sábado, 11 de outubro de 2025

Por que Hipnos tem asas na cabeça?

                

Parece que o estado de vigília nos induz à memória. Mas por quê?

Ciro dos Anjos sugere que há uma batalha sendo travada nos espaços contíguos de nossa alma neste momento. De um lado, a sedução por uma entrega plena ao sono, que parece ser análoga ao nosso desejo íntimo pela morte. Não o desejo por um suicídio, ou mesmo pela destruição, mas um anseio de eternidade. Do outro, há uma contumaz recusa da nossa parte em nos entregarmos: é a resistência da vida, de nosso enxofre interior, mas que também pode ser tomada por uma recusa em tomar parte na vigília e em nossa parcela de entrega na arte da contemplação, recusa bruta e inconsequente muitas vezes, além de insensível.

Os lados deste eterno conflito podem estar certos ou errados dependendo da sabedoria do dia. Vale ressaltar, contudo, aquilo que há de mais digno na imagem da vigília, da obnubilação, que é a nobilíssima reconstituição desinteressada e perfeitamente harmônica daquilo que compõe nossas lembranças, antecipação da imagem final de nossa eternidade.

As memórias em que transitamos neste sereno estado são ornamentadas pela mais elevada arte: nelas temos acesso ao nosso mythos pessoal, com inserções muito mitigadas de nossas intenções superficiais. Se entregues o bastante àquilo que enxergamos como nossos propósitos, como nosso fim último, somos agraciados com o testemunho da mais perfeita harmonia, na qual tomamos parte somente enquanto dançarinos e músicos que respeitam o tempo. Nosso testemunho lembra um quadro de Watteau, na qual estão contidas todas nossas particularidades, mas em obediência, em vigília, em reservada e luminosa contemplação.

E é neste acesso magicamente eterno de nossas lembranças, que revela o brilho celeste e numinoso que docilmente se irradia dos fantasmas de nossas almas que podemos entender um pouco do que há por trás do misterioso busto de Hipnos, deus pagão do sono, irmão gêmeos de Thanatos, deus da morte, ambos filhos da noite: é, sobretudo, símbolo de uma possibilidade que nos foi concedida: a de um vislumbre.

Somos agraciados um vislumbre no ato da vigília, na sagrada experiência temporal do sono: trata-se de um vislumbre das alturas, representado pelas asas em sua cabeça, que visam tão somente a suspensão de nossos pensamentos para que a eternidade biográfica que habita em nós se imponha com o peso de uma pena.



sábado, 4 de outubro de 2025

Simone Weil explica a dor e o drama romântico de Heinrich von Kleist


As consequências últimas de uma tese. 

Ler Simone Weil pode provocar dores de cabeça, febre, torpor, assombro, desassombro e leveza. Num único parágrafo do ensaio Vide et Compensation, descreve a autora com o gracejo, a simplicidade e a depurada malícia dos infantes — quase que en passant — aquilo que há de mais profundo no drama do Michael Kohlhaas de Heinrich von Kleist, drama que por sua vez exorta, de maneira cirúrgica, o drama universal do homem que perde seus cavalos. Tal explicação é derivada de sua profunda meditação a respeito da dor:

"Dores de cabeça. Em certo momento: a dor diminui se for projetada no universo, mas com isso o universo se altera; a dor fica mais viva quando volta para o seu lugar, mas algo em mim não sofre e permanece em contato com um universo que não foi alterado. Agir da mesma forma com as paixões. Fazê-las descer, concentrá-las em um ponto e desinteressar-se delas. Tratar assim, especialmente, todas as dores. Impedir que elas se aproximem das coisas. A busca do equilíbrio é má porque é imaginária. A vingança. Mesmo se nós realmente matarmos ou torturarmos os nossos inimigos, de certo modo, isso é imaginário."

Em primeiro lugar, devemos esclarecer o problema trazido pela autora. Em seguida, uma vez entendida sua morfologia, veremos sua aplicabilidade no contexto das formas culturais. Por fim, explicaremos o drama de Kleist em toda sua aplicabilidade universal.

Quando Simone diz que a «dor diminui se for projetada no universo, mas com isso o universo se altera», se vê repetida no Livro do Desassossego quando diz Bernardo Soares que «doem-me a cabeça e o universo». Esta ideia parte da universalização da dor, para que nos vejamos livres do particular: se partidários de uma dor universal, seremos então capazes de abstrair nossa responsabilidade, bem como de nossa vergonha. Enquanto partidários de uma dor universal, estamos justificados, e a justificação nos acomoda. Relativizaríamos a falta de uma perna se fôssemos todos pernetas. Por outro lado, se a dor é sua e só sua, ela é um problema seu. Mas a universalização do problema está prevista em sua dialética. Lança o homem seu problema ao mundo, e o problema do homem se torna o problema do mundo, e isto é natural: se os efeitos disso serão imaginários ou concretos, depende da força do homem em questão. No mais das vezes, a tendência é que este seja um ato irônico, que tem como consequência radical a desilusão do mundo, ou a mágoa do mundo. 

