domingo, 23 de junho de 2024

Tengoku to Jigoku e a moralidade japonesa

Os japoneses são estranhos. Trata-se de um povo disciplinado, colegial, artístico, folclórico, ardiloso, coletivista, burocrático, plutocrático, racialista e homogêneo. Jorge Luis Borges chamou-os de povo das letras, que substituiu a espada pelo pincel em sua gênese mítica, preocupando-se sempre mais com os festivais das estações do que com o mandato do céu, incapazes, segundo o bruxo, de intuir o certo e o errado. Para toda civilização cosmológica só existe uma ordem: a dos astros. No caso dos japoneses, toda incorporação histórica de religiões se dá num processo cumulativo de ferramentas de ordem social e de símbolos. A paixão do japonês pelas artes é visível em sua devoção ao auto cultivo de Confúcio: o aprendizado do japonês se dá por meio de um dō, da realização de um caminho unitário de transformação e de integração ao dao, ainda que a influência do mesmo no Japão seja por meio dos ensinamentos do zen, o que não cria problema algum em matéria de cosmologia do leste asiático: quase tudo vem do dao. 

Nesse processo de absorção de caminhos artísticos, contempla-se uma sociedade que pode chegar a fabricar suas próprias religiões individuais, como sugere Chris Marker em Sans Soleil (título que alude ao afastamento da sociedade japonesa do eixo solar da razão) por viverem numa experiência maximamente poética. Surge assim uma moralidade que preza muito mais pela harmonia do tecido social (a permanência na pólis), ou seja, a participação da experiência coletiva do cosmo por meio da arte do estado, do que pelo comando divino que conclama por justiça através da cisão axial entre o certo e o errado, entre o bem e o mal, entre o preto e o branco, a cisão da espada da verdade que separa pais e filhos. É nessa tensão que Akira Kurosawa trabalha em Tengoku to Jigoku (1963): no conflito axial entre o homem bom e o homem mau que divide a sociedade japonesa ao meio, revelando-lhe enfim suas qualidades celestiais e infernais.

Kingo Gondo (Toshiro Mifune) é um plutocrata que trabalhou duro para chegar às alturas. Generoso pai e rígido empresário, Gondo planeja manter-se de pé nos negócios através de uma filosofia pessoal de como se deve fazer sapatos, visando a qualidade do firmamento. Tratando-se de um empresário de escala nacional, Gondo representa um novo tipo de elite emergente no Japão pós-guerra, que é o Japão do aprendizado eficiente das mais diversas técnicas de negócios, o Japão que forma a nova elite dos bons estudantes. Sua origem humilde ilustra por si só o problema na concepção de uma sociedade idealizada em castas numa concepção cosmológica e topológica: seu filho e o filho de seu empregado brincam juntos e trocam de roupas durante a brincadeira, por se tratarem essencialmente de uma mesma gente. Gondo é um sapateiro e acredita em sua filosofia: lembra-nos do simbolismo que Paul Diel alude ao coxo nos mitos gregos (Édipo, Héfesto) como aquele que tem a alma em desequilíbrio e que precisa de firmamento. Gondo acredita no firmamento da alma como motto, em espírito legitimamente samurai.

O que faz com que Gondo atinja a graça é a aceitação do sacrifício pessoal, a contemplação da moral como um assunto de vida ou morte e a aceitação do absurdo como um assalto completo aos costumes da sociedade japonesa. Takeuchi Ginjiro, um dos criminosos mais repulsivos já retratados em telas, é o perpetrador deste absurdo: ao cometer o erro de sequestrar o filho do motorista de Gondo e não o pequeno herdeiro, um criminoso comum tomaria uma medida drástica ou simplesmente abandonaria a criança e fugiria. Mas Takeuchi não estava interessado na obtenção de recursos materiais tanto quanto por vingança (mas vingança de quem?) e procede com a exigência de um resgate, ciente de que aquilo lhe daria até mesmo uma vantagem: no Japão, o crime de extorsão só caberia em caso de sequestro de um parente (o que implicaria responsabilidade direta da parte extorquida). Naquele caso, tratava-se de um "mero" caso de sequestro que levantava um dilema moral a Gondo: permitir que o filho do motorista fosse morto e manter seu império (afinal, aquele dinheiro era crucial em suas transações) ou abdicar de tudo e salvar uma vida? 

