sexta-feira, 19 de abril de 2024

O Mito Cosmogônico em Saint Seiya


O mito moderno pode ser descrito como um conflito de forças pela “realidade suprema”, no seguinte sentido: para cada forma absorvida e simbolizada pelo ethos moderno existe uma paixão, um gênero literário, uma forma narrativa subjacente que a orienta e contém em si aquilo que podemos chamar de seu verdadeiro propósito. 

Por trás do que aparenta ser uma heterotopia organizada pela harmonia artística, existe uma luta axiológica pela soberania. Isso pode ser visto nas tragicomédias shakespearanas como Midsummer Night’s Dream, peça na qual o bardo narra os conflitos alquímicos entre o céu e a terra à guisa do caos mitológico, reorganizando o tempo e o espaço das personagens mitológicas em conformidade com o caos qualitativo espaço/temporal que é consequência inelutável do avanço dos tempos. 

Pode-se intuir a mesma forma narrativa nas obras da cultura pop munidas de grande consciência poética e simbólica, como no Sandman de Neil Gaiman e no mito cosmogônico dos Cavaleiros do Zodíaco, no qual podemos desvelar, se observarmos atentamente, a continuidade dos esforços sintetizantes das narrativas cosmogônicas. Trata-se de um mito cosmogônico por ser, em essência, uma narrativa que descreve as metamorfoses cósmicas do mundo moderno: as armaduras simbolizam as formas da nova casta dos heróis, transformando o homem do ferro em guerreiro santo através de uma alquimia microcósmica, e a nova disposição dos velhos deuses simboliza a pulsão abissal macrocósmica como o grande monstro a ser vencido no mundo moderno.

Consoante à ideologia alquímica está o ferreiro, o garimpeiro e todo devoto do minério e da forja desde o início dos tempos. Sua primeira intuição do sagrado que habita os metais deu-se ao ver as estrelas caírem do céu e trazerem sua graça para perto. Com muita reverência perante o milagre que viam, extraíam daquilo que chamamos de meteoritos a matéria-prima necessária para a forja de ferramentas primordialmente simbólicas, como as pedras de raio, que simbolizavam a hierofania ali testemunhada, dando-lhe a forma de um machado de duas lâminas que representava o trovão e a fecundação do deus do céu sobre a mãe terra. 

Eventualmente o ferro adquiriu um papel central nas bases civilizacionais, o que acabou por afastá-lo de suas qualidades sagradas em prol daquilo que é meramente instrumental e profano, mas os vestígios da eternidade não podem ser apagados: subsistem nas histórias, nos símbolos e no mito. 

Na narrativa de Saint Seiya, é precisamente na brilhante combinação entre o sagrado e profano que nascem as armaduras dos cavaleiros, descritas no Hipermito de Kurumada como o casamento alquímico entre o oricalco, metal que é descrito no Timeu de Platão como oriundo da civilização perdida de Atlantis, e o gamânio, metal ficcional de origem estelar, como são as próprias pedras de raio. As armaduras só podem ser reconstruídas com pó de estrelas ou com o sangue de cavaleiros e deuses, dois símbolos macrocósmicos, o segundo referente à imolação de um deus ou de um santo.

Os cavaleiros são quase-santos, ou indivíduos em busca da santidade, como descrito no título original da obra. A armadura simboliza um destino, a vestimenta macrocósmica que orienta o homem em seu microcosmo. 

É como a descrição paulina da fé como uma armadura, uma vestimenta contra as tentações e as vicissitudes ocasionadas pelo mal, assim como é também a armadura de natureza simbólica semelhante àquela do escudo de Aquiles forjado por Hefesto, o ferreiro alquimista, como descrito no canto 18 da Ilíada, que simbolizava o papel de subserviência ao macrocosmo e ao destino da civilização que Aquiles passaria a representar daquele ponto em diante: todo o macrocosmo do mundo grego estava contido no escudo, como um símbolo do vir-a-ser da vontade dos deuses.

 O mesmo pode ser dito das armaduras dos cavaleiros, que carregam em si a simbolização das qualidades a serem aperfeiçoadas em suas trajetórias em busca da santidade. À medida que um cavaleiro aumenta seu cosmo, sua armadura é graduada na hierarquia dos metais: do bronze à prata, da prata ao ouro, do ouro ao metal glorioso das armaduras divinas. 

Mas o mais importante aqui não é propriamente a hierarquia dos metais enquanto matéria, e sim as qualidades que Kurumada centraliza em seu mito através dos cavaleiros de bronze que são escolhidos como os principais protetores de Atena: se prestarmos atenção às constelações que regem esses personagens, perceberemos que todas se tratam de coniunctios, de casamentos alquímicos das qualidades que aspiram ao céu e às estrelas.
O Pégaso simboliza o corpo renascido após a morte do dragão alquímico representado pela Medusa, assim como também a união das qualidades da água e do ar, daquilo que é úmido, cálido e elevado, pois o Pégaso é o gerador mitológico da fonte que inspira as Musas em Hipocrene, além de ser um animal alado: simboliza assim as águas superiores das nuvens que se opõem às águas do abismo, como descreve Guénon. 