Se o primeiro passo é o de universalizar o problema, o próximo — isto é, numa resolução natural das emoções, em que a emoção não se sobrepõe à razão, nem a contamina — é o da necessária humanização dessa dor: «a dor fica mais viva quando volta para o seu lugar». A dor que sai, volta, e com toda intensidade. Contudo, «mas algo em mim não sofre e permanece em contato com um universo que não foi alterado.» O que acontece aqui?

Ao extirpar a dor pela sua universalização, ateia-se fogo no mundo. Mas o mundo não deve ser destruído. Destruir o mundo é destruir o próprio homem em definitivo. Todo impulso revolucionário se vê vítima de um delírio da intemporalidade, de uma suspensão do tempo por meio da obtenção de uma paródia da eternidade, como fez Agave em As Bacantes. Conclusão possível: não devemos queimar o mundo para que nossa dor seja relativizada. Apesar da amargura, nossas dores continuam sendo nossas. Não é que elas sejam exclusivamente nossas: a especificidade de nossa dor é responsabilidade nossa. É possível contemplá-la, contudo, no seio da eternidade, pela participação no ser. Através da participação no ser, acha-se orientação para o sentido da dor, por analogia. Para que encontremos orientação, a dor deve voltar para nós, e o mundo, naquilo em que se vê inalterado, provê subsistência e estabilidade ao que sentimos. Mais que isso: tira da dor o seu caráter de ferida incurável e atribui-lhe a naturalidade. Livre da intemporalidade e do desespero, retomamos nossa capacidade de pensar e de sofrer a ação do tempo. Somos capazes de contemplar a chaga, restituída de sentido. A dor que mata é a da loucura. É a dor de atear fogo ao mundo; é a dor dos irrazoáveis e céleres. 

«Mas algo em mim não sofre e permanece em contato com um universo que não foi alterado. Agir da mesma forma com as paixões. Fazê-las descer, concentrá-las em um ponto e desinteressar-se delas. Tratar assim, especialmente, todas as dores. Impedir que elas se aproximem das coisas.»

Estipulamos então que a dor vai para o mundo quando se quer curá-la em definitivo. A cura definitiva de uma dor só pode ser obtida por uma panaceia. Nos termos propostos pela autora, a panaceia é exatamente isto: alterar o universo, reescrever seus predicados existenciais para que suas cadeias causais naturais não mais nos aflijam. Suspender o tempo e viver na intemporalidade. Viver numa pintura.

O retorno da dor significa, então, a aceitação de termos existenciais relativos, ou seja: preserva-se ao menos parte de nossa imagem do mundo, ao mesmo tempo em que preservamos nossa consciência, ainda que doloridos. Aceitamos (e acolhemos) a dor como parte da existência. É escrever mais por estar paralítico; é desenvolver mais a audição por ser cego. 

Aceitamos os termos relativos porque precisamos do mundo, de um mundo estável, coeso, que subsista alicerçado na razão. Pois só a razão e a razoabilidade podem curar nossas chagas. Só a razão pode se sobrepor à desrazão do mundo.

Existem, contudo, diferentes dores e diferentes mundos. Uma dor legítima, oriunda de um forte sentimento de injustiça, evoca, por vezes, um buraco mítico, uma dissonância universal. É o caso de Jó, que é forçado a perseverar no limite da chaga e da desrazão, exemplificando de forma perfeita e eficaz o problema da dor, da mais desarrazoada das dores.

Um caso literário de semelhante natureza — por analogia — é o de Michael Kohlhaas, de Heinrich von Kleist. Fiz alusão ao problema universal do homem que perde seus cavalos. O que isso quer dizer?

No drama, Kohlhaas é um cuidador de cavalos de Brandemburgo que se vê num imbróglio: não tem permissão de fazer comércio com seus cavalos quando está a caminho da Saxônia porque um pequeno nobre, Wenzel von Tronka, decide atrapalhá-lo, exigindo-lhe um passe legal. Tal cobrança não é nem ao menos lícita. Contudo, o pequeno entrave desencadeia a mais profunda transformação na vida do homem, que perde um par de cavalos negros como colateral. Os cavalos, que ficam na propriedade de von Tronka, são tratados com descaso e crueldade, deixando de ostentar a rica aparência que um dia tiveram, tornando-se feios e desnutridos. A perda dos cavalos ocasiona na rebelião de Kohlhaas, que por sua vez ateia fogo ao castelo de Wunker e inicia uma campanha de terror em Wittenberg, na Alta Saxônia. Vende suas propriedades por uma bagatela e perde até sua mulher no processo. É condenado à morte, enfim, mas não antes de ter seus cavalos restituídos. 

Mas o que acontece de fato aqui? Por que escreveria Kleist um drama de proporções históricas só por causa do roubo de um par de cavalos?

