sexta-feira, 10 de maio de 2024

O Casamento Alquímico em Shoujo Kakumei Utena


 O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo –
O corpo morto de Deus,
Vivo e desnudo.
Este, que aqui aportou,
Foi por não ser existindo.
Sem existir nos bastou.
Por não ter vindo foi vindo
E nos criou.
Assim a lenda se escorre
A entrar na realidade.
E a fecundá-la decorre.
Em baixo, a vida, metade
De nada, morre.

 Ulisses, Fernando Pessoa.

múltiplo enquanto símbolo é o representante dos estágios qualitativos mais tardios de qualquer processo de transformações. Sejam estes históricos, como o estágio civilizacional em Goethe, Spengler, Guénon; ou religiosos, como a “miríade de coisas” de Laozi; e especialmente herméticos, já que o distanciamento entre o micro e o macrocosmo se dá na perda de contato com a unidade das formas essenciais. Seja qual for o ponto de vista, não existem dúvidas de que do uno (essência, forma) rumamos para a tirania do múltiplo (substância, matéria).

Nessa dicotomia percebe-se também o caráter do mito, que quando religado através do rito, vive. Quando meramente encarnado através do corpo do homem, morre. O tudo e o nada, as formas e as substâncias, a eternidade e o tempo, enxofre e mercúrio, ativo e passivo, masculino e feminino. Todas estas são expressões de um delicado desequilíbrio expresso quase que naturalmente em nossas sensibilidades modernas — tensão raramente meditada de forma adequada, com a visão e o conhecimento necessários.

Em Shoujo Kakumei Utena, obra-prima de Kunihiko Ikuhara, acompanhamos uma complexa trama composta de elipses de roteiro que devem ser preenchidas pelo espectador, alicerçadas por uma riqueza magistral de símbolos, alegorias e rituais. É quase impossível lhe fazer justiça no que diz respeito às possibilidades interpretativas, mas é razoável supor que sejamos capazes de desvelar a maioria de seus símbolos conquanto abdiquemos de uma compreensão narrativa convencional e abracemos inteiramente a clave do mito.

Sem uma total suspensão de descrença perante o ambicioso experimento da criação de uma mitologia moderna, torna-se virtualmente impossível extrair o que quer que seja de valor num exercício de exegese aqui. A trama pode ser bem resumida em poucas palavras: um ritual sempiterno composto de duelos entre estudantes que buscam a mão da Noiva da Rosa, que lhes garantirá o poder de “revolucionar o mundo.” Assumindo que a grande maioria de nossos leitores esteja familiarizada com os pormenores do roteiro, sigamos ao que interessa: uma exegese mais ou menos eficiente dos pontos narrativos mais desafiadores da obra.

Tratemos primeiramente do assunto por camadas narrativas. É importante determinar antes de tudo um dos aspectos mais mal compreendidos de Utenasua natureza poética. A narrativa de Utena não pode ser compreendida por um ou outro aspecto poético. Tratando-se de mitologia, e de uma mitologia moderna sobretudo, é inútil tentar estabelecer fronteiras claras e esquemáticas quanto às formas que a narrativa adota em cada uma de suas etapas. Isto ficará ainda mais claro quando percebermos mais à frente o papel central da alquimia na narrativa, mas é importante traçar desde já suas intenções artísticas.

Deve-se encarar Utena, portanto, como uma história narrada sob a premissa oculta das ILUSÕES. O quadro composto pela justaposição da natureza meditativa dos personagens principais e a natureza abstrativa dos personagens secundários, estes servindo à narrativa como abstrações psíquicas daqueles, ilustra muito bem a natureza um tanto onírica do anime, assim como a riqueza de possibilidades contida neste olhar.

Um exemplo disto é o arco da Juri, composto por uma tensão entre o feminino, Shiori, que manifesta os aspectos mais telúricos-mercuriais de sua alma, numa possível denúncia de seus desejos sexuais mais corrompidos, e os personagens masculinos que compõem o outro lado da balança meditativa delirante de Juri, como Ruka, uma espécie de eu ideal devorado pelo Eros. Também é o caso de Kozue em relação a Miki, que representa a projeção do aspecto feminino e erótico corrompido da mente de seu irmão.

Em outros casos, os próprios personagens do núcleo principal de estudantes (Saionji, Miki, Juri, Touga e Nanami) assumem uns para os outros aspectos abstrativos, como se fossem complementos de suas lacunas psicológicas. Isso se deve ao fato do anime poder ser descrito como uma obra de religação do múltiplo ao uno, uma obra que tenta resgatar, parafraseando Chesterton, as “velhas virtudes cristãs enlouquecidas”, ou seja, trata-se de uma tentativa de união dos fragmentos perdidos da sabedoria ancestral por meio de um ritual.

Essa tentativa é expressa com clareza pelo desejo mimético de René Girard, ou seja, trata-se de um desejo romanesco que se liga primariamente aos intermediários, às emanações antropomórficas que o elenco assume de acordo com o estágio dos duelos, sentimento que se repete também na estrutura narrativa do anime, como ficará claro depois. Em maior e em menor grau, as personagens atuam como espelhos desejos miméticos umas das outras.

Tais relações são estabelecidas através de um ciclo erótico e compulsivo: o mundo em que esses personagens habitam é dominado pela natureza em seu aspecto mais terrível, expressa por Eros. Em uma compreensão cosmológica mais profunda, a tensão regente de todas essas relações, de todos os pares apresentados no decorrer dos 39 episódios são as dinâmicas entre o enxofre e o mercúrio, que podem ser compreendidas como as sempiternas tentativas de criar um casamento alquímico perfeito: a unificação do masculino e do feminino para retornar ao estado adâmico, que supostamente faria do homem alguém capaz de retornar à eternidade.