O mesmo pode ser dito das constelações de Cisne, Dragão e Fênix, todas criaturas contabilizadas no Le Bestiaire du Christ como animais que simbolizam a Cristo (qualidade solar suprema) de várias maneiras. O estudo aprofundado dessas qualidades valeria por si só um ensaio gigantesco, mas basta dizer, para nossos propósitos, que seja o virtus draconis de Shiryu, a prefiguração do Espírito Santo do Cisne de Hyoga, ou a imortalidade solar do corpo glorioso ressuscitado da Fênix de Ikki, temos aqui dispostas várias representações mais do que claras, somadas a do Pégaso, do processo alquímico que descreve a busca pela santidade: passada a fase do Nigredo, o despedaçamento do corpo material, atinge-se o Albedo, ou seja, a purificação, uma apta descrição da jornada da santidade.
 O mesmo cabe para a constelação de Andrômeda e seu cavaleiro, embora em outra perspectiva mitológica: seu destino é o da devoção incondicional ao sol (Perseu, Fênix e Atena) perante o confronto com o abismo (Ceto).

Além do simbolismo microcósmico das armaduras como uma intuição simbólica dos esforços cosmogônicos de verter a natureza férrea do homem moderno, existe uma aparente tensão macrocósmica na obra que deve ser esclarecida como mais um esforço simbólico da ordem: essa “tensão” se dá na pluralidade simbólica do mito grego junto a uma cosmovisão cristã. 

O que se afigura como tensão nada mais é do que a instrumentalização do mythos grego como um símbolo do logos. O cristianismo se utiliza tanto da filosofia grega quanto do direito romano como ferramentas essenciais em suas bases civilizacionais, nomeando a sabedoria que antecede a revelação como logos spermatikos: é no encontro dessas formas que surge aquilo que se convencionou chamar de civilização ocidental, alicerçada materialmente na arte da construção maçônica e no domínio extremo da técnica dos homens de ferro. 

O mesmo encontro de formas civilizacionais pode ser visto aqui. A poética do Kurumada é orientada por aquilo que chama no Hipermito de “Big Will”. É o que dá forma aos deuses, aos titãs, ao mundo e aos homens. O Big Will, se desvelado mais atentamente, nada mais é do que a força das metamorfoses que atualiza as formas e os símbolos numa constante busca pela representação mais aperfeiçoada da ordem, numa demonstração poética daquilo que Voegelin chama de “salto no ser”: a busca pela enteléquia, a atualização máxima das potências. 

No caso do espírito grego, os conceitos míticos se atualizam, através de uma sucessão de esforços holísticos, na figura de Palas Atena como o símbolo máximo da inteligência. Trata-se do nous divino, do intelecto de Zeus parido pela fenda feita por Hefesto o ferreiro alquimista na cabeça de seu pai, em sua forma transmutada e definitiva, guardada pela égide sagrada e coberta pelo revestimento glorioso. Atena é o centro da pólis, da organização social e símbolo mítico da inteligência e da justiça.

A defesa de Palas Atena no isolamento do Santuário representa a centralização do mundo em torno do corpo místico da verdade. O cumprimento do destino estelar simboliza a reorientação do olhar dos homens de ferro em direção ao céu. O sacrifício de sangue de um cavaleiro para ressuscitar uma armadura representa a purificação do profano e a evolução dos metais. A explosão do cosmo representa o espelhamento da ordem celeste no corpo do homem. Os sacrifícios de Atena representam a devoção ao logos. O mito cosmogônico narra o mundo das vicissitudes da santidade. O retorno dos velhos deuses descreve o mundo moderno como o abismo das paixões. O triunfo sobre essas forças por meio do sacrifício pessoal representa o único retorno que nos cabe: o retorno à verdade, ao sagrado, à limpidez de um olhar tão puro e a um corpo tão leve que nos guie às estrelas.

terça-feira, 9 de abril de 2024

Heróis solares

 


O sol é o soberano da ordem cósmica, símbolo máximo do masculino, espírito moldador e definidor de todas as coisas. Representado por um círculo e um ponto central ☉, contém em si mesmo a intuição do movimento divino: princípio e manifestação, alpha e ômega, o centro da criação e a emanação e expansão do mesmo princípio no mundo. Pode-se entender tudo que há para se entender no fiat lux, o ato divino que contém em si próprio o verbo em princípio in principio erat Verbum e em manifestação. 

