção.

Enquanto regente dos ciclos de geração e corrupção, a Lua é naturalmente um astro transformador. Mas sua posição tradicional a coloca — enquanto símbolo máximo do feminino — como o ponto limítrofe entre as formas perecíveis e supraperecíveis, entre o que é passível de mutação cíclica e aquilo que não é. Todos os demais astros a partir de Mercúrio configuram o que chamamos de mundo supralunar, ou seja, tudo aquilo que é significador constante e impassível. Estando a lua à beira dos portões, mas do lado de cá, seria ela mesma regente dos ciclos de transformação terrena tanto quanto seria também ela um corpo modificado neste processo, um corpo que assume formas distintas ao longo do mês. Embora esta qualificação seja óbvia, faz-se necessária para o que vem a seguir. 

A Lua é também um astro cuja constituição é a água, fria e úmida em sua natureza. A água é o elemento de matéria relativa, de densidade relativa — sendo a terra o correspondente da densidade "absoluta". Dum ponto de vista alquímico, seus três pilares metafísicos — Enxofre, Mercúrio e Sal — seriam analogados pelos símbolos naturais Sol, Lua e Terra. Esta mesma tríade seria correspondente à constituição tripartite da natureza humana na tradição ocidental, Espírito, Alma e Corpo, respectivamente. Trata-se a Lua, portanto, do astro de matéria relativa que rege os estados anímicos, as transformações da alma, do conjunto de aspirações, sentimentos e de tudo aquilo que é ávido, de tudo aquilo que anseia pela própria transformação e pela realização mais profunda do desejo. É o feminino saltitante que pode nos elevar ou nos despedaçar, como as Bacantes que despedaçam Orfeu...

Fica então clara a analogia: Orfeu é um viajante, mas não um viajante universal, nem comerciante, nem itinerante. Orfeu é um viajante que transita entre diferentes estados anímicos, entre diferentes pontos da topologia de sua alma. Viaja ao Hades para resgatar Eurídice como quem viaja ao inferno do Ser. Transita entre o Apolíneo e o Dionisíaco, entre a concentração hipotética do ascetismo e a dispersão de excitação máxima da devassidão. Tenta racionalizar e entender a própria alma através dela mesma, sem jamais entender qual papel deve exercer em definitivo, sem jamais aceitar um serviço, um sacrifício genuíno, pois se recusa a abrir mão de quaisquer desejos. Reflete então a imagem do poeta que é devorado pela própria criação, que se enamora das próprias imagens como se fossem mais reais do que a própria realidade. É o arquétipo do poeta que se recusa a poetizar. Vê a realidade anímica, então, como um lunático. Circunscreve a própria Imago Animae pela via da obsessão, pela escravidão dos desejos. Seus desejos, naturalmente impossíveis, aprisionam-lhe num aglomerado de contradições e ilusões. Tais contradições, quando levadas a termo na realidade, despedaçam-lhe o corpo, como consequência lógica de suas ações, de sua recusa em aceitar as leis da causalidade como maiores (e mais poderosas) que seus delírios. Incapaz de reconhecer-se como alguém cujo fracasso fundamental é o da formação de uma identidade em conformidade com a ordem cósmica, mantém-se em negação até mesmo quando vítima do karma, tornando-se assim a imagem perfeita da natureza profunda dos artistas modernos, dos poetas malditos de metrópole, dos esteticistas, formalistas e lunáticos inertes; torna-se a imagem quintessencial do poeta em eterna recusa de resolução, de um ponto final; torna-se a imagem do poeta em eterna recusa de tomar parte nos limites verdadeiros de seu humilde ofício. 

sábado, 19 de abril de 2025

A Crucificação Segundo Peter Paul Rubens

Com o espírito contrito e o coração inflamado perante o eterno testamento da salvação dos homens, Rubens captura, com o olhar fulgurante dos barrocos e com a devoção numinosa dos católicos, a maior visão já testemunhada.

É típico da obra de Rubens aquele aspecto o qual poderíamos chamar de espírito flamejante, ou apenas de essência do flamenco. Vê-se na composição a abundância harmônica de formas quase torcidas em quase-espirais, em quase-redemoinhos. Essas torções jamais viram deformidade. O efeito obtido, em verdade, é o contrário: assim como em quase todo mestre barroco, a pintura parece transbordar da tela e nos iludir com a insinuação de um movimento, com a extensão de um tender, com a direção de um tornar-se, fazendo com que pareça estar movendo-se ciclicamente. Com efeito, grande parte das obras de Rubens se utiliza dessa 'chama' para expressar a natureza enquanto propósito. Referindo-nos aqui a seu majestoso trabalho que captura a morte do Cristo, seu gênio artístico atinge o auge da expressão ígnea no pictórico: ilustra o olhar dos católicos sobre a Paixão.