Postos estes aspectos de sua natureza poética e da volatilidade natural que a narrativa de Utena assume de tempos em tempos, avancemos para a estrutura cósmica e para as ideias religiosas mais pertinentes na obra. Cosmologicamente falando, existem dois núcleos de maior importância: os personagens que lidam com as qualidades dos astros (o núcleo do conselho estudantil) e os personagens que compõem a estrutura da “realidade cotidiana”. Mas que realidade seria essa?

Referimo-nos aqui à realidade testemunhada durante o anime em seu nível literal, ou seja, a da Academia Ohtori, que não constitui a realidade diegética por inteira: trata-se de um microcosmo biônico, ilusório, cujo intuito é o de cumprir os passos de um ritual gnóstico de caráter essencialmente órfico dionisíaco, cujo fim último é a conquista da eternidade, ou seja, o religamento com o macrocosmo.

Uma das evidências disso é o fato da poligonal do terreno da escola ser desenhada no formato de um caixão, um dos símbolos do Forno Alquímico, o Atanor, reduto da Grande Obra. Este é, portanto, um microcosmo governado pela natureza de Eros, como um teatro do mundo. O elenco da peça gira em torno das seguintes personagens:

  • Eternidade, objeto de desejo último partilhado por todo o elenco;
  • Dios, representando aqui Nous, o intelecto divino — Análogo do Espírito/Enxofre/Masculino metafísico;
  • Akio, representando Psiquê, a personificação da Alma — Análogo então ao Mercúrio, que se divide em um mercurius duplex com sua irmã Anthy. Akio assume aqui o aspecto DEMONÍACO e sulfúrico do Mercúrio, representado pelos chifres de Áries;
  • Anthy, representando Eros sob a forma da Natureza em seu aspecto mais aquoso e abissal;
  • Utenamanifestação do Nous Divino — Um contra factual da deusa ATENA, ou seja, uma encarnação do intelecto divino, aquela que está destinada a se religar com a Eternidade no fim do ritual. Utena pode ser vista como uma expressão da própria pedra filosofal, destinada a transformar a alma de Anthy, libertando-a de sua prisão pessoal e libertando os demais personagens da tirania da Natureza. Utena encarna aqui um Rebis, o hermafrodita alquímico, por ser ela mesma uma mimese do Príncipe, símbolo da Eternidade Masculina, dentro da feminilidade temporal, numa entrega quase que total à vontade de Dios.

A partir do esquema acima pode-se entender que a eternidade, objeto de desejo comum a todos os participantes do ritual, manifestou-se primeiramente em Dios (como em Zeus, o deus do céu que é herdeiro de Uranus) como o princípio do eterno masculino, o enxofre alquímico, aquele que dá forma à substância indiferenciada, a matéria-prima mercurial, feminina e terrestre.

Esse é o velho mundo pagão em conformidade com uma cosmologia de caráter alquímico gnóstico, que dispõe os mitos do panteão grego em torno de um rito de mistérios de caráter dionisíaco e especialmente ÓRFICO através de uma anamnese do momento da queda de seus deuses.

No momento em que Anthy (um dos nomes das graças de Hera) decide tomar para si o amor do príncipe com a intenção de tirá-lo do mundo, roubando-lhe a graça do “Eterno Masculino” para seu seio, assume um papel análogo ao de Eva Pandora, um aspecto da natureza indomada, que qualitativamente regride às raízes titânicas, telúricas e principalmente TEMPORAIS do mundo.

No sequestro do amor universal, Philia, manifestado pela graça do príncipe, natureza se tornou egoísta. Transformando-o em Eros, seu aspecto menor e temporal, Anthy lhe corrompeu a graça masculina transformando-a na corrupção temporal de Dionísio, o Deus do vinho e dos cultos orgiásticos, que representa também os aspectos soturnos e obscuros subjacentes da Hélade: os ritos, os mistérios e até mesmo a guerra em sua acepção ritualística.

Dionísio é o “filho de deus”, o príncipe prometido que foi desviado de sua trajetória por Hera, que condenou-lhe a um estado temporal de corruptor das paixões. O vinho de Dionísio é uma expressão do enxofre, do enlouquecimento induzido em seus ritos.

Na busca por se tornar um herói, Anér (ἀνήρ), ou seja, na busca por entrar em contato com a eternidade, existe um pathos que o homem derradeiramente segue na tragédia grega, o teatro de Dionísio: o homem, Ánthropos (ἄνθρωπος) deve superar o Métron (μέτρον — a medida de cada um) e entrar em contato com o Enthusiasmós de Dionísio (ἐνθουσιασμός) através do Ékstasis (ἔκστασις), um processo que descreve a saída de si em direção à divindade, vivificado pelos atores. Ao ultrapassar seu Métron, o homem atinge Hypokrités (ὑποκριτής), o estado de “demésure”, lançando-se por fim à Hybris (ὕβρις), o supremo “pecado” do desalinhamento com o cosmo.

Todos esses aspectos podem ser vistos no ritual que se dá na Academia Ohtori, conduzido por um grupo de atores que buscam a encarnação do herói, saindo de si próprios em direção a Dios para “revolucionar o mundo”. O ritual também é regido como uma fantasia órfica-byroniana: um estado induzido de êxtase que busca o nascimento de Eros como um símbolo da eternidade (através duma sucessão de coniunctios e casamentos alquímicos, de uniões, sejam elas sexuais ou apenas estimulantes) dentro de um ovo alquímico, um atanor, que nesse caso seria a própria escola.