Takeuchi, assim como Gondo, representa um individuo de mentalidade extraordinária — só que às avessas. Encarna o espírito demoníaco do revolucionário, que vê em Gondo simplesmente a materialização da imagem de um membro da elite por uma mera contingência topológica. Takeuchi vive embaixo e Gondo vive em cima. Takeuchi é um futuro médico e Gondo é um comerciante. Takeuchi não sabe bem o motivo de odiar Gondo para além de vê-lo lá de seu casebre miserável. Takeuchi representa o esvaziamento do individuo na cegueira da mente. Uma das técnicas mais importantes empregadas por Kurosawa no filme é a da obstrução consciente de certas locações, ou da visão nublada de certas fisionomias. Takeuchi é o individuo privilegiado com uma vista telescópica do mundo naquele momento, ao passo que Gondo é forçado a se empanar de cortinas que obscurecem seu apartamento, tendo que dar um salto absurdista de fé nos indivíduos e na moral. Takeuchi, tão controlador e meticuloso em seus planos, representa a dessensibilização da mentalidade revolucionária e burocrática que enlouquece o povo japonês: seu desdém pelos indíviduos por trás das cadeias causais (trabalhadores civis, viciados, a força policial e a mídia) impede-o de enxergar os furos em seu próprio plano, vendo-se preso dentro do próprio labirinto materialista. Os demais personagens, por outro lado, são forçados a adotar diferentes pontos de vista topológicos para resolução do caso, transitando por toda a cidade em busca de novas informações que possam compor a fisionomia de Takeuchi, fisionomia essa que atua como um símbolo do aspecto mais nefasto (e infernal) da sociedade japonesa: a despersonalização no múltiplo que destrói o individuo.

A cada passo dado na investigação, a força-tarefa se vê mais próxima do entendimento da experiência do inferno japonês. A sociedade aparentemente harmônica e homogênea da superfície se vê diluída na miscigenação racial dos distritos boêmios que antecedem o bueiro de vícios que Takeuchi busca nas profundezas. Disfarçados na multidão, os policiais à paisana representam a manutenção da essência das vocações. Vestido de médico e perpetrando a morte, Takeuchi representa a corrupção do ofício, matando "sem sujar as mãos" através de drogas mais perfeitas (um omen da perfeição inadvertida da mentalidade burocrática japonesa, como um assassinato perfeito). Distinto numa multidão de imensa variedade étnica, somos capazes de enxergar Takeuchi em plena individualidade: lembra uma espécie de Alain Delon dos infernos. Com seus contornos cada vez mais aclarados, vemos o que a experiência de desintegração pessoal inevitavelmente cria: o distrito dos viciados mais lembra uma galeria de possessos, assim como o próprio Takeuchi o faz nos momentos finais do filme. 

A técnica em preto e branco aplicada por Kurosawa é deliberada: a inserção da axialidade na moral japonesa deve ser dissolutiva, a fim de preservar somente as essências após o longo nigredo — o rosa da fumaça feminina das fábricas surge como uma ode às flores de cerejeira, as flores do espírito guerreiro perante a morte. O preto e branco revela os aspectos celestiais e infernais da sociedade japonesa: a moral é capaz de extrair o melhor da polícia, da mídia, de trabalhadores miseráveis e até de crianças. O sacrifício de Gondo, da fortuita altura de sua posição social, é essencial para a formação de um exemplo civil condizente com a postura que deve ser tomada pela nova elite. A exposição da monstruosidade da complexa e disforme trama montada por Takeuchi é essencial para a meditação da sociedade japonesa sobre si própria, uma meditação que ultrapasse os ciclos cosmológicos e a experiência poética cotidiana

Talvez o omen mais importante do filme, por fim, seja justamente o momento em que vemos a casa de Gondo e de sua família à venda. O relógio, símbolo que representa a distinta experiência do tempo dos japoneses, ou seja, a da impermanência, do Mono no Aware, da experiência de vigor da honra que enfrenta a morte de peito aberto, está muito bem catalogado e precificado pelos corretores. A experiência de impermanência que a axialidade da moral cria é diferente: causa um desconforto flagrante em todos os presentes, seja nas feições atribuladas de Toshiro Mifune ou nas demais personagens. É a experiência da morte em vida, do sacrifício dos próprios bens, do conforto e da segurança dos parentes e de todo o trabalho feito até ali. É uma cena sutil, talvez facilmente eclipsável no contexto de um filme dessa estatura, mas é justamente no enterro daquele passado, no enterro dos velhos símbolos de uma sociedade parida e nutrida no seio da deusa Amataresu, que contemplamos a dimensão devastadora e os incontáveis sacrifícios de um único ato moral perpetrado num mundo de trevas. 

A tecnognose e o triunfo da natureza sobre o homem

Out, out, brief candle! Life’s but a walking shadow, a poor player That struts and frets his hour upon the stage, And then is heard no more;...