O Corpo de Cristo é o eixo central da pintura, como deve ser. Mas o efeito atingido por essa centralidade é mais que o de uma simples organização geométrica. É gravitacional, centrípeto. Talvez o elemento de maior brilhantismo, neste sentido, seja o corpo do Bom ladrão. O soldado romano sobe para finalizar o trabalho e quebrar as pernas de São Dimas, que estão verdadeiramente tensas, gritando de dor. Mas o peito de São Dimas não foge à morte, e toda a musculatura superior de seu corpo aponta para o Cristo. Seus braços e pernas se agarram em desespero, mas seu peito se entrega à Paixão. Na contorção das formas, Rubens expressa o que a alma quer, frequentemente em relutância ao apetite físico. Em contraste, o segundo ladrão expressa o contrário: desespera-se, precipita-se com os braços em direção ao Cristo perante a morte, num gesto irracional de busca pelo leme, pelo seu salvaguarda. Tenta alcançar-lhe com os braços, mas não entrega sua alma a Deus. Ambos vão em direção ao ponto gravitacional do Cristo, ao eixo da realidade.

Na parte inferior da pintura, mais significados: A Lança de Longinus empunhada por Cassius cria um vínculo entre ele mesmo, que é quem concentra toda a expressão marcial da pintura, e aquele que é o logos divino e o centro pictórico da luz. Cassius perfura o corpo de Cristo quase como se precisasse descobrir, perfurando-lhe o corpo glorioso, de que um Deus é feito. É como se Marte quisesse a glória do Sol. Logo abaixo, mais à direita, vê-se a mão suplicante e os cabelos soltos de Maria Madalena, em um gesto venusiano desesperado, em um pedido de paz e de concórdia. Seu sofrimento é afluente, erótico, tão digno quanto o dos demais, e seus cabelos dourados são a coisa mais próxima de um alívio pros olhos. São João resigna toda sua marcialidade juvenil e mantém-se enlutado, ao lado. 

Cada um dos corpos expressa um tipo diferente de sofrimento, de estupor, de pathos: são os diferentes efeitos da paixão sobre as diferentes personagens que tomaram parte no sacrifício dos sacrifícios. A circularidade com que as formas se delineiam é típica da genialidade de Rubens: é por meio dela que tendem umas às outras, que conversam-se entre si, que reúnem-se num único gesto coletivo, num tormento partilhado. Ângulos retos tendem a afirmar a individualidade e a fixidez. A elipse tende ao movimento e à partilha.

A Paixão expressa-se celestialmente no tormento das nuvens, na sugestão da tempestade. Terrestrialmente, o solene luto de Deus é irradiado e refletido pelo sofrimento das criaturas. Também os animais não escapam de sua ira: enquanto o cavalo de Cassius vira a face, envergonhado do ato de seu cavaleiro, o cavalo do outro soldado se prostra perante o Filho do Homem, curvando-lhe a cabeça.

Por fim, a Mater Dolorosa, que escoa todo o sofrimento da ação e sustenta-o na graveza de seu luto. O plúmbeo véu que cobre seu pálido corpo é justamente onde repousamos o olhar para retirar-nos momentaneamente (e eternamente) do sofrimento testemunhado. Ambos, rigor devocional e solene caridade tomam parte em seu infinitamente digno sofrimento. Pedimos-lhe por misericórdia tal como faríamos, como faremos. Rogai por nós, Santa Mãe de Deus.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

O Diabo de Milton, Júpiter e Saturno na Obra de Cabanel


À revelia de sua posição histórica enquanto marco do neoclassicismo, Cabanel expressa estrondosa devoção a Júpiter, Saturno, aos arcontes e ao espírito romântico em seu icônico trabalho que dá contornos ao Lúcifer de Milton.

Pode-se resumir toda a dinâmica nos substantivos abstratos "expansão" e "contração". Enquanto as potestades — românticas, eróticas, com algo de profanidade, com algo de uma interpretação inevitavelmente erótica e venusiana da natureza do amor — rumam a leste (do nosso ponto de vista), Lúcifer fica para trás. Não é que Lúcifer seja apenas deixado para trás. Ele fica para trás. Sua rebeldia o aprisiona, sua liberdade o acorrenta.

O produto da queda (rejeição do Amor e da Liberdade em Deus) é o fechamento causal de Saturno. As potestades voam porque são como Júpiter. Lúcifer é como Saturno. Os braços de Lúcifer formam um anel, que recruta-lhe os músculos e tensiona-lhe o ser. Suas pernas não se expandem, mas se contraem. Suas asas, membros cuja finalidade é a da expansão, contraem-se elipticamente em torno do olhar feérico do diabo. A spira mirabillis é obtida por meio deste movimento de contração, da contração Saturnina do demônio. Mira o leste e permanece no oeste, no ocaso. Mira o nascer do sol e manifesta-se no poente. Mira a sua oposição natural, a da caridade, com perversão, com graveza. E com dor. Com ódio. Dói-lhe a alma exercer a odiosa função de adversário. E ufana-se por meio dela.