Isto é algo que também explicaria a relação direta com o Demian de Herman Hesse através da célebre citação que marca o início das reuniões do conselho estudantil, que aponta diretamente para a formação de ABRAXAS — entidade resultante da combinação dos aspectos de todos os 7 planetas/arcontes/metais — como o resultado da união de todas as personalidades fragmentadas, formando assim um indivíduo biônico, completo, “eterno”, detentor de todos os paraísos, de todos os tempos e que revolucionará o mundo ao sair da “casca”:

A ave sai do ovo
O ovo é o mundo
Quem quiser nascer tem de destruir um mundo
A ave voa para deus
O deus se chama Abraxas

O ritual também pode ser encarado como um rito MARCIAL do conflito férreo das espadas, uma representação do masculino em sua condição temporal, cainita, um símbolo clássico do Anticristo, que aspira pela eternidade simbólica solar. Não é de se estranhar que Touga, representado pela cor vermelha, ou nesse caso Gules (o vermelho da heráldica) exerça um papel de sumo sacerdote do ritual, logo abaixo de Akio na hierarquia. O cainita é o herói do mundo moderno.

Aliás, tanto Touga quanto Saionji, o primeiro representante de Gules, e o segundo de Vert, ocupam respectivamente as posições cósmicas de Marte e Vênus, uma das expressões mais antigas de coniunctio (seco e húmido, assim como o masculino e o feminino em suas condições temporais e pagãs, como Ares e Afrodite).

Ambos representam também o leão vermelho e o leão verde do coniunctio medieval de que fala Jung em seu Mysterium Coniunctionis: juntos formam o leão que representa SATURNO (o arconte final que marca também o início da grande obra alquímica, contendo em si todas as potências materiais de Mercúrio, que é considerado seu “filho”), ou o leão do ANTICRISTO — o oposto do Leão de Judah. A heráldica é a arte do estudo dos símbolos hereditários, cujo sistema de cores é utilizado aqui como o esquema visual das personagens de maneira geral, especialmente os do conselho estudantil.

Em conjunto, Touga e Saionji funcionam também como emanações de Akio, ou SaturnoDionísio e até mesmo Lúcifer: o esposo infernal, o caído, o último arconte e o príncipe do mundo. Akio também se intitula Vênus, que é parte de ainda um outro coniunctio com Mercúrio, uma outra possibilidade de Mercurius Duplex. Seria como uma das facetas de Satanás: aquele que se utiliza da mulher como a ruína do homem, que molda sua substância para que satisfaça quaisquer ilusões.

É esse o caso no arco da Rosa Negra, no qual Mikage, um alquimista faustiano, é corrompido pelo demônio (Akio) e pelas ilusões de Anthy, que assume a forma de Mamiya, conduzindo-lhe a um futuro ilusório, um passado cíclico, um delírio. Mais uma vez o espírito faustiano é induzido a moldar e influenciar, mas se vê vítima da irresistível tentação satânica, cainita, da alquimia típica do espírito revolucionário, aquela que busca mudar o mundo à revelia da própria alma.

Há também uma brilhante exposição em Utena dessa busca pela síntese alquímica até mesmo dum ponto de vista estético, pela representação da dicotomia entre o Apolíneo e o Dionisíaco em toda a extravagância do anime. O primeiro aspecto é representado pela “ingenuidade” dos heróis.

Essa ingenuidade, em termos nietzscheanos, seria análoga à representação do herói homérico como alguém de comportamento dissociativo alienado: a despeito de sua conduta monstruosa na guerra, vê-se irradiada a glória dos heróis renomados. Vê-se a honra do cidadão livre, o orgulho de um avatar da virtude.

Em Utena, nossa primeira exposição ao elenco central é a visão de um grupo de belos e respeitáveis jovens, bem nascidos, bem educados e bem vestidos. Portam-se como membros da elite, destacando-se visualmente pela ornamentação típica da heráldica.

A despeito dessa aparente perfeição fisionômica, o entorno evoca um senso de extravagância que excede a simplicidade do apolíneo: as formas e o espírito curvilíneo do barroco não deixam enganar. Seja por meio da arquitetura, do desequilíbrio gerado pelas roupas masculinas da própria Tenjou, da homossexualidade histérica exalada pelo elenco ou pelas contorções visuais e elipses de roteiro, percebe-se que o desconforto e o frenesi de Dionísio são tão caros à narrativa quanto a unidade e a elegância das formas apolíneas.

Apesar de encarnarem o aspecto do herói apolíneo à primeira vista, os personagens não escapam à tensão dionisíaca da tragédia no interior de suas almas, externada precisamente pelo espelho estilhaçado das semelhanças. Os personagens, como dito anteriormente, funcionam como emanações psíquicas das meditações e projeções de si sobre os outros, reflexos dessa busca partilhada por um sentimento uno de religação. O resultado prático desse esforço é inversamente proporcional às intenções: em vez da unidade obtêm-se a ilusão. Por meio do desejo mimético obtêm-se um espelho, uma projeção, e em última análise, um desvio erótico da catarse e da exortação.

É como a fisionomia de Eva que Sinclair quer compor em Demian: uma tentativa de domínio da mãe fecunda, da natureza, do futuro, fundamentada sobre um entendimento equívoco do eterno. A ingenuidade Apolínea não suporta a derrocada Dionisíaca do tempo. A natureza cíclica e ininterrupta desse ouroboros só pode ser esclarecida à luz do logos: a natureza não consiste naquilo que é, mas naquilo que deve ser. A natureza deve ser transformada em Deus e para Deus.

Essa busca pelo controle da natureza é também representada pela Noiva da Rosa, papel temporal de Anthy no ritual. A rosa, como descreve Guénon, é um símbolo que representa a MANIFESTAÇÃO TELÚRICA do centro do mundo, ou seja, do ponto de encontro de todas as direções qualitativas do espaço e da simultaneidade do tempo.

Noiva da Rosa, Anthy, representa também a superfície das águas, o Rajas. Pense aqui na tríade hindu que representa a Prakriti, a substância da realidade: Sattva, princípio superior representado por DiosTamas, princípio inferior representado pelo caído, Akio, Rajas, a superfície intermediária da natureza, aquela sobre a qual a lótus se manifesta como axis mundi (análoga à rosa de Guénon).

