sábado, 9 de agosto de 2025

O Espírito Saturnino do Romantismo




É provável que algum homem maior e melhor — penso em Girard ou Eliade — já tenha articulado o que descreverei nas próximas linhas, mas estando no fim ou no começo, na parição ou na propagação de um pensamento verdadeiro, ergo com igual desassombro a bandeira dos patriotas da razão e da clareza no combate ao virulento espírito da grosseria, do obscurecimento, da infidelidade e da intoxicação. 

Fato é que fui acometido, num contexto de convalescença, por um súbito esclarecimento quanto à natureza de um certo problema humano, de feições humanas, cuja paternidade finalmente pude contemplar, na figura de um pai celeste. Refiro-me aqui ao problema do Romantismo, descendente por sua vez da linhagem de Saturno, o grande maléfico. 

A razão para isto é muito simples — escandalosamente simples. Se prestarmos muita atenção, perceberemos que o romantismo é muito mais frequentemente observado em pessoas frias. Frias e secas, pra ser mais específico. Parte da psicologia romântica envolve uma relação, intermediada em seu seio, do eu em relação ao absoluto, ao indeterminado, este caracterizado por definições fugidias e supremamente abstratas por natureza. Mas esse enamoramento vem de um perfil psicológico que pouco ou nada sabe sobre o amor, e por isso o caracteriza como algo de proporções titânicas, devastadoras, como as da tempestade. Faz até lembrar do José Augusto adaptado por Manoel de Oliveira em Francisca, romântico de caráter violento e saturnino, o segundo traço sendo expresso pela obsessão fúnebre e por sua afeição a experiências intensas. 

José Augusto, assim como todo herói byrônico, é homem de imensa frieza. Certa feita, alguém descreveu o olhar de Byron como o de alguém que projetava chamas negras nas pupilas. A lasciva melancolia de seus olhos vive em desacordo, em desatino, em ânimo de jihad espiritual e de insurreição contra a tendência saturnina de seu destino. Todo romantismo se alimenta de rebeldia, e foi Saturno um dos grandes e primeiros rebeldes. 

É importante pensarmos um pouco na psicologia do romântico, contudo. Essa perturbação em relação à intensidade da experiência aponta para a lacuna oposta: por incapacidade de comoção, busca a experiência mais comovente. Dono de um coração gelado, busca guarida no calor mais ardente. Ama de forma bruta e insensível por não ver escolha além do terremoto como possibilidade de cura e de contato com o discernível. 

Todo romantismo nasce nas profundezas do abismo da alma, no escuro desgoverno de Saturno. Todo romantismo é uma alienação da vida real, uma troca da experiência do imediato pelo delírio do abstrato. Mas a fúnebre presença de Saturno na vida dos homens, conquanto justificada pela influência dos astros nos nascimentos individuais, revela algo mais importante. Se em Júpiter vemos a expansão e a prosperidade na narrativa histórica, é com Saturno que testemunhamos uma dupla possibilidade: ou tratamos nele das grandes crises ou das grandes erupções românticas. Não estaria dada, já em seu cerne simbólico, a natureza mesma do romantismo, ao analisarmos a relação de Cronos com a memória da Era de Ouro nos mitos gregos? 

Embora fosse o deus central deste recorte mítico, dessa era da abundância na qual o tempo experienciava os prazeres da sempiternidade, fora também o responsável pelo assassínio dos próprios filhos, com o fim de manter a imperturbabilidade circular de seu poder. Traduzido em termos psicológicos, vê-se aí a psicologia contraditória do romântico: não tendo qualquer apreço verdadeiro pela realidade concreta, evitando-lhe as vicissitudes e sobrevalorizando uma experiência abstrata e imaginativa do amor, de Deus, da honra e da felicidade, busca o romântico sua fantasia régia, vivida apenas na contradição, no endurecimento do coração e na experiência vertiginosa de retorno a Saturno. 

Pois serão infelizes os que buscam a felicidade; serão instáveis os que buscam a estabilidade. Deve o coração do homem se encher de emoção todos os dias, pois serão massacrados pela carruagem da civilização – parafraseando Balzac – caso contrário. E é na carruagem da civilização que vemos Saturno: de forma terrível pilota o carro, brandindo a longilínea foice em um desordenado e aterrador massacre diário.

Saturno deve ser entendido como o regente da realidade concreta, da moléstia laboriosa do cotidiano. Quando os homens recusam a humilhação imposta pelo arconte da foice, tentam endurecer o próprio coração para que não sejam mais manipulados pelo destino: querem controlá-lo, tornando-se eles mesmos paródias do grande maléfico. Tornam-se homens frios e cruéis, ligados de forma cega e insípida às determinações do indeterminado. Saturno não deve ser venerado, mas superado, e isto se dá somente por meio da submissão total à realidade em Deus.

No esforço de se tornarem invioláveis, tornam-se rijos e venenosos como o chumbo. Pela rejeição quase sempre integral às convenções e ao avanço da civilização, tornam-se quebradiços, inadaptáveis. Pela tentativa de imposição tirânica da própria verdade subjetiva, tornam-se escravos da circularidade, pois o que querem obter como fim último de seus esforços não pode ser alcançado pelos que estão presos nos portões negros. A experiência sublime do amor é inacessível à eterna abstração inalcançável do romântico, assim como à cegueira solipsista e assassina de Cronos, que pensa ver em seu objeto de desejo seu próprio reflexo, ignorando a deformação da própria fronte no espelho. Compartilham, o romantismo e saturno, da cegueira e da auto opacidade dos que não entendem a própria condição, dos que não meditaram verdadeiramente nas palavras cravadas às portas do Oráculo de Delfos: conhece-te a ti mesmo.

O Espírito Saturnino do Romantismo

É provável que algum homem maior e melhor — penso em Girard ou Eliade — já tenha articulado o que descreverei nas próximas linhas, mas estan...