Ufana-se por ser o demônio da circularidade antropoteísta e regente do orgulho romântico. Retém fagulhas joviais na ponta das penas, não se divorciando inteiramente de sua gens, nessa acepção romântica e Miltoniana. Os frutos da pintura não deixam enganar: ainda nos dias de hoje, o trabalho de Cabanel suscita emoções contraditórias no coração de todos os que têm fascínio pelo mal, fascínio pelo abismo, fascínio sombrio e erótico com o ocaso e com o casamento abominável com o nada e com o apagar de luzes da civilização.

Um dos grandes trabalhos saturninos de todos os tempos.

terça-feira, 11 de março de 2025

Mito, Poética e Símbolo


Eis os três talismãs do discurso simbolizante: Mito, Poética e Símbolo.


O mito, mais primitivo dos esforços significantes e sintetizantes, faz como quem procura limpar uma estátua de gesso quase seca com cerdas ainda um pouco sujas. Ébria de extravagâncias mas inteligível em seu prisma essencial, a figura mítica suscita no espírito os primeiros contornos do que entende-se posteriormente como forma. Não dispensando contudo a grosseria, a gulodice, a empáfia e a rispidez inerentes a uma realidade autodeterminada e petulante, traz também consigo a repugnância do charco, a imundice do sexo ilegítimo e a perturbação cósmica do excessus na realidade. Para cada gesto nobre e devocional, duas jarras de terror e nenhuma libação. O mito, em linhas gerais, propõe um tipo de unidade e de síntese, sim, mas não o tipo de síntese que se é levado a pensar quando contraposto ao poema e ao símbolo. É o tipo de síntese que vem da captura imaginativa e primitiva das vozes, do canto, do ritmo e da sensibilidade ctônica em exaltação máxima. Trata-se da primeira expressão de mimésis, de uma mimésis que é naturalmente obnubilada pelos desconfortos existenciais profundos de um homem em busca da cura para o caos, mas sem os meios para tal.

Este caos, sem ter para onde ir, transborda em toda sua expressão tortuosa da ordem. Esta ordem, imposta à mente do homem primitivo, seja por seu deslumbramento com a realidade empírica objetiva e suas hierofanias, seja por meio de alguma revelação, apresenta-se como a primeira expressão dos modos de ação da natureza e a síntese de seus movimentos de expansão e contração, de dissolução e de coagulação. Ainda sem poder expressar o problema do ser em sua unidade essencial, o mito ilustra o enamoramento e o eventual triunfo eterno e cíclico da ordem sobre o caos, em suas mais sutis expressões naturais e preternaturais. O escultor que deu forma à matéria-prima primeva e gerou o mito, deixou sobre este os vestígios do trabalho manual. Existe ordem afetiva e erótica no caos do mito, assim como existe uma desordem exaltada e superabundante em sua silhueta. O mito leva adiante toda a matéria-prima necessária para que a linhagem subsequente de artesãos se debruce sobre. Ao dividir o trabalho do primeiro artesão, que simboliza o coletivo e o espírito de um determinado povo, surgem os primeiros esforços poéticos.

O molde em que o mito se criou foi passado adiante, mas sua matéria-prima foi decomposta em um número de assuntos tão grande quanto o número de homens ainda não nascidos. A partir dessa descompactação surgiu um conjunto de objetos simbólicos, um conjunto de atos significados que induziram atos vividos no contexto do rito e da liturgia antiga. Esses símbolos, esses atos significados, esses objetos simbólicos, deram luz ao progresso da consciência e da diferenciação. Os filósofos da natureza buscaram compreender o problema do ente no âmbito da ciência, mas já os símbolos deram forma à capacidade de inteligir a realidade quando mais desnuda das aparências e do terror existencial. As armas litúrgicas, o Omphalos e as colunas jônicas apontam com muita clareza para a capacidade de significar em ato. O desenvolvimento da poesia vai pela mesma seara no tocante à objetificação dos assuntos humanos, neste caso, por meio da versificação e da metrificação. Uma única "mão" espiritual forjou a poesia do mito, mas ela falava por toda a comunidade. Agora toda a comunidade se divide, e cada poeta expressa e dá forma aos próprios problemas. Apoiados na base mítica que exorta seu terror existencial de forma extensiva, debruçam-se enfim sobre os fantasmas restantes.