Vemos ao fim do ritual que é justamente esse o papel de Anthy: o de natureza controlada pelo ferro, sacrificada às espadas. É uma crença baseada na ideia de que através do sacrifício contínuo da natureza e na sua submissão ao ferro, no casamento forçoso entre Ares e Afrodite, a eternidade pudesse ser obtida. É a mitologia do cainita em sua insurreição gnóstica contra Deus.

É clara a falsidade de uma alquimia que busca revolucionar o mundo. Eros é o representante do romantismo das formasdo amor pelo mediado, o já mencionado desejo mimético, assim como é também a rejeição dos sentimentos genuínos de amor que estes personagens devem nutrir uns pelos outros: o de amarem as mesmas coisas através da PhiliaIdem velle, et idem nolle.

Fica claro também que cada etapa do anime representa uma etapa do processo alquímico: Sattwa, Tamas e Rajas representam, respectivamente, o idealismo inicial do arco do Conselho Estudantil, a queda nas paixões ctônicas do arco da Rosa Negra e a síntese intramundana do arco do Fim do Mundo, no qual o mundo moderno é coagulado em sal, o produto final dos esforços cainitas.

Inicialmente o caminho até a arena de batalhas é representado pelas escadas espirais, um símbolo alquímico dos passos iniciáticos da Grande Obra, assim como também da tentativa de síntese entre o ser e o não-ser, sendo a espiral o símbolo da manutenção do ser em movimento.

No segundo arco, o da Rosa Negra, existe uma queda (catábase) nos recônditos da alma ilustrada pelo passado dos personagens, que dão vida a seus traumas através de ilusões psíquicas, em oposição ao idealismo do primeiro arco.

No terceiro arco, por fim, vemos a síntese do processo: o mundo moderno, feito de carros, elevadores e extravagâncias eróticas, serve então como palco de duelos majoritariamente feitos em pares, numa busca pela síntese entre o passado traumático e o futuro ideal na forma de um presente corrupto.

Nisso fica claro que o plano de Akio para a obtenção da Eternidade envolve a imanentização da simultaneidade dos tempos: passado, presente e futuro. A mesma estrutura pode ser vista também como as partes constituintes do centro do mundo: o eixo vertical superior, inferior e o eixo horizontal que formam a cruz, o eixo da realidade, o axis mundi segundo Guénon. Eis o plano de Akio: a formação de um centro do mundo artificial cujo objetivo é a manutenção da sempiternidade erótica.

Não é coincidência que a escola se pareça com um caixão: a crença numa alquimia corrompida que traz o amor erótico como um símbolo da eternidade é, na verdade, o amor de Eros e Thanatos, um amor ligado à morte e não ao eterno.

Outra evidência da estrutura ternária dos arcos é a importância do simbolismo musical na obra (outra qualidade marcial), especialmente no contexto do ciclo de duelos. Vemos em uma das letras, no 18º duelo, o último duelo de Juri, os seguintes versos:

Pessoas dispostas em um símbolo impenetrável
A arte histórica do Barroco
A Salamandra
O dragão e o ouriço
O milagre oculto da Eucaristia
Credo e virtude
Mantidos em confinamento,
O milagre da rosa
Flor-fera humana
Pérola e joia
A idade do homem
Diamante floral e cruz

Fica muito claro o sentido do amálgama de símbolos aqui dispostos se observarmos alguns versos com atenção: “um símbolo impenetrável” se liga diretamente à “arte histórica do Barroco”, a arte da síntese entre o Renascimento e o Maneirismo, que é também a arte das formas circulares e da ascese intramundana, ou seja, a encarnação artística do casamento alquímico. A Salamandra, que é proteiforme, metamórfica e adaptável, e a própria ideia do “Milagre Eucarístico oculto” são algumas das muitas maneiras de se falar a respeito das essências, a respeito da eternidade.

Um símbolo fundamental neste arco é o da Amêndoa, um símbolo da essência, também conhecido como Vesica Piscis, o ponto de encontro entre o dois, um coniunctio que em seu centro gera o uno. Este símbolo é também associado ao signo de Peixes, de grande importância para o arco da Juri, signo representado por Ruka, uma manifestação do amor masculino roubado por Shiori, drama que expressa psicologicamente o amor de Juri pelo eu ideal que foi corrompido pelas paixões. É o eco de mais um ataque furtivo da natureza e de um feminino corruptor. O cabelo de Shiori assim como o dos irmãos Ohtori é roxo, em mais uma conexão heráldica com Mercúrio, também conhecido como Purpure.

Juri é, assim como Utena, um símbolo de Atena, neste caso como uma virgem perfeita, uma guerreira justa e alguém até mesmo etimologicamente associada à Minerva. Sua cor é o laranja, que tem como correspondente heráldico mais provável a Tenné, um esmalte que é considerado como uma “mancha”, oriundo de uma heráldica majoritariamente pós-medieval. É um esmalte que está fora da representação dos 7 planetas, da representação das 7 luminárias celestes tradicional.

Esse esmalte introduz aqui o problema existencial de alguém que vive na metaxis, no meio do caminho, neutralizado em sua trajetória rumo a transcendência, preso em uma difícil tensão entre aspectos sexuais (venusianos) e solares. Sua esperança jaz no milagre representado pela Amêndoa que carrega em seu peito (o colar em que guarda suas fotos do passado), mas esse é um milagre corrupto, metastático, que deve ser quebrado pelo seu eu ideal, Ruka, que representa Peixes, signo que marca o fim do processo de formação da personalidade.

Só no abandono de sua fé metastática, barroca, da perfeição mediada que Juri pode reclamar o que busca: um verdadeiro milagre. Esse milagre consiste na reabertura para a influência do masculino, retornando à sua posição cósmica feminina. A ilustração suprema deste momento é a queda da espada de Dios do céu diretamente em sua rosa, um verdadeiro milagre da vontade divina, uma representação da superioridade hierárquica do enxofre metafísico sobre o mercúrio telúrico.

