quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

Escrevo, logo existo

Escrevo, logo existo; existo, logo escrevo. Creio ser esse, em partes, o sentimento existencial por detrás de toda criação artística. Toda vez que um homem semeia, experiencia a plenitude dos movimentos internos que delineiam os ciclos da vida pelos quais passam as criaturas. A cultura humana se baseia no sentido profundo da agricultura: o plantio e a colheita figuram parte do que há de essencial no ciclo de geração e corrupção, e é por esta razão que Prometeu rouba o fogo dos deuses e o entrega aos homens, para que possam ter suas mentes iluminadas quanto a nosso fim último. 

A chama prometeica é, na verdade, do tamanho de um grão de milho (pyrós): é o fogo essencial, o fogo que veio para iluminar a cegueira existencial do homem. Por meio da cultura, assistimos ao espetáculo da vida sob o aspecto da eternidade, com começo, meio e fim. Germinamos cidades e escrevemos poesia. Por meio do cultivo do essencial, entendemos parte daquilo que nos liga a um destino, um destino que se divide em atos, atos estes que nos dão unidades de sentido para cada fase de nossas vidas, seja por meio da analogia cósmica com o ciclo das estações ou pela contemplação do que há de inteligível em nossos sentimentos se submetidos à vigília poética.

Nesse sentido, são esclarecedores e aterrorizantes os versos de Cecília Meireles em "Motivo", quando canta: "Eu canto porque o instante existe/e a minha vida está completa./Não sou alegre nem sou triste:/sou poeta./Irmão das coisas fugidias,/não sinto gozo nem tormento./Atravesso noites e dias/no vento."

Quanto mais poetamos, mais nos enxergamos com certa ironia: é da natureza humana que se possa ver as coisas apenas sob o aspecto da eternidade, mas jamais de sua perspectiva integral. Isto quer dizer que servem-nos nossos sonhos, nossas abstrações e toda nossa atividade criativa como espelhos biográficos que aspiram o reflexo de algo essencial e constante em nós mesmos; aspiram a captura visível de algo que supere o tempo. Somos, conduto, incapazes de ober este algo por completo, criaturas que somos. A ironia da contemplação também nos separa de nós mesmos. À medida com que avança o intelecto, reduz-se, por exemplo, nossa capacidade de viver em puro ato. Testemunhamos nossas potências e nos decompomos em partes; vemo-nos capazes e incapazes no curso de um breve instante. Tornamo-nos o que somos, o que fomos, o que gostaríamos de ser e também o que poderíamos ter sido, tudo de uma só vez. E descobrimos ser essa a experiência da vida conquanto não haja um alicerce da unidade que nos resguarde, que entre em contato direto com o ser que sabemos existir dentro de nós, mas que já não se vê com clareza nem com os olhos da alma.

Lançar-se ao mundo é perigoso, é solvente. E é com lágrimas nos olhos que testemunhamos nossa própria deterioração. Assistimos tudo o que há para se ver em nossa dispersão interior e nos esquecemos de nossa unidade secreta, de nossa forma perdida. Esta unidade tem como correspondente na realidade o nosso papel, que está nos escombros de nossos acidentes. Somos agraciados com o poder da cultura para que cheguemos ao âmago do nosso ser. Em nosso íntimo, vemo-nos incapazes de nos manter íntegros frente à dispersão do real. Somos reféns de um ponto de vista, reféns das nossas consciências limitadas a respeito do mundo. Isto não quer dizer que não haja uma unidade dentro de nós: quer dizer que, em dado momento, nos esquecemos de nosso imortal talento. Esquecemos da natureza de nosso dom para a cultura como a de uma dádiva: esquecemos que recebemos tal dom de Deus. Os poetas antigos cantam às musas porque meramente comunicam aquilo que é desejo dos deuses: nossas inspirações têm a mesma origem, ainda que nosso objeto de canto seja menor e mais modesto em escopo. Trata-se da nossa individualidade, que não serve de maneira alguma a um papel solipsista: expomos o que há de mais profundo em nós para que o esclarecimento de nossas circunstâncias, à luz do universal, sirva de espelho e consolo ao próximo.

A poesia tem, portanto, vida própria e origem divina, e ajoelha-se o homem perante seus talentos. Onde está nossa forma perdida? Em nossos papéis no Teatro do Mundo. Eu canto porque o instante existe, e a minha vida está completa. Não sou alegre, nem sou triste, sou poeta.  Os versos de Cecília nos esclarecem desde cedo que há uma forma secreta em nosso propósito, que há algo de mais real que a nossa percepção das coisas: há nossa condição de poeta. Existimos ligados a um ofício, porque é no ofício que subsistimos íntegros como entes. Persistimos no ser por meio de nossas vocações, e é nelas que existimos com máxima integridade. Girard diz que Proust teve uma conversão perfeita, uma conversão como autor, análoga à conversão religiosa. Devemos fugir da dispersão que sugere maior realismo às nossas inquietações do que ao ofício; devemos dele nos apropriar com firmeza para que não nos dispersemos de nós mesmos. Devemos amar o essencial para que possamos verdadeiramente existir, o essencial de nossos papéis, a nossa forma secreta. Devemos nos converter em poetas. Escrevo, logo existo; existo, logo escrevo.

Escrevo, logo existo

Escrevo, logo existo; existo, logo escrevo. Creio ser esse, em partes, o sentimento existencial por detrás de toda criação artística. Toda v...