O progressivo aperfeiçoamento do pensamento por trás da poesia, se comparado à condição de terror aglutinado do mito primordial, remonta a imagem do escultor que deixou sua obra por finalizar, mas que marcou o espírito de todas as gerações que o sucederam. A perfeição da forma poética não lhe foi possível, mas o resplendor de seu espírito foi ofuscante. O desejo de expressar-se com tamanha envergadura é matéria universal pros poetas. Mas não é na simples réplica da fórmula mítica que um poeta poderia atingir a grandeza de expressão, e sim no desenvolvimento abundante da própria capacidade de expressão. Refraseando: poderiam todos os poetas gregos serem eles mesmos Homeros? Não, mas poderiam ser eles Píndaros e Simónides. Poderiam todos os poetas falar de matéria tão grande quanto a de Homero? Não, mas poderiam eles dar seguimento à obra inacabada, preparando o terreno para a rearticulação do mito por meio do teatro. Na altura em que o Prometeu Acorrentado de Ésquilo foi possível, muito havia sido feito. A poética desenvolveu a capacidade de expressar de maneira diferenciada e esclarecida as muitas narrativas possíveis. Diferenciou os gêneros possíveis à vida humana, e dentro dos gêneros possíveis, as narrativas hipotéticas desdobram o que certas premissas de fato implicam. Tais premissas, compactadas e indiferenciadas na obra mítica, ganham contornos, desenvolvem-se e elucidam a vida. O que aconteceria a um deus que vê valor na humanidade enquanto potência, enquanto semente da cultura e da civilização, um deus que, em verdade, vê mais valor nos homens dos que nos próprios deuses? Qual a situação cósmica de um príncipe que deve dissolver seu reino para que o mesmo reino possa renascer das cinzas? Qual a situação cósmica do adultério? E da hipótese do adultério não-realizado? No que pensa o Minotauro no centro do labirinto?

O colosso mítico da poesia primordial é a força centrípeta para onde apontam as vozes e as penas dos poetas, mas o número de monumentos de proporções incalculáveis que a poética erigiu é tão alto quanto o da incalculável extensão do prodígio de sua fertilidade cultural, que ascende da história da humanidade até as livrarias da eternidade. A poética criou, cria e criará a substância das combinações possíveis da existência humana. Essa substância tem um valor de verdade, um valor de existência que combina todos os tons, todos os módulos, todas as melodias e harmonias possíveis. No desenvolvimento da poética, criou-se a forma das formas. A forma que é capaz de formar e formar; a forma que é capaz de dar molde ao hipotético, e de modular as implicações mais ínfimas e diminutas que se escondem por detrás da reflexão e da ação humana. O faz por meio da combinação verdadeiramente exaustiva das hipóteses harmônicas, inteligíveis e portanto belas do nosso exprimir. Se o escultor do mito deixa as marcas dos dedos por toda a extensão de sua obra parida e quase-perfeita, o poeta-escultor trabalha com as mais precisas ferramentas em sua inalcançável busca pela perfeição das formas.

Perante tal prodígio, de que resta ao símbolo que não seja exaurido pela perfeição autoevidente da poesia? Bem, algumas coisas, ou talvez somente uma, da mais elevada importância. Primeiro valeria dizer que o símbolo é o que torna possível que todos estes objetos, dotados de infinita complexidade interior (e muitas vezes exterior) possam ser contemplados com valor de verdade, com sujeito e predicado. O símbolo é o que permite que um objeto mítico e poético possa ser entendido em sua geralidade, e não como a soma das partes, ou mesmo como a subtração. Sejam os números, o Zodíaco ou os próprios astros, o símbolo descende do reino do imperecível. Quando aplicado à realidade perecível, é capaz de julgar-lhe de acordo com suas propriedades enquanto ser. Se a poética é o domínio da expressão das hipóteses, estas hipóteses, quando desenvolvidas e, por fim, exauridas, assumem um valor próprio de existência que excede a soma de suas partes, ou seja, excedem o valor que um texto possa assumir enquanto um auxílio moral ou enquanto uma ficção inebriante.

Quando os medievais pegavam um texto da literatura romana, não aplicavam sobre este um valor subtraído ou dividido; buscavam exauri-lo. Buscavam observá-lo até mesmo com intempestiva crença de que tudo que havia sido dito naquele texto pudesse ser verdadeiro. A busca pelo significado mais profundo de um texto era a norma, não a exceção. Nasce como produto dessa busca pela síntese entre o micro e o macrocosmo, entre o imperecível e o perecível, o Convivio de Dante, no qual o poeta articula os níveis de interpretação de uma obra "ficcional", a saber, Literal, Alegórico, Moral e Anagógico. A articulação desses níveis se dá justamente por uma investigação do valor de verdade que um texto poético possui. Chamar-lhe de ficção seria descabido; chamar-lhe de texto sagrado seria ainda pior. Seria acertado, porém, partir da premissa de que um texto não é apenas um texto, assim como a palavra não é só um grupo de letras, nem uma frase um conjunto de palavras, e que as alegorias de um texto expressam, junto a suas implicações morais, a modulação consciente na mente de quem o lê de que há um valor existencial naquele objeto. Se o mito dá os primeiros contornos da matéria-prima e o poeta extrai dela a possibilidade de inteligir a realidade por meio das formas, o símbolo expressa o valor de verdade que todo homem sobre a face da terra deve ser capaz de ver, em qualquer lugar, sob qualquer disfarce, pois é no símbolo que somos capazes de inferir o essencial, que somos capazes de tensionar a realidade para que ela vá além das aparências, das ilusões e de tudo aquilo que se intrometa no caminho do homem até o centro da criação, expresso neste breve relato como o essencial por detrás de todos os frutos sinceros da cultura humana.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Billy Bat é Metalinguagem e Meta-história

Billy Bat é um mangá que suscitará muitas postagens neste blog.

