domingo, 23 de junho de 2024

Tengoku to Jigoku e a moralidade japonesa

Os japoneses são estranhos. Trata-se de um povo disciplinado, colegial, artístico, folclórico, ardiloso, coletivista, burocrático, plutocrático, racialista e homogêneo. Jorge Luis Borges chamou-os de povo das letras, que substituiu a espada pelo pincel em sua gênese mítica, preocupando-se sempre mais com os festivais das estações do que com o mandato do céu, incapazes, segundo o bruxo, de intuir o certo e o errado. Para toda civilização cosmológica só existe uma ordem: a dos astros. No caso dos japoneses, toda incorporação histórica de religiões se dá num processo cumulativo de ferramentas de ordem social e de símbolos. A paixão do japonês pelas artes é visível em sua devoção ao auto cultivo de Confúcio: o aprendizado do japonês se dá por meio de um dō, da realização de um caminho unitário de transformação e de integração ao dao, ainda que a influência do mesmo no Japão seja por meio dos ensinamentos do zen, o que não cria problema algum em matéria de cosmologia do leste asiático: quase tudo vem do dao. 

Nesse processo de absorção de caminhos artísticos, contempla-se uma sociedade que pode chegar a fabricar suas próprias religiões individuais, como sugere Chris Marker em Sans Soleil (título que alude ao afastamento da sociedade japonesa do eixo solar da razão) por viverem numa experiência maximamente poética. Surge assim uma moralidade que preza muito mais pela harmonia do tecido social (a permanência na pólis), ou seja, a participação da experiência coletiva do cosmo por meio da arte do estado, do que pelo comando divino que conclama por justiça através da cisão axial entre o certo e o errado, entre o bem e o mal, entre o preto e o branco, a cisão da espada da verdade que separa pais e filhos. É nessa tensão que Akira Kurosawa trabalha em Tengoku to Jigoku (1963): no conflito axial entre o homem bom e o homem mau que divide a sociedade japonesa ao meio, revelando-lhe enfim suas qualidades celestiais e infernais.

Kingo Gondo (Toshiro Mifune) é um plutocrata que trabalhou duro para chegar às alturas. Generoso pai e rígido empresário, Gondo planeja manter-se de pé nos negócios através de uma filosofia pessoal de como se deve fazer sapatos, visando a qualidade do firmamento. Tratando-se de um empresário de escala nacional, Gondo representa um novo tipo de elite emergente no Japão pós-guerra, que é o Japão do aprendizado eficiente das mais diversas técnicas de negócios, o Japão que forma a nova elite dos bons estudantes. Sua origem humilde ilustra por si só o problema na concepção de uma sociedade idealizada em castas numa concepção cosmológica e topológica: seu filho e o filho de seu empregado brincam juntos e trocam de roupas durante a brincadeira, por se tratarem essencialmente de uma mesma gente. Gondo é um sapateiro e acredita em sua filosofia: lembra-nos do simbolismo que Paul Diel alude ao coxo nos mitos gregos (Édipo, Héfesto) como aquele que tem a alma em desequilíbrio e que precisa de firmamento. Gondo acredita no firmamento da alma como motto, em espírito legitimamente samurai.

O que faz com que Gondo atinja a graça é a aceitação do sacrifício pessoal, a contemplação da moral como um assunto de vida ou morte e a aceitação do absurdo como um assalto completo aos costumes da sociedade japonesa. Takeuchi Ginjiro, um dos criminosos mais repulsivos já retratados em telas, é o perpetrador deste absurdo: ao cometer o erro de sequestrar o filho do motorista de Gondo e não o pequeno herdeiro, um criminoso comum tomaria uma medida drástica ou simplesmente abandonaria a criança e fugiria. Mas Takeuchi não estava interessado na obtenção de recursos materiais tanto quanto por vingança (mas vingança de quem?) e procede com a exigência de um resgate, ciente de que aquilo lhe daria até mesmo uma vantagem: no Japão, o crime de extorsão só caberia em caso de sequestro de um parente (o que implicaria responsabilidade direta da parte extorquida). Naquele caso, tratava-se de um "mero" caso de sequestro que levantava um dilema moral a Gondo: permitir que o filho do motorista fosse morto e manter seu império (afinal, aquele dinheiro era crucial em suas transações) ou abdicar de tudo e salvar uma vida? 

Takeuchi, assim como Gondo, representa um individuo de mentalidade extraordinária — só que às avessas. Encarna o espírito demoníaco do revolucionário, que vê em Gondo simplesmente a materialização da imagem de um membro da elite por uma mera contingência topológica. Takeuchi vive embaixo e Gondo vive em cima. Takeuchi é um futuro médico e Gondo é um comerciante. Takeuchi não sabe bem o motivo de odiar Gondo para além de vê-lo lá de seu casebre miserável. Takeuchi representa o esvaziamento do individuo na cegueira da mente. Uma das técnicas mais importantes empregadas por Kurosawa no filme é a da obstrução consciente de certas locações, ou da visão nublada de certas fisionomias. Takeuchi é o individuo privilegiado com uma vista telescópica do mundo naquele momento, ao passo que Gondo é forçado a se empanar de cortinas que obscurecem seu apartamento, tendo que dar um salto absurdista de fé nos indivíduos e na moral. Takeuchi, tão controlador e meticuloso em seus planos, representa a dessensibilização da mentalidade revolucionária e burocrática que enlouquece o povo japonês: seu desdém pelos indíviduos por trás das cadeias causais (trabalhadores civis, viciados, a força policial e a mídia) impede-o de enxergar os furos em seu próprio plano, vendo-se preso dentro do próprio labirinto materialista. Os demais personagens, por outro lado, são forçados a adotar diferentes pontos de vista topológicos para resolução do caso, transitando por toda a cidade em busca de novas informações que possam compor a fisionomia de Takeuchi, fisionomia essa que atua como um símbolo do aspecto mais nefasto (e infernal) da sociedade japonesa: a despersonalização no múltiplo que destrói o individuo.

A cada passo dado na investigação, a força-tarefa se vê mais próxima do entendimento da experiência do inferno japonês. A sociedade aparentemente harmônica e homogênea da superfície se vê diluída na miscigenação racial dos distritos boêmios que antecedem o bueiro de vícios que Takeuchi busca nas profundezas. Disfarçados na multidão, os policiais à paisana representam a manutenção da essência das vocações. Vestido de médico e perpetrando a morte, Takeuchi representa a corrupção do ofício, matando "sem sujar as mãos" através de drogas mais perfeitas (um omen da perfeição inadvertida da mentalidade burocrática japonesa, como um assassinato perfeito). Distinto numa multidão de imensa variedade étnica, somos capazes de enxergar Takeuchi em plena individualidade: lembra uma espécie de Alain Delon dos infernos. Com seus contornos cada vez mais aclarados, vemos o que a experiência de desintegração pessoal inevitavelmente cria: o distrito dos viciados mais lembra uma galeria de possessos, assim como o próprio Takeuchi o faz nos momentos finais do filme. 