O sol é o símbolo máximo da luz. Todas as metamorfoses buscam o sol, nutrido no seio materno e parido no útero telúrico na forma do ouro. O ciclo de transformação dos metais da alquimia narra o processo de ascensão da matéria ao seu corpo glorioso, mortificado, despedaçado e reconstruído, processo esse descrito pela transformação sucessiva dos metais, da escuridão insidiosa do chumbo ao brilho régio e ígneo do ouro. 

É a insígnia inequívoca de nossa mácula: o chumbo contém em si todas as potências daquilo que virá a se tornar ouro qualquer minério, essencialmente que opta, por vezes, pela coagulação em estágios intermediários que possibilitem a realização de certas vontades. A busca pela atualização completa do potencial do homem é a jornada, como diria Confúcio, do aperfeiçoamento das vontades. Só então seria permitido ao homem o cumprimento de seus papéis solares, como cabeça da família e do estado, em pleno exercício de suas capacidades por desígnio divino. Essa vontade aperfeiçoada é aquela que, nas palavras de Silesius, é a transformação do homem por meio de Deus e em Deus.

Valendo-se da distinção entre o microcosmo e o macrocosmo, entre as coisas da terra e as coisas do céu, é possível melhor identificar as características principais que orientam heróis solares nas mais diversas castas, vocações e cenários narrativos, levando em conta primordialmente a função exercida pelo herói no contrafactual. É inegável que o personagem do Padre Brown, dos contos investigativos de G. K. Chesterton, exerce uma função devastadoramente solar em seu papel de guiar a razão até as estrelas. 

Munido dos princípios da ortodoxia e de uma razão barbárica, exerce influência majoritária sobre a forma das histórias e de seus personagens, não apenas enquanto sacerdote (embora o faça, com a empunhadura dos sacramentos em muitos contos), mas enquanto investigador, teólogo, crítico de arte e interlocutor racional. Um de seus papéis notáveis é, por exemplo, a influência que exerce sobre a figura mercurial, lunar-to-become encarnada por Flambeau, o engenhoso ladrão francês que atua como uma verdadeira lenda na arte da trapaça. 

O antídoto ministrado por Brown sobre o gatuno não consiste exatamente no exercício dos sacramentos  muito embora o faça em determinada ocasião, marcada pelo furto de Flambeau a uma série de talheres de prata, recebendo então a confissão do homem mas no desvelamento da natureza profunda de suas atividades criminosas, que no fundo são muito pouco guiadas por uma má índole, e sim por um espírito decadentista de flâneur que toma a experiência erótica da arte como uma aproximação telúrica do transcendente. 

Ao mostrar-lhe uma saída por meio do eterno prazer da razão, Brown não apenas atua enquanto evangelizador, mas como um crítico racional que desvela o sentido por trás da aparente ininteligibilidade do mundo moderno em seu terror cotidiano, o que simultaneamente encerra seus dias enquanto gatuno e marca o início de sua jornada de redenção pessoal. O Padre Brown é um inequívoco exemplo da força solar da razão enquanto definidora e transformadora das formas e dos homens, “But don't fancy that all that frantic astronomy would ' make the smallest difference to the reason and justice of conduct. On plains of opal, under cliffs cut out of pearl, you would still find a notice-board, ‘Thou shalt not steal.' “

Em contraste gritante com o papel macrocósmico da razão solar de Brown a despeito de sua raquítica estatura temos uma miríade de heróis que exercem papel solar de maneira radicalmente oposta, até mesmo profana: Agamemnon e Aquiles, ambos heróis solares, são figuras centrais de um povo que representa a solaridade como um todo na disputa por Helena na Ilíada, sendo a esposa de Menelau um símbolo da beleza inteligível, daquilo que afirmaria a superioridade da razão, representada pelos aqueus, o povo solar, sobre a pura materialidade, representada pelos telúricos troianos. 

Mas a guerra de tróia representa esse conflito do enxofre alquímico sobre o mercúrio em cores trágicas, através do pathos da húbris desses heróis solares. Tanto Agamemnon quanto Aquiles expressam diferentes aspectos da solaridade, o primeiro expressando a soberania daquele que detém o poder temporal e o segundo, a força. Ao ultrapassar o métron, a medida de cada um, Agamemnon exerce a função de tirano que leva a razão ao vale da morte, desrespeitando seu mais forte guerreiro e assegurando que as funções solares, uma vez profanadas por trazerem à tona o aspecto mais nefasto do orgulho, pecado capital solar por excelência, entrassem em pleno declínio marcial e férreo, não apenas por se tratar de um contexto de guerra, mas pelo que a guerra de Tróia como um todo representa: o fim de um ciclo cósmico de 10 anos, que antecipa o que viria a ser o fim da era dos heróis e os prelúdios da Idade do Ferro. A tragédia da autoafirmação solar no mundo material é anátema à perfeição da alma imortal, algo que fica claro pelo destino desses heróis.