Kevin Yamagata e Kevin Goodman podem ser vistos como alter egos de Naoki Urasawa em pontos distintos de sua maturidade poética. Essa me parece ser uma hipótese razoável. Kevin Yamagata é sua raíz criativa primeira, a psicologia profunda do japonês nas raízes da cultura popular. Imagino Urasawa, ao escrever a história do Morcego, dando-se conta de que essa imagem de uma entidade que opera como uma figura mefistotélica tem tanto uma raíz na psicologia profunda dos japoneses (e refiro-me aqui tanto ao imaginário evocado pelos ninjas quanto à toda lunaridade no modo de agir dos japoneses, que imitam, copiam e transpõem ideias estrangeiras à sua maneira, na maioria das vezes embelezadas, plasticamente aperfeiçoadas e de maneira perfeitamente ignorante quanto às suas origens) quanto consequências históricas.

Acredito que o tempo fictício da criação e ascensão do Billy Bat de Kevin Yamagata ser mais ou menos concomitante com o começo da ascensão de Tezuka seja parte de sua meditação e confissão como um artista japonês e soberbo. As ideias de um artista surgem, em um primeiro momento, essencialmente de seu horizonte de consciência, a saber, sua história, sua comunidade, sua pátria e tudo aquilo que lhe é caro e familiar. 

Kevin Yamagata percebe a partir de então que talvez tenha roubado sua ideia inconscientemente de outro autor de mangá, e Urasawa transforma aqui essa meditação individual em um psicodrama de proporções históricas. Mas esse é um método de máxima dificuldade narrativa, o qual me remete inevitavelmente ao El Libro de Arena do Jorge Luís Borges, que funciona como um tell-tale, como um compêndio de narrativas que são simultaneamente hipóteses e confissões pessoais, nos quais cada hipótese simboliza algo da psicologia profunda do autor. 

A narrativa histórica criada por Urasawa é repleta de inserções deliberadas de japoneses que influenciam marginalmente os rumos da história, mas quase sempre a efeito de fumaça no grande esquema das coisas. Entretanto, tais figuras são capazes de influenciar o desfecho pessoal de muitas personagens com grande impacto. Embora Urasawa tome pra si (e para o Japão) os louros da genialidade, admite simultaneamente que a influência do gênio tem uma via de mão dupla. Parte dessa criação tem efeito imprevisível e devastador. 

A partir do momento em que uma ideia é lançada para o mundo, essa ideia será manobrada e manipulada por seu espírito, e contribuirá para o avanço implacável da narrativa histórica até seu inevitável desfecho cíclico. Mas a outra parte dessa criação pertence à humanidade. Então um homem qualquer, seja ele um miserável do interior da Bahia ou um indigente da Alemanha Oriental, pode abrir um quadrinho, lê-lo e ser influenciado positivamente pela riqueza de possibilidades que são geradas pelo reino da poética e da fantasia. 

Muito embora a narrativa histórica pertença aos vencedores, aos que coagulam as grandes ambições e que cumprem os papéis que a machina fatalis lhes designa, existe ainda uma vasta porção de terra inabitada que pode servir de moradia aos que vivem a plenitude de suas vidas em devoção ao ato, ao pensamento, às ações e às produções do tempo, que não almejam a grandeza da história ou o êxtase do teatro do mundo, mas a plenitude da eternidade. 

Kevin Goodman me parece ser um momento de amadurecimento da relação vaidosa entre o artista e sua identidade, mas isso fica pra um outro post.

Billy Bat é metalinguagem e meta-história. É metalinguagem de artista e meta-história das gentes.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Zerkalo e o Mito Irônico


De que fala o filme "O Espelho" de Andrei Tarkovsky? Seria um delírio autoindulgente? Ou uma terapia poética? Talvez uma confissão dos pecados do russo enquanto homem e poeta? Ou uma junção disso tudo? A resposta parece tender para a última hipótese, muito pelo filme do russo consistir num exercício de meditação introspectiva irônica, nos termos do Northrop Frye, que almeja a contemplação dos processos desagregadores que fragmentam a alma do diretor, mas que fazem sua arte. A narrativa irônica tem como característica central não apenas a sub capacitação de seus personagens em detrimento de uma situação narrativa, mas também a profunda incompreensão dos mesmos no que diz respeito à própria interioridade. O herói irônico não entende a própria alma.




Utilizando-se do Espelho como um símbolo universal para a alma humana, o cineasta incumbe-se da tarefa de reconciliar seu mito pessoal (microcosmo) com o mito macrocósmico de seu horizonte de consciência, mito este que toma as feições pálidas e austeras da mãe Rússia em todos os seus desdobramentos no contexto da primeira metade do século XX.