A técnica em preto e branco aplicada por Kurosawa é deliberada: a inserção da axialidade na moral japonesa deve ser dissolutiva, a fim de preservar somente as essências após o longo nigredo — o rosa da fumaça feminina das fábricas surge como uma ode às flores de cerejeira, as flores do espírito guerreiro perante a morte. O preto e branco revela os aspectos celestiais e infernais da sociedade japonesa: a moral é capaz de extrair o melhor da polícia, da mídia, de trabalhadores miseráveis e até de crianças. O sacrifício de Gondo, da fortuita altura de sua posição social, é essencial para a formação de um exemplo civil condizente com a postura que deve ser tomada pela nova elite. A exposição da monstruosidade da complexa e disforme trama montada por Takeuchi é essencial para a meditação da sociedade japonesa sobre si própria, uma meditação que ultrapasse os ciclos cosmológicos e a experiência poética cotidiana

Talvez o omen mais importante do filme, por fim, seja justamente o momento em que vemos a casa de Gondo e de sua família à venda. O relógio, símbolo que representa a distinta experiência do tempo dos japoneses, ou seja, a da impermanência, do Mono no Aware, da experiência de vigor da honra que enfrenta a morte de peito aberto, está muito bem catalogado e precificado pelos corretores. A experiência de impermanência que a axialidade da moral cria é diferente: causa um desconforto flagrante em todos os presentes, seja nas feições atribuladas de Toshiro Mifune ou nas demais personagens. É a experiência da morte em vida, do sacrifício dos próprios bens, do conforto e da segurança dos parentes e de todo o trabalho feito até ali. É uma cena sutil, talvez facilmente eclipsável no contexto de um filme dessa estatura, mas é justamente no enterro daquele passado, no enterro dos velhos símbolos de uma sociedade parida e nutrida no seio da deusa Amataresu, que contemplamos a dimensão devastadora e os incontáveis sacrifícios de um único ato moral perpetrado num mundo de trevas. 

domingo, 2 de junho de 2024

Vertigo e a Alquimia das Cores ou "Vertigo e o Centro do Mundo"

"Only one is a wanderer, but two are always going somewhere."

A obra que é considerada por muitos como a quintessência do cinema, Vertigo, é intitulada por uma palavra que denota uma sensação de tontura, vertigem, mas que também predica as conotações da visão de um redemoinho (vertigine) e de um movimento giratório (vertere) em suas raízes etimológicas. Todas estas acepções estão perfeitamente encapsuladas na abertura do filme, cuja polissemia irrompe da elegante exploração dos contornos de um globo ocular, que gera o traçado de uma espiral, de uma roda, do carrossel, da ciranda, do Samsara e de todos os homólogos paridos nas profundezas do abismo. Esse é um símbolo que deve ser explorado ao máximo se quisermos ter êxito em nossa busca pelo entendimento da "obra quintessencial do cinema", por se tratar justamente do símbolo quintessencial do cinema.

O olho enquanto símbolo é o órgão associado à percepção intelectual e à transição da multiplicidade para a unidade. É através do horizonte que contemplamos a vastidão pluripotencial da realidade com nossos próprios olhos, e é através do olho interior — o terceiro olho, o olho da mente — que contemplamos a verdade unitária e inequívoca. Quando o duplo de Marlene Valdes (Kim Novak) diz a John "Scottie" Ferguson (James Stewart) que "only one is a wanderer, but two are always going somewhere", ela não fez nada menos do que uma profecia a respeito do fim último da jornada caleidoscópica e da alquimia de cores que contemplamos diante de nossos olhos: juntos, o ex-policial-agora-detetive-particular Scottie e a amante-cúmplice-döppelganger Judy Barton estavam para embarcar numa viagem de retorno à unidade, uma unidade dissolvida na ruína das vocações, dos gêneros narrativos, fragmentada e dispersada no contexto da instauração da arte moderna enquanto um exercício mimético romântico e romanesco, que tem no cinema enquanto arte do múltiplo seu baluarte e sua égide.

Entretanto, é justamente por contemplar e capturar esse processo de dissolução ininterrupta das paixões que o cinema se revela aqui como uma arte abissal: atingida sua forma final, o cinema se torna homólogo ao pico do furacão e ao fundo do abismo, que borra a visão por meio do erotismo inquebrantável das imagens e deposita todas suas fichas na retomada do espírito da tragédia, do fatalismo, em reflexão muito semelhante àquela de Jean-luc Godard em Le Mépris. O olho e o abismo se tornam um só, e é na captura dessa natureza quimérica, simultaneamente imersiva e meditativa, alquímica e católica, que repousa a genialidade suprema da magnum opus do mestre do suspense. Alfred Hitchcock foi um católico praticante por toda sua vida, assim como o maior alquimista do cinema. É nessa duplicidade que Vertigo constrói seu argumento, narrando a trajetória de um herói abissal, assim como fora o Capitão Ahab, que carrega consigo tanto uma intuição afiada para a verdade investigativa quanto uma ressonância física e psicológica com o abismo.




James Stewart é um ator de qualidades expressivamente joviais: alto, expansivo, feições militares e olhos garços. Encarnando John Scottie, o cético ex-policial que adquiriu acrofobia, Stewart confere ao personagem todas as características de uma psicologia jovial/jupiterina. Sua relação com o trauma de não ser mais capaz de estar nas alturas sugere um profundo descontentamento com a limitação do horizonte de seu olhar, agora confinado ao plano terrestre: é como a queda de uma figura uraniana das alturas. Scottie, um cético de origem calvinista, é o herdeiro de uma tradição de detetives mais próxima da de Sherlock Holmes, o detetive protestante de mentalidade mecânica, do que daquela do Padre Brown, o sacerdote católico de psicologia profunda e de insight quanto ao hábito humano baseado na confissão, mas não é por sua ineficácia enquanto detetive do mundo exterior que a analogia se sustenta, e sim por seu fracasso em investigar a própria alma, vítima da caecitas mentis que nubla seu julgamento quanto a seu profundo fascínio pelas andanças no abismo. Seu ceticismo o leva à regressão na ordem cósmica: o medo de altura se torna um desligamento concreto entre sua alma e a razão. Scottie é simbolizado inicialmente pelo azul celeste, a cor evocativa de Júpiter, o planeta que simboliza o céu. Ao se ver impedido de alçar voo e de ter uma perspectiva plena das alturas, condenado a caminhar em chão firme pelo resto de sua vida, Scottie é devorado pelo reino profano do vermelho e do verde, símbolos de Marte (Neikos, um símbolo da inércia e do conflito) e Vênus (Philia, um símbolo da gravidade e da atração) como soberanos do mundo sublunar das paixões.