Nos épicos modernos o herói solar costuma aparecer mais frequentemente como a panacéia que resolva os conflitos e máculas daquele mundo, ou seja, como a enteléquia daquelas potências. É o caso de heróis como Luffy, que se tornou um deus solar ao absorver os “metais” do trajeto, assumindo então as cores do ouro na cosmologia chinesa e manifestando as qualidades expansivas e moldadoras daquilo que é solar. Naruto divide sua graça com todos e cumpre seu destino como sintetizador daquela dialética hegeliana, manifestando sua qualidade solar-messiânica exotericamente. 

Edward Elric, um herói sulfúrico e solar, carrega os germes de todo o povo ariano e soluciona os problemas da corrupção da alquimia no estado moderno ao transmutar a própria alma, simbolicamente representada por seu irmão, o mercúrio anímico que é a contraparte de sua individuação, forçando o ímpeto solar à mortificação do corpo para o aprimoramento das potências, ato ritualizado e concluído no sacrifício pessoal. Os saiyajins de Akira Toriyama, na mesma clave, evoluem de primatas telúricos-lunares para heróis dourados-solares. A solução oculta daquele universo seria a superação da húbris na ética dos saiyajins durante a Saga Cell, húbris essa que culmina na quase-tragédia da raça humana, tanto por parte de Goku quanto de Vegeta, que devem ser superados pela próxima geração de verdadeiros heróis, muito semelhante à obsolescência de Agamemnon em favor de Orestes na trilogia de Ésquilo.

Para concluir essa breve reflexão a respeito do sol e de suas qualidades, devemos contemplar a expressão máxima da solaridade e do fim de todas as estradas, que é o Deus vivo que é também a encarnação do logos na história: Iesus Christus, já que sua paixão é a mais perfeita representação da chegada ao corpo glorioso, e seu sacrifício é o único que faz jorrar, através de seu sangue, o elixir da vida eterna. A imolação de um deus é o sentimento primordial daquilo que é o garantidor da renovação de ciclos e do desabrochar de uma nova vida, e nenhum outro símbolo rivaliza a síntese de toda a busca alquímica e do ciclo de metamorfoses: faz-se presente nas rosas, no cálice do santo graal, na lança de longinus e em incontáveis simbolismos do centro do mundo, sendo o mais quintessencial de todos o eixo da realidade simbolizado pela cruz. 

Cristo é o centro da eclíptica, o trajeto anual do sol: dele são emanados todos os arquétipo divinos, ou seja, todo o zodíaco, que é a simbolização numérica das qualidades eternas, da combinação multiplicada entre o 4 e o 3, entre a terra e o céu, entre o microcosmo e o macrocosmo, quantitativamente manifestada no número de qualidades planetárias da ordem caldaica: 7. O símbolo do sol se afigura, portanto, em todas as narrativas, nos épicos alquímicos e nas tragédias dissolutivas, como a representação da enteléquia, da atualização ou da queda das potências de um cosmos, a extensão visível e inteligível daquilo que é o começo e o fim, o meridiano da vida e da morte e de tudo que diz respeito ao nosso fim último enquanto espécie.

terça-feira, 2 de abril de 2024

Heróis lunares


A ideia de um “herói lunar” pode soar estranha e até contraintuitiva à primeira vista, mas fica fácil de se argumentar em favor de um determinado tipo se tomarmos como ponto de partida uma base sólida e fundamentada na mitologia e nos clássicos. Falo que essa ideia pode parecer contraintuitiva pelo mero fato de que homens, em essência, são representados pelo Sol, e mulheres pela Lua. Assim sendo, devemos fundamentar um pouco de nossa argumentação em favor daquilo que poderíamos tomar como homens lunares, ou homens femininos. Uma vez definido o homem, falaremos do herói.

A lua enquanto objeto simbólico está ligada aos ciclos biológicos e a tudo aquilo que é do reino do vir-a-ser: as transformações biológicas, as mudanças de tamanho, forma, natureza elementar, etc. Liga-se então ao feminino e à natureza, portanto, em sua extensa transição de ciclos e paixões, qualidades que fazem parte das ideias de uma realidade sublunar ou supralunar, sendo esta relativa ao que supera o conhecido, o circunscrito, a lua (daí a expressão ‘lunático’), e sendo aquela a realidade dominada e subjugada pelos ciclos da matéria. 