Sua relação com Miki representa um encontro qualitativo ideal: Miki, apesar de viver um dilema mercurial e geminiano com sua irmã Kozue (evocando o mito dos dióscuros), é representado fisicamente por Azure, que é, na Heráldica, a cor de Júpiter, a dignidade essencial tanto do signo de Peixes quanto de Sagitário, que são respectivamente associados também ao já mencionado Ruka (também trajado em Azure) e à própria Juri (do signo de Sagitário).

É nítido que, embora o coniunctio nefasto com Shiori deva ser superado, um novo coniunctio com Miki deve ser aceito, este representando por fim o resgate da dignidade essencial masculina que mais admira: o da sabedoria.

Deste mesmo arco pessoal se pode inferir mais um aspecto ternário consoante à estrutura do anime: O primeiro arco corresponde à Renascença (o retorno da veneração aos deuses antigos), o segundo ao Maneirismo (as contorções monstruosas, o trauma) e o terceiro, por fim, à síntese intramundana do Barroco.

Alquimicamente poderíamos tratar os três passos como o destino rumo à coagulação de um “mistério” secularizado, ou seja, o “mistério” do mundo moderno: Enxofre (idealismo masculino), Mercúrio (matéria-prima feminina) e Sal (coagulação).

É importante comentarmos, por fim, mais duas expressões de coniunctio dentro dessa cosmologia: Nanami, coberta por Or, parece vivificar o real aspecto nobre do “príncipe” presente em Touga, que encarna o aspecto de herói moderno/marcial, um potencial Anticristo, um cainita, uma outra emanação do demiurgo luciférico representado por Akio.

Saionji seria sua contraparte caída de aspecto Venusiano, representado aqui também pelo verde da amônia, uma outra expressão de mercúrio, este responsável pela dissolução. Não atoa ambos estão no começo e no fim do ciclo de duelos do primeiro e do terceiro arco, como motifs alquímicos.

Todos os aspectos lunares mais presentes do anime pertencem a Nanami: existe uma inversão simbólica proposital aqui, em que os aspectos qualitativos da Eternidade (que existe fora do mundo das ilusões, do véu de Maya) se manifestam de forma inversa no ciclo de duelos. O feminino deve ser salvo de suas aspirações masculinas, motivo pelo qual a parição de um ovo alquímico no episódio 27 do anime, episódio definidor do arco pessoal de Nanami, fracassa. É um momento catártico que representa o divórcio de um delírio lunar de emanar luz própria.

Seu coniunctio com Touga é o de aproximação das características solares e da legítima fraternidade, mas as características que ela deve perseguir para si são diametralmente opostas àquelas de seu signo solar, Leão (regido pelo Sol), ou seja, habitam o domicílio materno de Câncer (de dignidade lunar). O herói solar é a potência masculina que deve complementá-la. Tsuwabuki nesse contexto provavelmente representa a busca do Eros mundano pelo sol, em um processo de amadurecimento.

No arco final, o aparente caos psicodélico representa não só a natureza abissal do mundo moderno, como também a busca pelo moto-perpétuo como panaceia prometeica, como solução definitiva do sofrimento do homem moderno, algo que fica evidente no protagonismo do carro como símbolo, que representa o poder da ação temporal e marcial como realidade suprema. É a revolta dos kshatriyas.

Todo o ciclo de duelos ali gira em torno do controle do carro através da instrumentalização de seus mercúrios opostos (seus pares de duelo) em um ritual que induziria o iniciado à ascese sexual. É a desilusão que antecede o amadurecimento: a catarse perante a traição do mundo.

Esse é o sentido do encontro dos 5 personagens do conselho estudantil durante o duelo da Revolução: o número 5, o número do homem, do microcosmo, é o coniunctio final que Ikuhara propõe como formação da personalidade. É a junção dos cacos, dos fragmentos estilhaçados, não por meio de um ritual alquímico erótico, mas pela aceitação da realidade e do presente por meio da Philia, do abraço fraterno entre as produções do tempo e a Eternidade, parafraseando Blake.

Um último aspecto essencial que deve ser entendido, antes de concluirmos, é o simbolismo do castelo invertido. À primeira vista pode parecer que se trata de uma falsa anábase, uma ascese corrupta, o que até pode ser o caso em partes. Mas há um sentido ainda mais profundo aqui: consoante à descrição de Guénon a respeito da Árvore do Mundo, ilustrada pela árvore no topo da montanha do Purgatório de Dante, ou seja, uma árvore invertida cujas raízes estão no topo e os ramos embaixo, o mesmo pode ser dito a respeito do castelo invertido aqui.

Isto se deve ao fato do ciclo de duelos em Utena acontecer numa dimensão supra cósmica, mas não transcendente. Trata-se de um estágio intermediário tal como a natureza da “superfície das águas” do Rajas que já citamos anteriormente, que é também comparável à própria Anthy. Tudo que fica debaixo da Eternidade é visto em sentido contrário, às avessas, e cabe ao endireitamento da alma do homem a sua correção. É por isso que o Castelo é destruído no fim do anime: sua projeção supra cósmica já foi superada.

Ao fim do ritual, no triunfo da Grande Obra, fica muito claro o sentido esotérico da vontade de Dios: Utena deve transformar o amor erótico por meio do rompimento do ciclo incestuoso e pagão que sustenta as relações corrompidas entre Psique e Eros (nesse caso, como o filho de Ares e Afrodite, de Áries e Touro) e deve transformá-lo em PHILIA, ou seja, numa expressão genuinamente eterna do amor ao próximo e do bem querer. Nisto é também vencido o ciclo vicioso entre Eros e Thanatos, desligando a relação de Anthy com os ciclos temporais e restituindo-lhe à eternidade, não numa revolução do mundo, mas da natureza do individuo. Há, por fim, a consolidação de um milagre, não por meio de sublimação alquímica, mas pelo mistério do sacrifício, descrito nos infindáveis dilemas amorosos entre a eternidade e o tempo.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

O Mito Cosmogônico em Saint Seiya


O mito moderno pode ser descrito como um conflito de forças pela “realidade suprema”, no seguinte sentido: para cada forma absorvida e simbolizada pelo ethos moderno existe uma paixão, um gênero literário, uma forma narrativa subjacente que a orienta e contém em si aquilo que podemos chamar de seu verdadeiro propósito. 