Essa oposição de cores ilustra também o conflito heráldico entre os uranianos (azul e dourado) e os ctonianos (vermelho e verde); as cores uranianas, também cores marianas, são evocadas pela pintura de Carlotta Valdes, ancestral de Marlene Valdes, a esposa “enlouquecida” que Scottie foi contratado para investigar. É importante prestarmos muita atenção em cada uma das manifestações dessa dualidade na dramaturgia do filme: a verdadeira Marlene Valdes, sobrenome toponímico que evoca o Primado de Astúrias — a primeira região a ser libertada na Reconquista Cristã da Península Ibérica, região essa que consistia em todo o norte da Espanha — está sob a influência espiritual de sua ancestral, em algum tipo de contato com sua alma no Purgatório. 

Há aí uma ressonância com a primazia da catolicidade, com a verdadeira essência qualitativa das terras de São Francisco, edificadas e catequizadas pelas missões franciscanas. Essa influência celeste a conduz aos ritos católicos, como o tributo aos mortos e a visita à Missão de São Francisco de Assis. O espírito de Carlotta e a própria Marlene se conectam por um leitmotif: a herança do colar de rubi que evoca o simbolismo da rosa como o centro do mundo, um análogo ao cálice, a lança e a todos os símbolos guénonianos que ilustram a manifestação essencial do ser.







Marlene carrega flores para depositá-las no túmulo de sua ancestral, num ato de profunda catolicidade e sensibilidade espiritual; Judy Barton, seu duplo, a farsa, quer que Scottie creia que a moça está sofrendo de influências nefastas que a fazem tentar suicídio numa imitação de Carlotta. A crença cética de Scottie na pobreza psicológica de Marlene é prova inequívoca de sua mente cega. As ações de Marlene são, na verdade, as de um elusivo fantasma da eternidade, um símbolo do eterno feminino que manifesta a qualidade de guia de Vênus, como a Beatriz de Dante e a Laura de Petrarca. Seu carro é verde e sua busca é ascendente. Sua qualidade é a de uma rosa, ou de qualquer flor que simbolize o desabrochar da verdade que ilustra o centro do mundo, como as flores da Ophelia de Hamlet, um símbolo da fé e da pureza. 

Marlene é dona de um tesouro, de uma imensa herança, e seus cabelos dourados simbolizam sua riqueza espiritual. Cumpre a função de um guia espiritual em sentido simbólico — é principalmente no seu coque, que tem o formato de um redemoinho e da espiral, que a obsessão do olhar de Scottie repousa sobre, cego para o sentido transcendental daquele padrão, que em muito se aproxima do desabrochar de uma flor.




Enquanto a verdadeira Marlene guia Scottie através dos vestígios da catolicidade franciscana, seu duplo, Judy Barton, conduz o obtuso e contumaz detetive às profundezas do abismo. No momento em que o homem vê a cópia trajada em roxo, a cor que marca o início do processo alquímico atirar-se debaixo da Ponte Golden Gate, sua mente cega, já incapaz de intuir a razão, reduz-lhe a um escravo da ação inconsciente: cumpre papéis erráticos desesperadamente, atirando rapidamente pela janela sua competência de detetive em prol de um falso heroísmo que compense seus traumas psicológicos. A sedução pela falsidade narrativa o aproxima cada vez mais do abismo, por não ser capaz de discernir entre a loucura e as coisas do espírito, entre o profano e o sagrado. Batizado nas águas abissais da ponte entre os dois mundos, passará a vestir verde enquanto que oferecerá roupas vermelhas àquela que crê ser Marlene. O processo da dissolução de sua razão foi um sucesso. A tragédia histórica de um suicídio é substituída pela farsa imagética do cinema.




Scottie e Marlene embarcam juntos em uma jornada rumo à farsa. O filme se transforma e passa a capturar imagens abissais: a fachada de um romance obsessivo esconde uma ignóbil trama de manipulação e assassinato. A descida rumo ao bosque de Muir Woods na Califórnia faz lembrar aquela da antessala do Inferno de Dante: Nel mezzo del cammin di nostra vita mi ritrovai per una selva oscura, ché la diritta via era smarrita. A chegada na Missão San Juan Bautista, no condado de Benito, palco da farsa que é o centro do filme, carrega consigo um sentido profundo: de forma literal, consiste na investigação do lugar que parece ser a fonte dos traumas que atormentam “Marlene”. Mas é nesse momento que fica clara a impossibilidade de aplicação de um método exegético como o das 4 camadas advogadas por Dante (e pela tradição que o antecede no estudo hermenêutico das escrituras). A polissemia do cinema exige que saltemos diretamente para o sentido anagógico, num esforço hercúleo de síntese por meio do símbolo, que assume em si mesmo uma abertura para o inefável. 




A estrutura de Vertigo, composta de picos e barrancos, assim como a topografia do condado de São Francisco, parece-se muito com a de um filme que contém vários filmes em si. A cada mudança do processo alquímico, descrito magistralmente na sequência das cores do sonho de Scottie após o “suicídio” de Marlene — sonho esse que narra essencialmente a decadência de sua alma até o fundo do abismo pelo abandono da razão — um novo filme se inicia. Do azul que representa seu caráter jovial e outrora ascendente até as profundezas do vermelho e do verde profano. Essa ciranda de finais e renovações dos ciclos cósmicos está diretamente ligada ao redemoinho e à roda das revoluções, símbolo que traduz a essência do que é estar submetido às leis do mundo sublunar, do que é estar no fundo do abismo, mas é mais do que isso: traduz a própria essência do cinema enquanto arte polissêmica, pluralista e de impossibilidade sintetizante. O cinema e o ofício do cineasta exige a contemplação do abismo.