Creio que seja fácil de ver onde quero chegar com isso: em se tratando de objetos poéticos, somos prontamente capazes de elencar o caráter intrínseco das situações e das respectivas respostas dadas por seus personagens, que são qualidades presentes em todas as histórias, e de diferenciá-las de acordo com toda sorte de descritores simbólicos. Eis o papel do símbolo e sua aplicabilidade ao homem universal enquanto espécie. Existem mais qualidades a serem elencadas ao símbolo da lua, as quais veremos a seguir.

Um adendo a ser feito, porém, diz respeito à própria natureza do símbolo: não é porque um personagem x possa ser descrito como lunar que aquilo diz respeito a alguma articulação de essência. Existem traços de natureza que possuem inclinações lunares, das quais pode-se inferir em certas culturas, em certas compreensões da ordem cósmica, como é o caso da grega, aspectos do destino de um personagem, ligando-o a algum tipo de daimon por exemplo. Mas isso é insuficiente para inferir toda a trajetória de um determinado arco como necessariamente orientada a um papel secundário e lunar, especialmente se tratando de obras cuja complexidade de papéis cósmicos a serem cumpridos se liga de tal maneira às paixões desordenadas de seus personagens que a clareza de um destino se torna muitas vezes invisível até determinado momento do enredo. 

Seria muito difícil, e até mesmo um erro elencar um personagem como Hamlet ou Odisseu, por exemplo, símbolos de aspectos máximos da universalidade humana (o segundo sendo o mais humano de todos os heróis gregos) como personagens lunares, ainda que exerçam certos aspectos dessa qualidade. Precisamos proceder com cuidado nessas definições. O que retém a unidade sintética é o próprio símbolo, ou seja, a própria lua: os exemplos respectivos que melhor a caracterizam costumam ser felizes encontros entre situações e estados anímicos.

Tomando o argumento como verdadeiro, podemos prosseguir na tarefa de elencar um corpus de heróis que possam caber nos limites estabelecidos: homens tensionados e movidos pelas paixões e por um sentimento lúgubre da realidade cujos arcos tendem geralmente à redenção pessoal ou à tragédia no desfecho. É também uma qualidade de muita importância para o tipo a capacidade de introspecção e do bom juízo. Se a lua é o elemento feminino universal por excelência, é dela que se derivam as qualidades mais intuitivas e o bom foresight diante da realidade material. O herói lunar tem uma grande compreensão do mundo material, a qual se utiliza para realizar julgamentos próprios e corretos em seu estado ideal. Quando desgovernado, costuma tender a revoluções e a uma burocratização típica dos maus líderes. Exerce muito melhor seu papel enquanto filósofo e conselheiro. 

O homem solar, em contraste, costuma realizar seu papel em grande parte através da grandeza de sua personalidade, que costuma estar atrelada a uma cegueira interior, como muitas das descrições dadas a Napoleão esclarecem. As características lunares são muito próprias dos ninjas, por exemplo, a casta burocrática e da espionagem do Japão feudal: um heroísmo silencioso. O mesmo caberia para o dilema do Batman enquanto figura noturna. Os xátrias ideais de Platão na República seriam guerreiros análogos a cães de boa raça: filósofos por natureza, por saberem diferenciar, distinguir o bem e o mal, a fidelidade e a infidelidade, para exercerem o papel de guardas perfeitos as sentinelas são um exemplo dessa qualidade noturna. Talvez uma boa dicotomia que explique os tipos simbólicos em definições sejam os conceitos de certeza e dúvida - o herói solar é e não poderia não ser, enquanto que o herói lunar busca e por isso precisa ver. 

O sol é a expansão indefinida e a lua é perfeitamente circunscrita. É por isso que a fé perfeita de Maria e a Verdade que encarna em Jesus Cristo são os exemplos máximos da Lua e do Sol em suas características mais aperfeiçoadas, na medida em que a fé perfeita é o exemplo máximo da devoção ao Sol (Deus) e o amor infinito de Cristo é a própria encarnação daquilo que é.

Talvez o exemplo mais adequado em termos mitológicos do herói lunar no mundo antigo seja Orfeu, um semideus de talento musical e encantatório notáveis traços notórios de tudo aquilo que é lunar em suas características mais oníricas, ilusórias, ansioso por uma realidade conhecida, palpável, segura que se dirige ao submundo na tentativa de resgatar sua amada, confiante em suas capacidades encantadoras. Orfeu é por definição o desbravador dos mistérios ctônicos, subterrâneos, na esperança de suas ações possam mover montanhas: flectere si nequeo superos acheronta movebo

Suas habilidades artísticas são inquestionáveis, mas seu propósito é fraco, como um típico homem lunar, introspectivo e autoiludido, razão pela qual não pode tomar verdadeiros saltos absurdistas e confiar no acaso: seu papel não é o de conquistar, mas o de aconselhar. Em todos os cenários, fica claro que seu temperamento engenhoso, conhecedor, discursivo e em última instância oracular são pouco próprios do herói solar, capaz de mover montanhas, mas perfeitamente alinhadas ao herói lunar, que não exerce função de protagonismo na história humana, e sim o papel da correta devoção e do justo alinhamento ao comando divino no cumprimento do dever.