Por trás do que aparenta ser uma heterotopia organizada pela harmonia artística, existe uma luta axiológica pela soberania. Isso pode ser visto nas tragicomédias shakespearanas como Midsummer Night’s Dream, peça na qual o bardo narra os conflitos alquímicos entre o céu e a terra à guisa do caos mitológico, reorganizando o tempo e o espaço das personagens mitológicas em conformidade com o caos qualitativo espaço/temporal que é consequência inelutável do avanço dos tempos. 

Pode-se intuir a mesma forma narrativa nas obras da cultura pop munidas de grande consciência poética e simbólica, como no Sandman de Neil Gaiman e no mito cosmogônico dos Cavaleiros do Zodíaco, no qual podemos desvelar, se observarmos atentamente, a continuidade dos esforços sintetizantes das narrativas cosmogônicas. Trata-se de um mito cosmogônico por ser, em essência, uma narrativa que descreve as metamorfoses cósmicas do mundo moderno: as armaduras simbolizam as formas da nova casta dos heróis, transformando o homem do ferro em guerreiro santo através de uma alquimia microcósmica, e a nova disposição dos velhos deuses simboliza a pulsão abissal macrocósmica como o grande monstro a ser vencido no mundo moderno.

Consoante à ideologia alquímica está o ferreiro, o garimpeiro e todo devoto do minério e da forja desde o início dos tempos. Sua primeira intuição do sagrado que habita os metais deu-se ao ver as estrelas caírem do céu e trazerem sua graça para perto. Com muita reverência perante o milagre que viam, extraíam daquilo que chamamos de meteoritos a matéria-prima necessária para a forja de ferramentas primordialmente simbólicas, como as pedras de raio, que simbolizavam a hierofania ali testemunhada, dando-lhe a forma de um machado de duas lâminas que representava o trovão e a fecundação do deus do céu sobre a mãe terra. 

Eventualmente o ferro adquiriu um papel central nas bases civilizacionais, o que acabou por afastá-lo de suas qualidades sagradas em prol daquilo que é meramente instrumental e profano, mas os vestígios da eternidade não podem ser apagados: subsistem nas histórias, nos símbolos e no mito. 

Na narrativa de Saint Seiya, é precisamente na brilhante combinação entre o sagrado e profano que nascem as armaduras dos cavaleiros, descritas no Hipermito de Kurumada como o casamento alquímico entre o oricalco, metal que é descrito no Timeu de Platão como oriundo da civilização perdida de Atlantis, e o gamânio, metal ficcional de origem estelar, como são as próprias pedras de raio. As armaduras só podem ser reconstruídas com pó de estrelas ou com o sangue de cavaleiros e deuses, dois símbolos macrocósmicos, o segundo referente à imolação de um deus ou de um santo.

Os cavaleiros são quase-santos, ou indivíduos em busca da santidade, como descrito no título original da obra. A armadura simboliza um destino, a vestimenta macrocósmica que orienta o homem em seu microcosmo. 

É como a descrição paulina da fé como uma armadura, uma vestimenta contra as tentações e as vicissitudes ocasionadas pelo mal, assim como é também a armadura de natureza simbólica semelhante àquela do escudo de Aquiles forjado por Hefesto, o ferreiro alquimista, como descrito no canto 18 da Ilíada, que simbolizava o papel de subserviência ao macrocosmo e ao destino da civilização que Aquiles passaria a representar daquele ponto em diante: todo o macrocosmo do mundo grego estava contido no escudo, como um símbolo do vir-a-ser da vontade dos deuses.

O mesmo pode ser dito das armaduras dos cavaleiros, que carregam em si a simbolização das qualidades a serem aperfeiçoadas em suas trajetórias em busca da santidade. À medida que um cavaleiro aumenta seu cosmo, sua armadura é graduada na hierarquia dos metais: do bronze à prata, da prata ao ouro, do ouro ao metal glorioso das armaduras divinas. 

Mas o mais importante aqui não é propriamente a hierarquia dos metais enquanto matéria, e sim as qualidades que Kurumada centraliza em seu mito através dos cavaleiros de bronze que são escolhidos como os principais protetores de Atena: se prestarmos atenção às constelações que regem esses personagens, perceberemos que todas se tratam de coniunctios, de casamentos alquímicos das qualidades que aspiram ao céu e às estrelas.
O Pégaso simboliza o corpo renascido após a morte do dragão alquímico representado pela Medusa, assim como também a união das qualidades da água e do ar, daquilo que é úmido, cálido e elevado, pois o Pégaso é o gerador mitológico da fonte que inspira as Musas em Hipocrene, além de ser um animal alado: simboliza assim as águas superiores das nuvens que se opõem às águas do abismo, como descreve Guénon. 

O mesmo pode ser dito das constelações de Cisne, Dragão e Fênix, todas criaturas contabilizadas no Le Bestiaire du Christ como animais que simbolizam a Cristo (qualidade solar suprema) de várias maneiras. O estudo aprofundado dessas qualidades valeria por si só um ensaio gigantesco, mas basta dizer, para nossos propósitos, que seja o virtus draconis de Shiryu, a prefiguração do Espírito Santo do Cisne de Hyoga, ou a imortalidade solar do corpo glorioso ressuscitado da Fênix de Ikki, temos aqui dispostas várias representações mais do que claras, somadas a do Pégaso, do processo alquímico que descreve a busca pela santidade: passada a fase do Nigredo, o despedaçamento do corpo material, atinge-se o Albedo, ou seja, a purificação, uma apta descrição da jornada da santidade. O mesmo cabe para a constelação de Andrômeda e seu cavaleiro, embora em outra perspectiva mitológica: seu destino é o da devoção incondicional ao sol (Perseu, Fênix e Atena) perante o confronto com o abismo (Ceto).