Principado de Asturias


Se em uma acepção literal vimos a busca pela resolução dos traumas de “Marlene”, em sentido anagógico testemunhamos a busca inconsciente pelo centro do mundo materializado no campanário. Por caminhos tortuosos, vemos Scottie tentando conter os esforços de “Marlene” em repetir o destino de sua ancestral. Na segunda metade do filme vemos que o que parecia loucura era na verdade farsa, mas todos os personagens são guiados ao campanário invariavelmente. Scottie persegue o aroma da flor de Judy Barton/Marlene; o marido assassino Gavin busca a fortuna de sua esposa; Judy Barton persegue o amor de Gavin e eventualmente o de Scottie; Marlene é conduzida à San Juan Bautista para ser sacrificada. 

De forma inteiramente orgânica e emocionalmente devastadora, quase que corrigindo todos os erros formais grotescos que a maioria dos cineastas cometeram e cometeriam ao articular uma trama tão artificiosa, todos os personagens são reunidos em uma ciranda ao redor do verdadeiro centro do mundo. Scottie não pode subir as escadas porque tem medo de altura: a solução verdadeira de sua maládia espiritual estaria no sacramento do batismo, como Hitchcock aponta brilhantemente no momento que antecede o assassinato da vítima, oferecendo-lhe duas opções: as escadas e o sacramento. Aut viam inveniam aut faciam. Ao optar pela subida forçosa até a “verdade” que a sedução, o erotismo, a loucura e a cegueira de uma mente engolida pelo abismo oferecem, Scottie tem seu destino selado. Passará a atuar na segunda parte do filme como um artífice, um tecnognóstico, um artista obcecado com a panacéia, com a solução das soluções promovida pelo ouro de tolo nos falsos cabelos loiros de Judy.





Se a primeira metade do filme constitui a tragédia, a segunda revela a farsa. Os esforços de Scottie em reconstruir materialmente o fantasma de Marlene com o objetivo de dominar a natureza (por isso também que sua imagem está sempre empanada pelo verde) revelam a frugalidade do artista que busca a transcendência pela arte e pela técnica. Hitchcock, um católico praticante, sabe disso melhor do que ninguém: tudo que uma imagem precisa para que tenha seu sentido profanado é de um ruído, uma interferência, um elemento que qualitativamente a remova do presente e lhe confira perspectiva. É o que acontece quando Scottie vê o colar de Carlotta que Judy guardou. O símbolo da rosa evocado pelo rubi guia-nos novamente ao campanário, de volta ao centro do mundo. O filme faz então uma elipse completa, já que o instinto de detetive novamente toma conta de Scottie, possibilitando-o, por fim, a catarse e o expurgo de seu trauma de alturas, levando-a enfim ao topo do campanário. O pequeno vislumbre da providência é suficiente para conduzir-lhe a ainda uma outra catarse, uma catarse de proporções além das capacidades de um cineasta, e por isso o verdadeiro fim do filme, assim como de todo o cinema: o deus ex-machina que leva à morte da segunda Marlene, de Judy Barton, ou seja, a aparição da freira sentada nas sombras evoca a astúcia da razão e a providência divina como o limite da pluralidade, o esgotamento da imagem. O campanário é o símbolo do farol da verdade que pode ser visto de quaisquer pontos de uma cidade, simbolizando a verdadeira essência da unidade. O limiar do processo alquímico é o salto no ser, o fim das transformações e a passagem para o outro mundo. Para o herói abissal, como John “Scottie” Ferguson, assim como para o capitão Ahab, esse limiar só é atingido no fim de suas andanças, nas bordas do mundo. O abismo não mais representa um objeto de desejo e fascínio, mas o negrume das portas eternamente fechadas pela morte.




sexta-feira, 10 de maio de 2024

O Casamento Alquímico em Shoujo Kakumei Utena


 O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade.
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

 Ulisses, Fernando Pessoa.

múltiplo enquanto símbolo é o representante dos estágios qualitativos mais tardios de qualquer processo de transformações. Sejam estes históricos, como o estágio civilizacional em Goethe, Spengler, Guénon; ou religiosos, como a “miríade de coisas” de Laozi; e especialmente herméticos, já que o distanciamento entre o micro e o macrocosmo se dá na perda de contato com a unidade das formas essenciais. Seja qual for o ponto de vista, não existem dúvidas de que do uno (essência, forma) rumamos para a tirania do múltiplo (substância, matéria).

Nessa dicotomia percebe-se também o caráter do mito, que quando religado através do rito, vive. Quando meramente encarnado através do corpo do homem, morre. O tudo e o nada, as formas e as substâncias, a eternidade e o tempo, enxofre e mercúrio, ativo e passivo, masculino e feminino. Todas estas são expressões de um delicado desequilíbrio expresso quase que naturalmente em nossas sensibilidades modernas — tensão raramente meditada de forma adequada, com a visão e o conhecimento necessários.

Em Shoujo Kakumei Utena, obra-prima de Kunihiko Ikuhara, acompanhamos uma complexa trama composta de elipses de roteiro que devem ser preenchidas pelo espectador, alicerçadas por uma riqueza magistral de símbolos, alegorias e rituais. É quase impossível lhe fazer justiça no que diz respeito às possibilidades interpretativas, mas é razoável supor que sejamos capazes de desvelar a maioria de seus símbolos conquanto abdiquemos de uma compreensão narrativa convencional e abracemos inteiramente a clave do mito.

Sem uma total suspensão de descrença perante o ambicioso experimento da criação de uma mitologia moderna, torna-se virtualmente impossível extrair o que quer que seja de valor num exercício de exegese aqui. A trama pode ser bem resumida em poucas palavras: um ritual sempiterno composto de duelos entre estudantes que buscam a mão da Noiva da Rosa, que lhes garantirá o poder de “revolucionar o mundo.” Assumindo que a grande maioria de nossos leitores esteja familiarizada com os pormenores do roteiro, sigamos ao que interessa: uma exegese mais ou menos eficiente dos pontos narrativos mais desafiadores da obra.

Tratemos primeiramente do assunto por camadas narrativas. É importante determinar antes de tudo um dos aspectos mais mal compreendidos de Utenasua natureza poética. A narrativa de Utena não pode ser compreendida por um ou outro aspecto poético. Tratando-se de mitologia, e de uma mitologia moderna sobretudo, é inútil tentar estabelecer fronteiras claras e esquemáticas quanto às formas que a narrativa adota em cada uma de suas etapas. Isto ficará ainda mais claro quando percebermos mais à frente o papel central da alquimia na narrativa, mas é importante traçar desde já suas intenções artísticas.