A história de Orfeu ilustra muito bem ambos aspectos narrativos do herói lunar: tanto o da tragédia pessoal ao ser despedaçado pelas Bacantes, numa exortação simbólica de seu desespero por se libertar do mundo material (um sentimento devastadoramente gnóstico) quanto o da redenção pessoal na tentativa de comunicar as profecias enquanto exercia seu papel de vate, ou oráculo, como um receptáculo da verdade. Sua música funciona como uma exortação de sua compreensão intuitiva da realidade concreta transposta em termos universais, mas seu verdadeiro papel deve ser o de comunicar o discurso dos deuses.

Para alongar um pouco a reflexão e fornecer mais perspectivas, alguns exemplos da cultura pop: Light Yagami é um exemplo de “feliz encontro” de uma mentalidade tipicamente lunar do povo japonês (revolta dos xátrias, burocratas por natureza) com a construção de um conflito psicológico puramente ditado por meios materiais. Kira vs. L se caracteriza como um conflito entre personagens lunares em orientações distintas, mas semelhantes: burocratas vs. tecnocratas. A própria ideia de ‘Kira’ representa uma projeção, uma sombra na parede que simula a presença de um Deus. Além do nome do próprio Yagami ser de fato escrito com kanji de lua (月). Ou de Misa liderar um culto à luz da lua no fim do mangá. A orientação trágica nessa história é evidente, já que a lua aqui seria justamente o símbolo da busca pelo aprisionamento do mundo em um simulacro da ordem.

Podemos ver outros ângulos, numa exemplificação da natureza lunar em contraste com o sol nas dinâmicas entre Yang Wenli e Reinhard von Lohengramm, este sendo o leão napolêonico conquistador enquanto aquele exerce a função de historiador, filósofo e exegeta por excelência de toda a história, desejando a todo o tempo “acordar do pesadelo que é a história”, como o próprio Dedalus, outro herói lunar. Oberstein seria ainda um outro expoente do arquétipo do herói lunar em sua máxima capacidade de organizar e administrar o mundo moderno. Dinâmica similar pode ser intuída na relação de Naruto e Sasuke, especialmente ao levarmos em conta as habilidades do Sharingan: a ênfase aparentemente demasiada nas habilidades visuais em Naruto está relacionada ao que já falamos anteriormente, quanto à necessidade do herói lunar de perscrutar os mistérios e ver com os próprios olhos.

Sua jornada resultante, um outro tipo de trajeto desse herói, é o da redenção pessoal - ou uma jornada de formação, um bildungsroman se preferir. O certo é que, em se tratando de heróis lunares, os dilemas do vir-a-ser e o exercício das tarefas privadas e zelosas serão sempre preferíveis à impetuosidade desgovernada do “espírito faustiano”. Um exemplo final para demonstrar o que a confusão dos papéis entre o céu e a terra pode e vai gerar enquanto tragédia moderna: a família que Michael Corleone magistral e terrivelmente destrói, parte por parte, ao longo da trilogia The Godfather. Existe um preço a ser pago em espécie ao karma (ou às parcas, se preferir) aos que confundem as coisas do céu com as da terra: to each their own. Ao homem lunar o zelo, a sabedoria, o sacerdócio e a paternidade são preferíveis ao destino ávido e ordinário dos que se recusam a cumprir seus verdadeiros papéis no cosmo enquanto estoicos devotos das coisas de Deus.