Além do simbolismo microcósmico das armaduras como uma intuição simbólica dos esforços cosmogônicos de verter a natureza férrea do homem moderno, existe uma aparente tensão macrocósmica na obra que deve ser esclarecida como mais um esforço simbólico da ordem: essa “tensão” se dá na pluralidade simbólica do mito grego junto a uma cosmovisão cristã. 

O que se afigura como tensão nada mais é do que a instrumentalização do mythos grego como um símbolo do logos. O cristianismo se utiliza tanto da filosofia grega quanto do direito romano como ferramentas essenciais em suas bases civilizacionais, nomeando a sabedoria que antecede a revelação como logos spermatikos: é no encontro dessas formas que surge aquilo que se convencionou chamar de civilização ocidental, alicerçada materialmente na arte da construção maçônica e no domínio extremo da técnica dos homens de ferro. 

O mesmo encontro de formas civilizacionais pode ser visto aqui. A poética do Kurumada é orientada por aquilo que chama no Hipermito de “Big Will”. É o que dá forma aos deuses, aos titãs, ao mundo e aos homens. O Big Will, se desvelado mais atentamente, nada mais é do que a força das metamorfoses que atualiza as formas e os símbolos numa constante busca pela representação mais aperfeiçoada da ordem, numa demonstração poética daquilo que Voegelin chama de “salto no ser”: a busca pela enteléquia, a atualização máxima das potências. 

No caso do espírito grego, os conceitos míticos se atualizam, através de uma sucessão de esforços holísticos, na figura de Palas Atena como o símbolo máximo da inteligência. Trata-se do nous divino, do intelecto de Zeus parido pela fenda feita por Hefesto o ferreiro alquimista na cabeça de seu pai, em sua forma transmutada e definitiva, guardada pela égide sagrada e coberta pelo revestimento glorioso. Atena é o centro da pólis, da organização social e símbolo mítico da inteligência e da justiça.

A defesa de Palas Atena no isolamento do Santuário representa a centralização do mundo em torno do corpo místico da verdade. O cumprimento do destino estelar simboliza a reorientação do olhar dos homens de ferro em direção ao céu. O sacrifício de sangue de um cavaleiro para ressuscitar uma armadura representa a purificação do profano e a evolução dos metais. A explosão do cosmo representa o espelhamento da ordem celeste no corpo do homem. Os sacrifícios de Atena representam a devoção ao logos. O mito cosmogônico narra o mundo das vicissitudes da santidade. O retorno dos velhos deuses descreve o mundo moderno como o abismo das paixões. O triunfo sobre essas forças por meio do sacrifício pessoal representa o único retorno que nos cabe: o retorno à verdade, ao sagrado, à limpidez de um olhar tão puro e a um corpo tão leve que nos guie às estrelas.

terça-feira, 9 de abril de 2024

Heróis solares

 


O sol é o soberano da ordem cósmica, símbolo máximo do masculino, espírito moldador e definidor de todas as coisas. Representado por um círculo e um ponto central ☉, contém em si mesmo a intuição do movimento divino: princípio e manifestação, alpha e ômega, o centro da criação e a emanação e expansão do mesmo princípio no mundo. Pode-se entender tudo que há para se entender no fiat lux, o ato divino que contém em si próprio o verbo em princípio in principio erat Verbum e em manifestação. 

O sol é o símbolo máximo da luz. Todas as metamorfoses buscam o sol, nutrido no seio materno e parido no útero telúrico na forma do ouro. O ciclo de transformação dos metais da alquimia narra o processo de ascensão da matéria ao seu corpo glorioso, mortificado, despedaçado e reconstruído, processo esse descrito pela transformação sucessiva dos metais, da escuridão insidiosa do chumbo ao brilho régio e ígneo do ouro. 

É a insígnia inequívoca de nossa mácula: o chumbo contém em si todas as potências daquilo que virá a se tornar ouro qualquer minério, essencialmente que opta, por vezes, pela coagulação em estágios intermediários que possibilitem a realização de certas vontades. A busca pela atualização completa do potencial do homem é a jornada, como diria Confúcio, do aperfeiçoamento das vontades. Só então seria permitido ao homem o cumprimento de seus papéis solares, como cabeça da família e do estado, em pleno exercício de suas capacidades por desígnio divino. Essa vontade aperfeiçoada é aquela que, nas palavras de Silesius, é a transformação do homem por meio de Deus e em Deus.

Valendo-se da distinção entre o microcosmo e o macrocosmo, entre as coisas da terra e as coisas do céu, é possível melhor identificar as características principais que orientam heróis solares nas mais diversas castas, vocações e cenários narrativos, levando em conta primordialmente a função exercida pelo herói no contrafactual. É inegável que o personagem do Padre Brown, dos contos investigativos de G. K. Chesterton, exerce uma função devastadoramente solar em seu papel de guiar a razão até as estrelas. 

Munido dos princípios da ortodoxia e de uma razão barbárica, exerce influência majoritária sobre a forma das histórias e de seus personagens, não apenas enquanto sacerdote (embora o faça, com a empunhadura dos sacramentos em muitos contos), mas enquanto investigador, teólogo, crítico de arte e interlocutor racional. Um de seus papéis notáveis é, por exemplo, a influência que exerce sobre a figura mercurial, lunar-to-become encarnada por Flambeau, o engenhoso ladrão francês que atua como uma verdadeira lenda na arte da trapaça. 