Deve-se encarar Utena, portanto, como uma história narrada sob a premissa oculta das ILUSÕES. O quadro composto pela justaposição da natureza meditativa dos personagens principais e a natureza abstrativa dos personagens secundários, estes servindo à narrativa como abstrações psíquicas daqueles, ilustra muito bem a natureza um tanto onírica do anime, assim como a riqueza de possibilidades contida neste olhar.

Um exemplo disto é o arco da Juri, composto por uma tensão entre o feminino, Shiori, que manifesta os aspectos mais telúricos-mercuriais de sua alma, numa possível denúncia de seus desejos sexuais mais corrompidos, e os personagens masculinos que compõem o outro lado da balança meditativa delirante de Juri, como Ruka, uma espécie de eu ideal devorado pelo Eros. Também é o caso de Kozue em relação a Miki, que representa a projeção do aspecto feminino e erótico corrompido da mente de seu irmão.

Em outros casos, os próprios personagens do núcleo principal de estudantes (Saionji, Miki, Juri, Touga e Nanami) assumem uns para os outros aspectos abstrativos, como se fossem complementos de suas lacunas psicológicas. Isso se deve ao fato do anime poder ser descrito como uma obra de religação do múltiplo ao uno, uma obra que tenta resgatar, parafraseando Chesterton, as “velhas virtudes cristãs enlouquecidas”, ou seja, trata-se de uma tentativa de união dos fragmentos perdidos da sabedoria ancestral por meio de um ritual.

Essa tentativa é expressa com clareza pelo desejo mimético de René Girard, ou seja, trata-se de um desejo romanesco que se liga primariamente aos intermediários, às emanações antropomórficas que o elenco assume de acordo com o estágio dos duelos, sentimento que se repete também na estrutura narrativa do anime, como ficará claro depois. Em maior e em menor grau, as personagens atuam como espelhos desejos miméticos umas das outras.

Tais relações são estabelecidas através de um ciclo erótico e compulsivo: o mundo em que esses personagens habitam é dominado pela natureza em seu aspecto mais terrível, expressa por Eros. Em uma compreensão cosmológica mais profunda, a tensão regente de todas essas relações, de todos os pares apresentados no decorrer dos 39 episódios são as dinâmicas entre o enxofre e o mercúrio, que podem ser compreendidas como as sempiternas tentativas de criar um casamento alquímico perfeito: a unificação do masculino e do feminino para retornar ao estado adâmico, que supostamente faria do homem alguém capaz de retornar à eternidade.

Postos estes aspectos de sua natureza poética e da volatilidade natural que a narrativa de Utena assume de tempos em tempos, avancemos para a estrutura cósmica e para as ideias religiosas mais pertinentes na obra. Cosmologicamente falando, existem dois núcleos de maior importância: os personagens que lidam com as qualidades dos astros (o núcleo do conselho estudantil) e os personagens que compõem a estrutura da “realidade cotidiana”. Mas que realidade seria essa?

Referimo-nos aqui à realidade testemunhada durante o anime em seu nível literal, ou seja, a da Academia Ohtori, que não constitui a realidade diegética por inteira: trata-se de um microcosmo biônico, ilusório, cujo intuito é o de cumprir os passos de um ritual gnóstico de caráter essencialmente órfico dionisíaco, cujo fim último é a conquista da eternidade, ou seja, o religamento com o macrocosmo.

Uma das evidências disso é o fato da poligonal do terreno da escola ser desenhada no formato de um caixão, um dos símbolos do Forno Alquímico, o Atanor, reduto da Grande Obra. Este é, portanto, um microcosmo governado pela natureza de Eros, como um teatro do mundo. O elenco da peça gira em torno das seguintes personagens:

  • Eternidade, objeto de desejo último partilhado por todo o elenco;
  • Dios, representando aqui Nous, o intelecto divino — Análogo do Espírito/Enxofre/Masculino metafísico;
  • Akio, representando Psiquê, a personificação da Alma — Análogo então ao Mercúrio, que se divide em um mercurius duplex com sua irmã Anthy. Akio assume aqui o aspecto DEMONÍACO e sulfúrico do Mercúrio, representado pelos chifres de Áries;
  • Anthy, representando Eros sob a forma da Natureza em seu aspecto mais aquoso e abissal;
  • Utenamanifestação do Nous Divino — Um contra factual da deusa ATENA, ou seja, uma encarnação do intelecto divino, aquela que está destinada a se religar com a Eternidade no fim do ritual. Utena pode ser vista como uma expressão da própria pedra filosofal, destinada a transformar a alma de Anthy, libertando-a de sua prisão pessoal e libertando os demais personagens da tirania da Natureza. Utena encarna aqui um Rebis, o hermafrodita alquímico, por ser ela mesma uma mimese do Príncipe, símbolo da Eternidade Masculina, dentro da feminilidade temporal, numa entrega quase que total à vontade de Dios.

A partir do esquema acima pode-se entender que a eternidade, objeto de desejo comum a todos os participantes do ritual, manifestou-se primeiramente em Dios (como em Zeus, o deus do céu que é herdeiro de Uranus) como o princípio do eterno masculino, o enxofre alquímico, aquele que dá forma à substância indiferenciada, a matéria-prima mercurial, feminina e terrestre.

Esse é o velho mundo pagão em conformidade com uma cosmologia de caráter alquímico gnóstico, que dispõe os mitos do panteão grego em torno de um rito de mistérios de caráter dionisíaco e especialmente ÓRFICO através de uma anamnese do momento da queda de seus deuses.

No momento em que Anthy (um dos nomes das graças de Hera) decide tomar para si o amor do príncipe com a intenção de tirá-lo do mundo, roubando-lhe a graça do “Eterno Masculino” para seu seio, assume um papel análogo ao de Eva Pandora, um aspecto da natureza indomada, que qualitativamente regride às raízes titânicas, telúricas e principalmente TEMPORAIS do mundo.

No sequestro do amor universal, Philia, manifestado pela graça do príncipe, natureza se tornou egoísta. Transformando-o em Eros, seu aspecto menor e temporal, Anthy lhe corrompeu a graça masculina transformando-a na corrupção temporal de Dionísio, o Deus do vinho e dos cultos orgiásticos, que representa também os aspectos soturnos e obscuros subjacentes da Hélade: os ritos, os mistérios e até mesmo a guerra em sua acepção ritualística.

Dionísio é o “filho de deus”, o príncipe prometido que foi desviado de sua trajetória por Hera, que condenou-lhe a um estado temporal de corruptor das paixões. O vinho de Dionísio é uma expressão do enxofre, do enlouquecimento induzido em seus ritos.