segunda-feira, 1 de abril de 2024

A Engenharia Social em Eyes Wide Shut

Nigredo, escuro em latim, é uma fase do processo de transmutação dos metais em ouro na alquimia: a fase negra. Tal ideia remonta um sem fim de ritos iniciáticos que dizem respeito à “morte” do iniciado, a um movimento de queda, estranhamento e alienação que antecipa o momento de purificação branca, algo como o equivalente à ressurreição. Tal processo pode também ser comparado ao que se conhece como “Noite de Saturno”, um momento em que a matéria-prima alquímica é submetida à putrefação, ao caos e à desordem, até mesmo à loucura. É o que se entende como “morrer para o mundo”. Um dos motes narrativos mais explorados na história do cinema para a representação deste estado é o da Noite, como paisagem amorfa predominante e núcleo de possibilidades indefinidas. Na contemplação da vastidão de aparências do mundo moderno pelo vácuo da madrugada, o homem se encontra com o reino dos pesadelos.
É claro que a descrição de tal processo, isto é, o da retirada do homem de seu estado de inércia para ser submetido a uma sequência desgovernada de transformações tem um sentido completamente distinto das intenções mais nobres da tradição hermética. No Mundo Moderno, chamamos tal processo de Engenharia Social, que transforma o homem num experimento, cujo fim é o cumprimento de certas agendas, como a sublimação da Revolução Sexual como “Realidade Suprema.” Uma das obras que melhor expõem este tropo é “De Olhos Bem Fechados” de Stanley Kubrick.
Existe um processo alquímico explícito no filme, iniciado no momento em que a serpente feminina, Alice, projeta seu universo supralunar sobre Bill, seu marido, um homem que não possui valor intrínseco e nenhum resquício de consciência de suas circunstâncias. Bill é um bom burguês, um médico bem pago e satisfeito com as regalias e pequenos prêmios que a vida lhe ofertou, sendo o maior destes sua esposa. É essa condição de ingenuidade e satisfação material plena que o torna um paciente tão sedutor para as transformações da engenharia social. Bill e Alice, vividos por Tom Cruise e Nicole Kidman, são o protótipo ideal de um “casal perfeito”. É no rompimento das crenças dessa utopia que ambos os personagens vão exercer seus papéis na “grande obra.” Sua substância deve ser alterada e moldada para ser submetida à magnum opus da revolução sexual, que suplanta o masculino pelo feminino. O mundo obscuro de De Olhos Bem Fechados e a consciência erótica de Alice estão diretamente ligados, sendo um a projeção do outro. No momento em que Alice projeta seu subconsciente desgovernado em Bill através de uma exposição do erotismo que jazia dormente em seu espírito, o processo alquímico se inicia, separando-o e dividindo-o de sua unidade familiar, lançando-o por fim no precipício da noite.
O que se segue a partir daí na jornada de Bill é um processo de Nigredo, mas nos termos da Engenharia Social. Se a Unidade for dividida, haverá uma progressão dialética natural de volta à unidade, mas uma unidade então adulterada e satanizada. A nomenclatura da Engenharia Social substitui então o Nigredo por Freezing, isolamento do indivíduo, que ruma ao Unfreezing, a falsa purificação. Bill é submetido então do processo negro ao branco, sendo, por fim, purificado e reintegrado à unidade do lar pelo perdão de Alice, submetendo-se por fim à realidade da revolução sexual, cujo prêmio no “fim do arco-íris”, o pote de ouro, é o do privilégio sexual. É também esse o motivo pelo qual os símbolos de fertilidade são abundantes no filme: A Romã, o carrinho de neném e todos os símbolos natalinos, só que invertidos, satanizados. O que era então símbolo da unidade sagrada do nascimento divino, da encarnação do Logos, regride a um estado decaído de uma realidade alquímica e cosmológica, que é a “Realidade Suprema” do mundo moderno. O espírito “natalino” anseia pelo retorno a uma era em que as mulheres perdiam a virgindade para ir ter com os homens que “realmente queriam.”
Esse é o mundo romano das Saturnálias, parafraseando o húngaro que seduz Alice no começo do filme, que cita o poeta Ovídio com o intuito de transportá-la ao mundo orgiástico pagão dos ancestrais da Europa. Mais tarde no filme, no encontro de Bill com os mistérios da seita satânica, nota-se que o interior da mansão gótica nova yorkina foi transformado num neoclassicismo que preside orgias romanas ecumênicas.
O mundo moderno, mitológico em sua natureza profunda, é incapaz de explicar a si mesmo. A explicação verdadeira para ele está em seus referentes pagãos cosmológicos. Nesse sentido as 24 horas de uma jornada no tempo presente de uma noite natalina se passam, na verdade, num “Eterno Carnaval” saturnino. Nisto também se explica a dialética entre Sonho e Realidade, que se trata na verdade de uma dissonância cognitiva que bifurca a consciência do homem moderno para não ser mais capaz de enxergar a verdade, mas somente uma dialética de opostos que devem enfim concordar e buscar a unidade. Temos então a inversão simbólica da modernidade: uma soma de elementos que intenciona a construção de uma ordem biônica. Eis o Casamento do Céu e do Inferno, uma perversão alquímica suprema do que deveria ser a união entre o Céu e a Terra: forças mortalmente antagônicas devem ser sintetizadas, com o fim de intoxicar a verdade com o veneno da mentira. Esse é o sentido profundo da corrupção do casamento, sublimado na inversão completa dos papéis. Nisto entra também a inversão do rito litúrgico romeno da missa satânica que abre o ritual que Bill testemunha: o sacerdote maligno, que em muito lembra o Apolônio de Soleviev, o papa do Anticristo, incensa as prostitutas que servem, em sentido último, como substitutas sacrificiais da Sagrada Eucaristia.