A mãe do cineasta, personagem central do mito introspectivo do poeta, é a ponte que liga os dois mundos – o mito do poeta e o mito da pátria, atuando tanto como o símbolo que melhor descreve sua alma, lhe definindo os contornos substanciais, assim como simboliza a esplendorosa Mãe Rússia. Operária de prensas móveis, o esprit de corps que evoca faz parte do mito russo em amplo sentido: o imaginário das planícies, a horizontalidade extrema da espiritualidade russa, a caminhada pela estepe, as chamas da revolução que emergem da passionalidade dos povos – chamas essas que nunca alcançam de fato a transcendentalidade ou a teofania, como se queixa o narrador quando as compara a uma pálida impressão das chamas angelicais de Moisés. A presença soberana da mãe do diretor e poeta é o mito mais importante do filme, já que é nela que tanto as potências simbolizantes quanto a expressividade dos afetos se manifesta. A alma é a silhueta do homem. 



Disso se segue a tipologia antitranscendental e numinosa da alma do russo, que é a de todo o filme: em determinado ponto as elucubrações do cineasta sobre o cristianismo revelam toda sua condição espiritual. Diz algo sobre terem deixado o mundo cristão para serem cristãos – referindo-se aqui ao povo russo e à grande cisma. Odeia Dostoiévski e todos os avanços que o literato 'faz' em direção a sua ex-mulher. Odeia a reverência a Dostoiévski, o mais aclamado dos autores russos, por causa de sua flagrante atitude crítica ao espírito russo, ao mesmo tempo em que ama sua pátria e se sente mais digno de representá-la. Batiza o filho de Ignat num delírio solar e masculino, mas é na elevação do corpo aquático de sua mãe que vê redenção. Vê-se como emasculado poeta que é prescindível por soldados e forasteiros. Vê sua pátria com carinho e pesar; pesar por conseguir amá-la e contemplá-la em imensa desproporção à sua capacidade de irradiar, moldar e orgulhá-la. Vê o fogo como um elemento destrutivo, como parte do imaginário bélico. Nunca deixa de ser um pobre menino do interior. 




É nessa insuficiência solar que as imagens do filme fazem sentido. Existe uma cosmogonia elementar nas imagens flagradas por Tarkovsky: o fogo destrói as imagens no 'tempo' (em cores), ao passo que sua 'eternidade' parece ser abissal e aquosa (em preto e branco). A terra é simbolizada pela planície da marcha soviética; o ar surge de forma muito rarefeita nos últimos suspiros do poeta, simbolizado pelo pássaro. Se dum ponto de vista tradicional existe uma hierarquia clara entre os elementos que simbolizam a irradiação e a lei e os elementos que simbolizam a submissão (ar, fogo, água e terra, nesta ordem), vê-se diferente na alma do russo: é na Sofia, no Das Ewig-Weibliche, na força criativa abissal do Pégaso e das Musas – a pátria é sua musa – que a "eternidade" é cristalizada. Tarkovsky crê no feminino sobre o masculino porque ama o feminino e teme o masculino. Ama as artes e despreza a razão. É a vitória do eros sobre o logos, da alma sobre o espírito.



No fim de sua confissão, termina por admitir derrota frente a Dostoiévski. Cai de cama sem um único sintoma físico. Cai de cama ao olhar pro espelho. Vê-se como um indigente das coisas do espírito. Recorre à solução alquímica: Igne natura renovatur integra, mas menos por ser um devoto de INRI do que por ser devoto de Dante e de sua descida aos infernos – o filme admite sua crise rumo ao bosque sombrio nos últimos segundos. Crê nos ciclos poéticos como os pagãos creram nos ciclos das estações, como um eterno processo dialético – agora cristalizado em sua obra – de fins e recomeços, de morte e renascimento. Ao se permitir morrer na tela, admite-se por fim como um desses artistas que acharam no cinema um recurso último para a escandalosa confissão megalomaníaca dos pecados e das perversões como matéria-prima de que são feitos seus sonhos. 




sábado, 3 de agosto de 2024

A tecnognose e o triunfo da natureza sobre o homem



Out, out, brief candle!
Life’s but a walking shadow, a poor player
That struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more; it is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.

Macbeth.

A tecnognose, termo cunhado por Hermínio Fontes em seu livro Experimentum Humanum, é um tema amplamente popularizado e pouco entendido entre os ilustres membros da nova intelectualidade brasileira. O termo consiste na combinação de duas palavras superficialmente antagônicas, já que a concepção de técnica em sentido tradicional seria radicalmente antignóstica, consistindo essencialmente num recurso que visa o auxílio à vida humana por meio da  intervenção no mundo material. Todavia, a combinação das palavras aponta muito mais para a fragilidade do entendimento da tecnologia como algo controlável dentro de uma sociedade secularizada, já que seus limites excederam há muito o interesse de concórdia com a natureza, ou mesmo o de manipulação exclusiva do inorgânico pelo orgânico. A tecnologia que poderia ser tida como algo benéfico, controlado, que visa o auxílio da vida do homem é algo muito distante da perspectiva que a engenharia biológica promoveu desde o século XIX, por exemplo. Tornando sua influência algo cada vez mais intoxicante, a tecnologia passou a contemplar os interesses gnosticizantes da obtenção de um conhecimento salvífico por meio da imanência, como na obtenção do moto perpétuo, projeto que tem seu ápice na corrida atômica, assim como por meio dos esforços transhumanistas de forma geral.