Na busca por se tornar um herói, Anér (ἀνήρ), ou seja, na busca por entrar em contato com a eternidade, existe um pathos que o homem derradeiramente segue na tragédia grega, o teatro de Dionísio: o homem, Ánthropos (ἄνθρωπος) deve superar o Métron (μέτρον — a medida de cada um) e entrar em contato com o Enthusiasmós de Dionísio (ἐνθουσιασμός) através do Ékstasis (ἔκστασις), um processo que descreve a saída de si em direção à divindade, vivificado pelos atores. Ao ultrapassar seu Métron, o homem atinge Hypokrités (ὑποκριτής), o estado de “demésure”, lançando-se por fim à Hybris (ὕβρις), o supremo “pecado” do desalinhamento com o cosmo.

Todos esses aspectos podem ser vistos no ritual que se dá na Academia Ohtori, conduzido por um grupo de atores que buscam a encarnação do herói, saindo de si próprios em direção a Dios para “revolucionar o mundo”. O ritual também é regido como uma fantasia órfica-byroniana: um estado induzido de êxtase que busca o nascimento de Eros como um símbolo da eternidade (através duma sucessão de coniunctios e casamentos alquímicos, de uniões, sejam elas sexuais ou apenas estimulantes) dentro de um ovo alquímico, um atanor, que nesse caso seria a própria escola.

Isto é algo que também explicaria a relação direta com o Demian de Herman Hesse através da célebre citação que marca o início das reuniões do conselho estudantil, que aponta diretamente para a formação de ABRAXAS — entidade resultante da combinação dos aspectos de todos os 7 planetas/arcontes/metais — como o resultado da união de todas as personalidades fragmentadas, formando assim um indivíduo biônico, completo, “eterno”, detentor de todos os paraísos, de todos os tempos e que revolucionará o mundo ao sair da “casca”:

A ave sai do ovo
O ovo é o mundo
Quem quiser nascer tem de destruir um mundo
A ave voa para deus
O deus se chama Abraxas

O ritual também pode ser encarado como um rito MARCIAL do conflito férreo das espadas, uma representação do masculino em sua condição temporal, cainita, um símbolo clássico do Anticristo, que aspira pela eternidade simbólica solar. Não é de se estranhar que Touga, representado pela cor vermelha, ou nesse caso Gules (o vermelho da heráldica) exerça um papel de sumo sacerdote do ritual, logo abaixo de Akio na hierarquia. O cainita é o herói do mundo moderno.

Aliás, tanto Touga quanto Saionji, o primeiro representante de Gules, e o segundo de Vert, ocupam respectivamente as posições cósmicas de Marte e Vênus, uma das expressões mais antigas de coniunctio (seco e húmido, assim como o masculino e o feminino em suas condições temporais e pagãs, como Ares e Afrodite).

Ambos representam também o leão vermelho e o leão verde do coniunctio medieval de que fala Jung em seu Mysterium Coniunctionis: juntos formam o leão que representa SATURNO (o arconte final que marca também o início da grande obra alquímica, contendo em si todas as potências materiais de Mercúrio, que é considerado seu “filho”), ou o leão do ANTICRISTO — o oposto do Leão de Judah. A heráldica é a arte do estudo dos símbolos hereditários, cujo sistema de cores é utilizado aqui como o esquema visual das personagens de maneira geral, especialmente os do conselho estudantil.

Em conjunto, Touga e Saionji funcionam também como emanações de Akio, ou SaturnoDionísio e até mesmo Lúcifer: o esposo infernal, o caído, o último arconte e o príncipe do mundo. Akio também se intitula Vênus, que é parte de ainda um outro coniunctio com Mercúrio, uma outra possibilidade de Mercurius Duplex. Seria como uma das facetas de Satanás: aquele que se utiliza da mulher como a ruína do homem, que molda sua substância para que satisfaça quaisquer ilusões.

É esse o caso no arco da Rosa Negra, no qual Mikage, um alquimista faustiano, é corrompido pelo demônio (Akio) e pelas ilusões de Anthy, que assume a forma de Mamiya, conduzindo-lhe a um futuro ilusório, um passado cíclico, um delírio. Mais uma vez o espírito faustiano é induzido a moldar e influenciar, mas se vê vítima da irresistível tentação satânica, cainita, da alquimia típica do espírito revolucionário, aquela que busca mudar o mundo à revelia da própria alma.

Há também uma brilhante exposição em Utena dessa busca pela síntese alquímica até mesmo dum ponto de vista estético, pela representação da dicotomia entre o Apolíneo e o Dionisíaco em toda a extravagância do anime. O primeiro aspecto é representado pela “ingenuidade” dos heróis.

Essa ingenuidade, em termos nietzscheanos, seria análoga à representação do herói homérico como alguém de comportamento dissociativo alienado: a despeito de sua conduta monstruosa na guerra, vê-se irradiada a glória dos heróis renomados. Vê-se a honra do cidadão livre, o orgulho de um avatar da virtude.

Em Utena, nossa primeira exposição ao elenco central é a visão de um grupo de belos e respeitáveis jovens, bem nascidos, bem educados e bem vestidos. Portam-se como membros da elite, destacando-se visualmente pela ornamentação típica da heráldica.

A despeito dessa aparente perfeição fisionômica, o entorno evoca um senso de extravagância que excede a simplicidade do apolíneo: as formas e o espírito curvilíneo do barroco não deixam enganar. Seja por meio da arquitetura, do desequilíbrio gerado pelas roupas masculinas da própria Tenjou, da homossexualidade histérica exalada pelo elenco ou pelas contorções visuais e elipses de roteiro, percebe-se que o desconforto e o frenesi de Dionísio são tão caros à narrativa quanto a unidade e a elegância das formas apolíneas.

Apesar de encarnarem o aspecto do herói apolíneo à primeira vista, os personagens não escapam à tensão dionisíaca da tragédia no interior de suas almas, externada precisamente pelo espelho estilhaçado das semelhanças. Os personagens, como dito anteriormente, funcionam como emanações psíquicas das meditações e projeções de si sobre os outros, reflexos dessa busca partilhada por um sentimento uno de religação. O resultado prático desse esforço é inversamente proporcional às intenções: em vez da unidade obtêm-se a ilusão. Por meio do desejo mimético obtêm-se um espelho, uma projeção, e em última análise, um desvio erótico da catarse e da exortação.