O propósito é claro: o sacrifício de Jesus Cristo deve ser suplantado pela ideologia do Anticristo, substituindo o Cordeiro de Deus, por fim, por sacrifícios HUMANOS daqueles que são vistos como membros das castas mais baixas, as quais, no decorrer filme, provam-se como únicas retentoras de resquícios morais e de algum senso de sacrifício genuíno, como “Mandy” que é puxada pela mão da “Morte” à direita, em contraste com os caminhos pela via esquerda que Bill passa a percorrer voluntariamente na segunda metade do filme, aludindo aos caminhos da vida e da morte em sentido ESSENCIAL
É provável que todas as prostitutas do filme tenham sido sacrificadas pelo rito satânico (após serem sexualmente consumidas), inclusive “Domino”, a moça grata pelos momentos de compaixão de Bill. Mas a clareza diegética disso não é necessária, pois é da natureza poética desse filme a manutenção de um sentido dúplice, mercurial, que submeta o espectador a um estado de consciência bifurcado similar ao que Bill se vê vítima. Os jogos dúplices são intermináveis, tendo como provável chave hermenêutica o momento em que Ziegler, um membro do culto que é também amigo do casal, diz a Bill que nunca houve uma “segunda senha” de admissão. Bill, alienado demais para notar o ato falho, não percebe o sentido profundo da coisa: que não existem duas histórias a serem contadas, só o cruel encontro com a verdade através de sua exposição à morte poderia salvar sua alma — como quando olha NOS OLHOS do cadáver de Mandy ao descobrir o que aconteceu.
Da primeira à segunda metade do filme, dividido exatamente ao meio pela cena do ritual satânico carnavalesco, os caminhos de Bill expressam a dualidade em sua consciência adulterada: de vítima brutalizada por imagens mentais inquietantes da hipótese do adultério de Alice, caminhando a esmo pela noite em busca de respostas, a matéria-prima alquímica se torna mais e mais agravada pela culpa, que atinge seu Nadir no sacrifício de uma mulher “inocente” que morre pela redenção de seus erros perante o tribunal satânico. A consciência de Bill, já bifurcada pelo conflito com a realidade anímica de sua esposa, é forçada então a buscar a unidade pela responsabilidade de seus atos, voltando ao lar e se “confessando” diante de sua esposa, selando assim um pacto karmático e causal com o culto diabólico ao se submeter à “Realidade Suprema” tanto da mulher moderna, vivificada por Alice, quanto da revolução sexual e da inversão dos papéis matrimoniais.
Isso é muito bem representado pelas insinuações do que parece ser uma luz mística externa ao apartamento do casal, que reflete os recônditos do subconsciente lunar de sua esposa, buscando como fim último a subversão completa dos papéis do casal e a consolidação dessa alquimia sexual. É consumada a falsa purificação. Entendendo-se de novo como parte de uma unidade sacramental, Bill se vê submetido, desta vez, às leis implacáveis da revolução sexual, que transformam o casamento numa busca pelo ouro da liberdade sexual e da irresponsabilidade parental. Ao que tudo indica, o fim do filme aponta para uma FORTE insinuação de que a filha do casal, Helena, está sendo vendida para o culto — e que poderá ser substituída por sucessivas relações sexuais, fonte abundante e “inesgotável” de fertilidade, o que não passa de mero simulacro da sensação de eterno vigor da Era de Ouro. Isso também serve como vitória da igualdade global sobre o indivíduo e o senso hierárquico, que transforma o seio familiar na imagem e espelho de uma sociedade corrompida.
É importante acrescentar, por fim, dois pontos do simbolismo latente no Epitáfio de Kubrick: o primeiro é o arco-íris que leva ao pote de ouro, mais um simbolismo inequívoco da alquimia: as 7 cores que representam os estados do ser que vivificam a trajetória rumo ao êxito da Grande Obra. Existe também um simbolismo crucial nas máscaras do Carnaval de Veneza usadas pelos participantes do culto: servem como chave “mágica” que materialmente submete seus participantes à realidade do “Eterno Carnaval” nos termos de Guénon — a realidade da inversão simbólica completa, da inversão das castas: sacerdotes satânicos bestializados, prostitutas sacrificiais virtuosas. Este é o mundo da Saturnália, assim como é, também, espiritual e psiquicamente, um olhar cristalino e resoluto sobre a realidade das castas dominantes do mundo moderno: a plutocracia, afundada nas águas dos Vayshás, assim como as terras de Veneza. É a imanentização por excelência da realidade abissal dos que foram confinados na religião satânica do Anticristo.

Tengoku to Jigoku e a moralidade japonesa

Os japoneses são estranhos. Trata-se de um povo disciplinado, colegial, artístico, folclórico, ardiloso, coletivista, burocrático, plutocrát...