O contexto em que a filosofia da tecnologia nasce é o de um mundo pós-revolução industrial, que investiga as minúcias na ruptura entre a visão clássica da natureza, natura naturans, a natureza ativa que delineia os propósitos divinos, e a visão de natura naturata, uma natureza estratificada, entendida como tudo aquilo que simplesmente é. Nesse contexto, subproduto do projeto iluminista de mecanização do homem, entende-se a natureza como uma matéria-prima que deve ter como agente principal os esforços prometeicos do homem, desligada então de seu thelos. Surgem nesse contexto teorias como a antropologia tecnológica de Ernst Kapp, uma antropologia baseada na ideia de que todo artefado tecnológico já criado pelo homem se trataria na verdade de uma projeção antropomórfica, uma projeção de características exclusivamente humanas. Este é um dos esforços teóricos de racionalizar as muitas utopias e paraísos terrestres ansiados por uma humanidade bastarda, exilada, que age à revelia da graça. Kapp defendia que a natureza humana só poderia ser compreendida através dos artefatos técnicos, favorecendo assim a "meta história da tecnologia" como conhecimento quintessencial da auto compreensão do homem, que antes de ter acesso à técnica seria tido como o homo abisconditus, em estado de ocultação, e que enfim se tornaria o homo manifestus, o homem autoconsciente. Não é necessário dizer que essa teoria vai na contramão da meta história do logos, que entende o propósito nos esforços do homem antigo como volições orientadas para uma finalidade religiosa e simbólica no mais das vezes: basta observar a meta história defendida por Mircea Eliade quando o mesmo trata da elaboração de armas criadas primeiro como objetos simbólicos, como é o caso das pedras-de-raio feitas de meteoritos, que funcionavam como símbolos das hierofanias do raio e da queda dos astros, hierofanias estas que simbolizavam, numa concepção tradicional, as intervenções do céu sobre a terra. 

É claro que o desenvolvimento da tecnologia em conjunto com os avanços da eletricidade dá luz a novas bestas: o que se encontrava perdido pela história das ideias, fragmentado, diluído e insinuado, pôde enfim ganhar vida através da obtenção dos recursos necessários. A digitalização da sociedade é um processo irreversível de alquimia quantitativa. O ponto mais importante nesse processo é a gradual e irreversível ascensão da informação a um estatuto ontológico que a aproxima do espírito e a distancia da matéria, tornando assim a obtenção e o controle da informação e dos dados a imanentização do que antes não passava de uma teoria do conhecimento salvífico e de um desejo pela experiência da transcendência. A sublimação da informação se torna assim o ápice de um tipo novo de projeto gnosticizante, um projeto que visa a transcendência da condição humana por meio da maximização sensorial, da obtenção de corpos mais fortes que sirvam de receptáculo para nossas mentes — que passam a ser vistas como análogas a computadores. 

Pode-se entender com profundidade o delírio de controle da natureza em suas representações simbólicas na ficção, que costumam manifestar-se no tropo do tecnognóstico que anseia por um triunfo sobre o feminino. O seio da mãe que Demian quer conquistar na obra homônima de Hermann Hesse e a Eva do Futuro de L'Isle Adam são grandes exemplos dessa correlação entre a adesão de um estilo de vida fisicamente ativo e espiritualmente ocioso com a devoção ao feminino como um símbolo da natureza. A devoção ao mundo material antevê a decadência do espírito do homem.

No conto "O Homem Invisível" do primeiro livro dos contos do Padre Brown, vemos a história de uma Laura que é disputada por dois homens que querem sua mão. Laura evoca a musa de Petrarca, a qual tanto Otto Preminger quanto David Lynch prestam tributo em suas obras. Após dizer-lhes que são homens incapazes de formar uma vida por conta própria, os dois rejeitados fazem adesão de métodos distintos para lhe conquistar: um deles, o vilão que dá nome ao conto, evoca os poderes do Anel de Giges de Platão como possibilidade da ação do absurdo sob a ocultação do ordinário, tornando-se um assassino que age disfarçado de carteiro. O outro é um tecnognóstico de fato, criador de servos robóticos cumpridores de tarefas domésticas. Tem-se aqui dois homens que se inclinam para um sistema solipsista após a rejeição do feminino, tropo que alude ao sentimento de exílio que todo gnóstico nutre em seu peito: é o momento em que, ao se sentirem rejeitados pela atração de Vênus, sentem-se coagidos à realização da própria vontade utópica através da técnica. Por meio do Anel de Giges alguém poderia simplesmente desfrutar dos prazeres do mundo sem nunca ser responsabilizado moralmente. Seria como desaparecer. Por meio de escravos artificiais alguém poderia se eximir indefinidamente do trabalho.