É como a fisionomia de Eva que Sinclair quer compor em Demian: uma tentativa de domínio da mãe fecunda, da natureza, do futuro, fundamentada sobre um entendimento equívoco do eterno. A ingenuidade Apolínea não suporta a derrocada Dionisíaca do tempo. A natureza cíclica e ininterrupta desse ouroboros só pode ser esclarecida à luz do logos: a natureza não consiste naquilo que é, mas naquilo que deve ser. A natureza deve ser transformada em Deus e para Deus.

Essa busca pelo controle da natureza é também representada pela Noiva da Rosa, papel temporal de Anthy no ritual. A rosa, como descreve Guénon, é um símbolo que representa a MANIFESTAÇÃO TELÚRICA do centro do mundo, ou seja, do ponto de encontro de todas as direções qualitativas do espaço e da simultaneidade do tempo.

Noiva da Rosa, Anthy, representa também a superfície das águas, o Rajas. Pense aqui na tríade hindu que representa a Prakriti, a substância da realidade: Sattva, princípio superior representado por DiosTamas, princípio inferior representado pelo caído, Akio, Rajas, a superfície intermediária da natureza, aquela sobre a qual a lótus se manifesta como axis mundi (análoga à rosa de Guénon).

Vemos ao fim do ritual que é justamente esse o papel de Anthy: o de natureza controlada pelo ferro, sacrificada às espadas. É uma crença baseada na ideia de que através do sacrifício contínuo da natureza e na sua submissão ao ferro, no casamento forçoso entre Ares e Afrodite, a eternidade pudesse ser obtida. É a mitologia do cainita em sua insurreição gnóstica contra Deus.

É clara a falsidade de uma alquimia que busca revolucionar o mundo. Eros é o representante do romantismo das formasdo amor pelo mediado, o já mencionado desejo mimético, assim como é também a rejeição dos sentimentos genuínos de amor que estes personagens devem nutrir uns pelos outros: o de amarem as mesmas coisas através da PhiliaIdem velle, et idem nolle.

Fica claro também que cada etapa do anime representa uma etapa do processo alquímico: Sattwa, Tamas e Rajas representam, respectivamente, o idealismo inicial do arco do Conselho Estudantil, a queda nas paixões ctônicas do arco da Rosa Negra e a síntese intramundana do arco do Fim do Mundo, no qual o mundo moderno é coagulado em sal, o produto final dos esforços cainitas.

Inicialmente o caminho até a arena de batalhas é representado pelas escadas espirais, um símbolo alquímico dos passos iniciáticos da Grande Obra, assim como também da tentativa de síntese entre o ser e o não-ser, sendo a espiral o símbolo da manutenção do ser em movimento.

No segundo arco, o da Rosa Negra, existe uma queda (catábase) nos recônditos da alma ilustrada pelo passado dos personagens, que dão vida a seus traumas através de ilusões psíquicas, em oposição ao idealismo do primeiro arco.

No terceiro arco, por fim, vemos a síntese do processo: o mundo moderno, feito de carros, elevadores e extravagâncias eróticas, serve então como palco de duelos majoritariamente feitos em pares, numa busca pela síntese entre o passado traumático e o futuro ideal na forma de um presente corrupto.

Nisso fica claro que o plano de Akio para a obtenção da Eternidade envolve a imanentização da simultaneidade dos tempos: passado, presente e futuro. A mesma estrutura pode ser vista também como as partes constituintes do centro do mundo: o eixo vertical superior, inferior e o eixo horizontal que formam a cruz, o eixo da realidade, o axis mundi segundo Guénon. Eis o plano de Akio: a formação de um centro do mundo artificial cujo objetivo é a manutenção da sempiternidade erótica.

Não é coincidência que a escola se pareça com um caixão: a crença numa alquimia corrompida que traz o amor erótico como um símbolo da eternidade é, na verdade, o amor de Eros e Thanatos, um amor ligado à morte e não ao eterno.

Outra evidência da estrutura ternária dos arcos é a importância do simbolismo musical na obra (outra qualidade marcial), especialmente no contexto do ciclo de duelos. Vemos em uma das letras, no 18º duelo, o último duelo de Juri, os seguintes versos:

Pessoas dispostas em um símbolo impenetrável
A arte histórica do Barroco
A Salamandra
O dragão e o ouriço
O milagre oculto da Eucaristia
Credo e virtude
Mantidos em confinamento,
O milagre da rosa
Flor-fera humana
Pérola e joia
A idade do homem
Diamante floral e cruz

Fica muito claro o sentido do amálgama de símbolos aqui dispostos se observarmos alguns versos com atenção: “um símbolo impenetrável” se liga diretamente à “arte histórica do Barroco”, a arte da síntese entre o Renascimento e o Maneirismo, que é também a arte das formas circulares e da ascese intramundana, ou seja, a encarnação artística do casamento alquímico. A Salamandra, que é proteiforme, metamórfica e adaptável, e a própria ideia do “Milagre Eucarístico oculto” são algumas das muitas maneiras de se falar a respeito das essências, a respeito da eternidade.

Um símbolo fundamental neste arco é o da Amêndoa, um símbolo da essência, também conhecido como Vesica Piscis, o ponto de encontro entre o dois, um coniunctio que em seu centro gera o uno. Este símbolo é também associado ao signo de Peixes, de grande importância para o arco da Juri, signo representado por Ruka, uma manifestação do amor masculino roubado por Shiori, drama que expressa psicologicamente o amor de Juri pelo eu ideal que foi corrompido pelas paixões. É o eco de mais um ataque furtivo da natureza e de um feminino corruptor. O cabelo de Shiori assim como o dos irmãos Ohtori é roxo, em mais uma conexão heráldica com Mercúrio, também conhecido como Purpure.

Juri é, assim como Utena, um símbolo de Atena, neste caso como uma virgem perfeita, uma guerreira justa e alguém até mesmo etimologicamente associada à Minerva. Sua cor é o laranja, que tem como correspondente heráldico mais provável a Tenné, um esmalte que é considerado como uma “mancha”, oriundo de uma heráldica majoritariamente pós-medieval. É um esmalte que está fora da representação dos 7 planetas, da representação das 7 luminárias celestes tradicional.

Esse esmalte introduz aqui o problema existencial de alguém que vive na metaxis, no meio do caminho, neutralizado em sua trajetória rumo a transcendência, preso em uma difícil tensão entre aspectos sexuais (venusianos) e solares. Sua esperança jaz no milagre representado pela Amêndoa que carrega em seu peito (o colar em que guarda suas fotos do passado), mas esse é um milagre corrupto, metastático, que deve ser quebrado pelo seu eu ideal, Ruka, que representa Peixes, signo que marca o fim do processo de formação da personalidade.