O antídoto ministrado por Brown sobre o gatuno não consiste exatamente no exercício dos sacramentos  muito embora o faça em determinada ocasião, marcada pelo furto de Flambeau a uma série de talheres de prata, recebendo então a confissão do homem mas no desvelamento da natureza profunda de suas atividades criminosas, que no fundo são muito pouco guiadas por uma má índole, e sim por um espírito decadentista de flâneur que toma a experiência erótica da arte como uma aproximação telúrica do transcendente. 

Ao mostrar-lhe uma saída por meio do eterno prazer da razão, Brown não apenas atua enquanto evangelizador, mas como um crítico racional que desvela o sentido por trás da aparente ininteligibilidade do mundo moderno em seu terror cotidiano, o que simultaneamente encerra seus dias enquanto gatuno e marca o início de sua jornada de redenção pessoal. O Padre Brown é um inequívoco exemplo da força solar da razão enquanto definidora e transformadora das formas e dos homens, “But don't fancy that all that frantic astronomy would ' make the smallest difference to the reason and justice of conduct. On plains of opal, under cliffs cut out of pearl, you would still find a notice-board, ‘Thou shalt not steal.' “

Em contraste gritante com o papel macrocósmico da razão solar de Brown a despeito de sua raquítica estatura temos uma miríade de heróis que exercem papel solar de maneira radicalmente oposta, até mesmo profana: Agamemnon e Aquiles, ambos heróis solares, são figuras centrais de um povo que representa a solaridade como um todo na disputa por Helena na Ilíada, sendo a esposa de Menelau um símbolo da beleza inteligível, daquilo que afirmaria a superioridade da razão, representada pelos aqueus, o povo solar, sobre a pura materialidade, representada pelos telúricos troianos. 

Mas a guerra de tróia representa esse conflito do enxofre alquímico sobre o mercúrio em cores trágicas, através do pathos da húbris desses heróis solares. Tanto Agamemnon quanto Aquiles expressam diferentes aspectos da solaridade, o primeiro expressando a soberania daquele que detém o poder temporal e o segundo, a força. Ao ultrapassar o métron, a medida de cada um, Agamemnon exerce a função de tirano que leva a razão ao vale da morte, desrespeitando seu mais forte guerreiro e assegurando que as funções solares, uma vez profanadas por trazerem à tona o aspecto mais nefasto do orgulho, pecado capital solar por excelência, entrassem em pleno declínio marcial e férreo, não apenas por se tratar de um contexto de guerra, mas pelo que a guerra de Tróia como um todo representa: o fim de um ciclo cósmico de 10 anos, que antecipa o que viria a ser o fim da era dos heróis e os prelúdios da Idade do Ferro. A tragédia da autoafirmação solar no mundo material é anátema à perfeição da alma imortal, algo que fica claro pelo destino desses heróis.

Nos épicos modernos o herói solar costuma aparecer mais frequentemente como a panacéia que resolva os conflitos e máculas daquele mundo, ou seja, como a enteléquia daquelas potências. É o caso de heróis como Luffy, que se tornou um deus solar ao absorver os “metais” do trajeto, assumindo então as cores do ouro na cosmologia chinesa e manifestando as qualidades expansivas e moldadoras daquilo que é solar. Naruto divide sua graça com todos e cumpre seu destino como sintetizador daquela dialética hegeliana, manifestando sua qualidade solar-messiânica exotericamente. 

Edward Elric, um herói sulfúrico e solar, carrega os germes de todo o povo ariano e soluciona os problemas da corrupção da alquimia no estado moderno ao transmutar a própria alma, simbolicamente representada por seu irmão, o mercúrio anímico que é a contraparte de sua individuação, forçando o ímpeto solar à mortificação do corpo para o aprimoramento das potências, ato ritualizado e concluído no sacrifício pessoal. Os saiyajins de Akira Toriyama, na mesma clave, evoluem de primatas telúricos-lunares para heróis dourados-solares. A solução oculta daquele universo seria a superação da húbris na ética dos saiyajins durante a Saga Cell, húbris essa que culmina na quase-tragédia da raça humana, tanto por parte de Goku quanto de Vegeta, que devem ser superados pela próxima geração de verdadeiros heróis, muito semelhante à obsolescência de Agamemnon em favor de Orestes na trilogia de Ésquilo.

Para concluir essa breve reflexão a respeito do sol e de suas qualidades, devemos contemplar a expressão máxima da solaridade e do fim de todas as estradas, que é o Deus vivo que é também a encarnação do logos na história: Iesus Christus, já que sua paixão é a mais perfeita representação da chegada ao corpo glorioso, e seu sacrifício é o único que faz jorrar, através de seu sangue, o elixir da vida eterna. A imolação de um deus é o sentimento primordial daquilo que é o garantidor da renovação de ciclos e do desabrochar de uma nova vida, e nenhum outro símbolo rivaliza a síntese de toda a busca alquímica e do ciclo de metamorfoses: faz-se presente nas rosas, no cálice do santo graal, na lança de longinus e em incontáveis simbolismos do centro do mundo, sendo o mais quintessencial de todos o eixo da realidade simbolizado pela cruz. 

Cristo é o centro da eclíptica, o trajeto anual do sol: dele são emanados todos os arquétipo divinos, ou seja, todo o zodíaco, que é a simbolização numérica das qualidades eternas, da combinação multiplicada entre o 4 e o 3, entre a terra e o céu, entre o microcosmo e o macrocosmo, quantitativamente manifestada no número de qualidades planetárias da ordem caldaica: 7. O símbolo do sol se afigura, portanto, em todas as narrativas, nos épicos alquímicos e nas tragédias dissolutivas, como a representação da enteléquia, da atualização ou da queda das potências de um cosmos, a extensão visível e inteligível daquilo que é o começo e o fim, o meridiano da vida e da morte e de tudo que diz respeito ao nosso fim último enquanto espécie.

A Arte da Erudição e o Eterno Rembrandt

Todo processo de erudição é arte; é metamorfose; é instrução; é desembrutecer. À revelia dos incentivos saturninos para que nos tornemos dur...