Todas essas implicações são elucidadas pelo mito de Hefesto que é também o mito do coxo: segundo Paul Diel, o coxo é desprovido da capacidade de se firmar por conta de sua deficiência, ilustrando assim a condição de alguém que não consegue o firmamento da própria alma. Pode se tornar alguém ressentido, insidioso e propenso à vingança por meio de jogos solipsistas e de um delírio demiúrgico. Hefesto, através de sua teia, captura sua esposa Afrodite (com quem nutre essa relação de devoção à natureza e ao feminino, sendo ela a própria Vênus) enquanto ela o trai com Ares, o deus da guerra, a manifestação da vontade marcial. Esta dinâmica entre os três deuses, os deuses que simbolizam atração (Vênus), repulsão (Marte), e a técnica (Hefesto), representa o ciclo inquebrável do qual a técnica se vê vítima quando não utilizada como uma ferramenta dos propósitos divinos. 

Quando a técnica incorre no delírio demiúrgico, toma a forma da rede de Vulcanus, a forma dessa teia que captura os amantes que representam a um só tempo sua maior obsessão e sua fonte de desgraça; quando utilizada como acessório divino, dá a luz a Palas Atena, aceitando humildemente seu papel enquanto apoio da inteligência e da vontade divina, abrindo então a cabeça de Zeus para que a deusa da pólis surja. Todos os afetos tecnognósticos fazem parte dessa rede de Vulcanus. A experiência digital, cada vez mais solipsista, ilude e manipula através dos afetos de atração e repulsão, elevando os que são digitalmente aclamados e soterrando os que de alguma forma se veem vítimas do algoritmo, da comunidade ou de qualquer conjunto de dados que atue insidiosamente por trás da tela. 

Os esforços prometeicos de expandir a inteligência humana, dum ponto de vista mitológico, são acompanhados pela punição dada por Zeus na criação da figura feminina, a figura de Pandora, como um outro símbolo do mundo material e de suas paixões. A inteligência solipsista levada ao extremo evoca o aspecto nefasto de Prometeu: o homem se torna cada vez mais solitário, cada vez mais obcecado com jogos particulares, com a pluripotência sensorial, com a experiência digital, experiência que é ao mesmo tempo catártica aos sentidos e carcereira do espírito. Levada ao extremo, a tecnognose culmina no propósito de findar os esforços do homem na busca pela perfeição, pelo amor, pelo fim da luta, do trabalho e da responsabilidade individual, diluindo a experiência ao ponto de anular as barreiras entre o masculino e o feminino. Isto é algo plenamente visível nos desenvolvimentos transhumanistas tanto do nosso cotidiano quanto na ficção, como é o caso de personagens como Motoko Kusanagi, um ciborgue de traços andróginos que funciona simultaneamente como soldado perfeito e como objeto de desejo. 

O tropo do fim da história, um outro objetivo da tecnognose, foi também brilhantemente retratado na ficção. É um tropo que consiste na busca do homem pelo fim de todo o sofrimento humano através da unificação da imagem do mundo, transformando-o cada vez mais num parque de diversões homogêneo que possibilita simulacros de experiências históricas através da "gamificação" da experiência moderna. Vemos o retrato dessa realidade em Gankutsuou, uma adaptação animada do Conde de Monte Cristo. Lá, em sua releitura futurística dos eventos descritos por Dumas, há a ilustração do ímpeto humano por reconstruir espacial e sensorialmente uma miríade de cenários históricos a fim de burlar a percepção de avanço dos tempos. A imagem de um carnaval de Veneza hospedado na lua, como vista nos primeiros episódios, é ilustrativa o suficiente do que de fato há por trás da ascensão da informação e da digitalização irrefletida da experiência: a prisão sublunar no eterno carnaval.

Quando a informação é cultuada como soberana, vemo-nos vítimas do reino da quantidade. Quando presos no reino da quantidade, estamos também presos na rede de Vulcanus. Enquanto perseguirmos a imagem do eterno feminino, estaremos presos ao que pudermos oferecer enquanto falsidade e mitologia pessoal. Seremos forçados ao aperfeiçoamento irracional do corpo, dos sentidos, de nossas capacidades e da nossa imagem, ao passo que nossa experiência espiritual se tornará cada vez mais evanescente. Quanto mais a quantidade é venerada, mais somos vítimas do azul das telas, dessa ilusão de uma experiência universal e libertadora que é essencialmente contextual e aprisionadora, tal como o mundo sublunar. Quanto mais atados à rede de Hefesto, mais nos vemos sobrepujados pelas nossas paixões e pela natureza em fúria e desordem. O destino do homem afogado nos prazeres da tecnognose é viver a ilusão do triunfo sobre a natureza, ignorante de sua trágica derrota sob os pés da desalmada Hera.

A Lunaridade de Orfeu

Em duas postagens anteriores, intituladas respectivamente de "Heróis Lunares" e "Heróis Solares", tive a audácia de clas...