Só no abandono de sua fé metastática, barroca, da perfeição mediada que Juri pode reclamar o que busca: um verdadeiro milagre. Esse milagre consiste na reabertura para a influência do masculino, retornando à sua posição cósmica feminina. A ilustração suprema deste momento é a queda da espada de Dios do céu diretamente em sua rosa, um verdadeiro milagre da vontade divina, uma representação da superioridade hierárquica do enxofre metafísico sobre o mercúrio telúrico.

Sua relação com Miki representa um encontro qualitativo ideal: Miki, apesar de viver um dilema mercurial e geminiano com sua irmã Kozue (evocando o mito dos dióscuros), é representado fisicamente por Azure, que é, na Heráldica, a cor de Júpiter, a dignidade essencial tanto do signo de Peixes quanto de Sagitário, que são respectivamente associados também ao já mencionado Ruka (também trajado em Azure) e à própria Juri (do signo de Sagitário).

É nítido que, embora o coniunctio nefasto com Shiori deva ser superado, um novo coniunctio com Miki deve ser aceito, este representando por fim o resgate da dignidade essencial masculina que mais admira: o da sabedoria.

Deste mesmo arco pessoal se pode inferir mais um aspecto ternário consoante à estrutura do anime: O primeiro arco corresponde à Renascença (o retorno da veneração aos deuses antigos), o segundo ao Maneirismo (as contorções monstruosas, o trauma) e o terceiro, por fim, à síntese intramundana do Barroco.

Alquimicamente poderíamos tratar os três passos como o destino rumo à coagulação de um “mistério” secularizado, ou seja, o “mistério” do mundo moderno: Enxofre (idealismo masculino), Mercúrio (matéria-prima feminina) e Sal (coagulação).

É importante comentarmos, por fim, mais duas expressões de coniunctio dentro dessa cosmologia: Nanami, coberta por Or, parece vivificar o real aspecto nobre do “príncipe” presente em Touga, que encarna o aspecto de herói moderno/marcial, um potencial Anticristo, um cainita, uma outra emanação do demiurgo luciférico representado por Akio.

Saionji seria sua contraparte caída de aspecto Venusiano, representado aqui também pelo verde da amônia, uma outra expressão de mercúrio, este responsável pela dissolução. Não atoa ambos estão no começo e no fim do ciclo de duelos do primeiro e do terceiro arco, como motifs alquímicos.

Todos os aspectos lunares mais presentes do anime pertencem a Nanami: existe uma inversão simbólica proposital aqui, em que os aspectos qualitativos da Eternidade (que existe fora do mundo das ilusões, do véu de Maya) se manifestam de forma inversa no ciclo de duelos. O feminino deve ser salvo de suas aspirações masculinas, motivo pelo qual a parição de um ovo alquímico no episódio 27 do anime, episódio definidor do arco pessoal de Nanami, fracassa. É um momento catártico que representa o divórcio de um delírio lunar de emanar luz própria.

Seu coniunctio com Touga é o de aproximação das características solares e da legítima fraternidade, mas as características que ela deve perseguir para si são diametralmente opostas àquelas de seu signo solar, Leão (regido pelo Sol), ou seja, habitam o domicílio materno de Câncer (de dignidade lunar). O herói solar é a potência masculina que deve complementá-la. Tsuwabuki nesse contexto provavelmente representa a busca do Eros mundano pelo sol, em um processo de amadurecimento.

No arco final, o aparente caos psicodélico representa não só a natureza abissal do mundo moderno, como também a busca pelo moto-perpétuo como panaceia prometeica, como solução definitiva do sofrimento do homem moderno, algo que fica evidente no protagonismo do carro como símbolo, que representa o poder da ação temporal e marcial como realidade suprema. É a revolta dos kshatriyas.

Todo o ciclo de duelos ali gira em torno do controle do carro através da instrumentalização de seus mercúrios opostos (seus pares de duelo) em um ritual que induziria o iniciado à ascese sexual. É a desilusão que antecede o amadurecimento: a catarse perante a traição do mundo.

Esse é o sentido do encontro dos 5 personagens do conselho estudantil durante o duelo da Revolução: o número 5, o número do homem, do microcosmo, é o coniunctio final que Ikuhara propõe como formação da personalidade. É a junção dos cacos, dos fragmentos estilhaçados, não por meio de um ritual alquímico erótico, mas pela aceitação da realidade e do presente por meio da Philia, do abraço fraterno entre as produções do tempo e a Eternidade, parafraseando Blake.

Um último aspecto essencial que deve ser entendido, antes de concluirmos, é o simbolismo do castelo invertido. À primeira vista pode parecer que se trata de uma falsa anábase, uma ascese corrupta, o que até pode ser o caso em partes. Mas há um sentido ainda mais profundo aqui: consoante à descrição de Guénon a respeito da Árvore do Mundo, ilustrada pela árvore no topo da montanha do Purgatório de Dante, ou seja, uma árvore invertida cujas raízes estão no topo e os ramos embaixo, o mesmo pode ser dito a respeito do castelo invertido aqui.

Isto se deve ao fato do ciclo de duelos em Utena acontecer numa dimensão supra cósmica, mas não transcendente. Trata-se de um estágio intermediário tal como a natureza da “superfície das águas” do Rajas que já citamos anteriormente, que é também comparável à própria Anthy. Tudo que fica debaixo da Eternidade é visto em sentido contrário, às avessas, e cabe ao endireitamento da alma do homem a sua correção. É por isso que o Castelo é destruído no fim do anime: sua projeção supra cósmica já foi superada.

Ao fim do ritual, no triunfo da Grande Obra, fica muito claro o sentido esotérico da vontade de Dios: Utena deve transformar o amor erótico por meio do rompimento do ciclo incestuoso e pagão que sustenta as relações corrompidas entre Psique e Eros (nesse caso, como o filho de Ares e Afrodite, de Áries e Touro) e deve transformá-lo em PHILIA, ou seja, numa expressão genuinamente eterna do amor ao próximo e do bem querer. Nisto é também vencido o ciclo vicioso entre Eros e Thanatos, desligando a relação de Anthy com os ciclos temporais e restituindo-lhe à eternidade, não numa revolução do mundo, mas da natureza do individuo. Há, por fim, a consolidação de um milagre, não por meio de sublimação alquímica, mas pelo mistério do sacrifício, descrito nos infindáveis dilemas amorosos entre a eternidade e o tempo.

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