Os cavalos de Kohlhaas, junto a seu dono, constituem a imagem da alma como aludida no Fédro de Platão. Se tomarmos a forma da alma como uma tipologia constituída pelo cocheiro e seus dois corcéis, o cocheiro, representado por Kohlhaas, perde o acesso às suas possibilidades cósmicas ao perder seus cavalos. Em termos claros, Kleist é destituído de sua capacidade simbólica tanto de elevação quanto de paixão. Não pode subir às alturas e nem descer ao Hades. O ataque feito pela burocracia dos príncipe-eleitores foi contra sua eminência. Em termos trágicos, testemunhamos aqui o furto da excelência de um homem distinto. O ataque visa diminuí-lo, por meio de um golpe em seu espírito. 

Destituído do par de cavalos, temos uma deformação em sua alma, uma mácula. O cavalo é um animal psicopompico, que vive na metaxis. É próprio de sua natureza a travessia, seja às profundezas do abismo ou ao topo dos picos. Se não é possível a Kohlhaas nem sequer a clareza de um destino, o que lhe resta? Não é considerado de todo como criminoso, angariando até o apelo e a simpatia do Eleitor de Brandemburgo e a restituição última de seus cavalos; tampouco pode ser considerado herói, já que se entrega por inteiro à vingança em seus últimos momentos, ao se recusar a transmitir a enigmática mensagem da cigana ao Eleitor da Saxônia, mensagem cujo conteúdo diz respeito ao futuro do Ducado. Somos forçados a nos perguntar: quem é Michael Kohlhaas?

Os dramas de Kleist transformam suas personagens em oportunidades para o embate entre a graça e o pecado, como em Die Marquise von O; ou transformam-no num viator, por meio do qual um drama existencial ganha palco, como vemos aqui. Temos assim a prefiguração de um drama irônico, mas um drama irônico de contornos místicos; um drama irônico que não é regido pela inteira falta de capacidade, mas pela forçosa obtenção de vinganças relativas e de vitórias relativas. É o drama de uma alma deformada.

A dor de uma alma ferida, destituída de possibilidades intuitivas de resolução cósmica, recorre de imediato ao problema de que falamos hoje: Kohlhaas se torna um incendiário, alguém que leva a dor de sua injustiça ao mundo ao seu redor. Só que esse drama não é parido no seio de uma ilegitimidade. O mundo de Kohlhaas é deturpado per se, e ambiciona que haja uma deturpação na alma de todo eminente, de todo aquele que ousa se destacar. Ao tentar forçar a mão sobre a ameaça de um germanista legítimo, de um possível Bulla Felix, Kohlhaas reage como uma fera encurralada. Temos então a ilustração de uma dissonância mítica, da suspensão de uma dor na marcha da narrativa histórica. 

Todos os estados de espírito em Kohlhaas são transitivos. A perda de autonomia o torna um homem dependente. Sua dependência, contudo, depende de outras dependências. Se a ação de um herói já não subsiste por si, em outras palavras, se um homem vocacionado para o heroísmo se vê destituído de seus meios de ação, mas a sombra de seu heroísmo ainda é projetada no mundo ao seu redor, existem aí duas opções: ou estamos falando de um homem louco, ou existem forças que querem ter controle sobre este bode expiatório. No caso do drama de Kleist, existe tanto a força estatal quanto a da própria providência. Que a um homem capaz de brandir a própria espada, mas desarrazoado o bastante para apontá-la até contra si mesmo seja permitida a participação na narrativa histórica e nos desenlaces do futuro da Alemanha, é algo que só Deus possa permitir. A instável fisionomia de um ex-cavaleiro como Michael Kohlhaas serve, portanto, como uma profecia do destino da Saxônia. Lançado em 1810, o livro prenuncia a Revolução de 48. Como diz a Virgem Vermelha:

«A vingança. Mesmo se nós realmente matarmos ou torturarmos os nossos inimigos, de certo modo, isso é imaginário.»

Só a razão pode se sobrepor à desrazão do mundo. A que conclusão chegamos com relação ao que diz Simone Weil? Qual a conclusão radical de sua tese? De que a alternativa à responsabilizar-se pela dor é a destruição mútua entre o homem e o mundo. Em um estado social de absoluta transitividade, a fragilidade das almas e das formas se torna autoevidente. Kohlhaas permite que as dores e as paixões toquem nas coisas, ateando fogo ao mundo. A restituição de seus cavalos não restitui sua alma: passando-os para seus filhos, assegura-se de ato magnânimo, que será substituído quase que imediatamente por sua vingança contra o Eleitorado da Saxônia. Perde sua identidade e se confunde com seu papel histórico, com um destino externo ao seu. Torna-se assim, de forma conclusa, uma personagem histórica, uma ilustração das consequências últimas do colapso entre a dor e o mundo. 

O mundo destrói Kleist e Kohlhaas ateia-lhe fogo. O drama que se inicia na deformação de nossas almas toma proporções históricas no momento em que abdicamos de nossas possibilidades de redenção, de nossa possível jornada de retorno a um mundo inalterado. Simone Weil sabe muito bem disso.

Por que Hipnos tem asas na cabeça?

                 Parece que o estado de vigília nos induz à memória. Mas por quê? Ciro dos Anjos sugere que há uma batalha sendo travada nos...