Em duas postagens anteriores, intituladas respectivamente de "Heróis Lunares" e "Heróis Solares", tive a audácia de classificar alguns heróis em determinados tipos astrológicos, dentre os quais estava presente a figura de Orfeu, o poeta, profeta, místico e herói grego. Para Orfeu, determinei-lhe a lunaridade. Atribuí a Orfeu a qualidade de desbravador dos mistérios ctônicos, com algo de encantado/encantador e algo de iludido. Embora sejam percepções corretas em sua essência, são ainda articulações embrionárias que carecem de maior elaboração. Eis-me aqui para dar continuidade à tarefa.
É trabalho ingrato ilustrar ou dar luz a uma intuição óbvia. Ou, ao menos, que me foi óbvia. Jamais cogitei a hipótese de associar a figura de Orfeu a qualquer outro astro que não à própria Lua. Colocando-lhe os pingos nos is de forma mais sinestésica, é-me muito clara a frieza de constituição, o oraculismo, a magia noturna, a melancolia e a graveza lúgubre e soturna que circundam todo o imaginário do herói. Mas é possível também desenvolver alguns argumentos que fortaleçam essa percepção, como veremos a seguir.
Em primeiro lugar, vamos nos deter com mais atenção no porquê de Orfeu não se enquadrar bem nos arquétipos saturninos, joviais, marciais, venusianos ou mercuriais.
I. Apesar de sua graveza melancólica, Orfeu não é nem de longe um realista, um organizador ou um controlador. Ao contrário: Orfeu se qualifica como um desafiador da ordem cósmica, como alguém que quer deter o controle do mundo 'sublunar' pela própria capacidade de encantamento e de êxtase, ou seja, por participação e por deleite. Por essas razões, dificilmente poder-se-ia chamar Orfeu de saturnino. Existe uma imperfeição, uma multiplicidade e uma instabilidade nos desejos de Orfeu, instabilidade que se afigura como a própria autoimagem do herói, como examinaremos mais à frente.
II. Apesar de sê-lhe atribuído o papel sacerdotal (ora de Dioniso, ora de Apolo), o sacerdócio de Orfeu é inteiramente intramundano. Quer servir de receptáculo da experiência da verdade, sacrificando tudo o que há de suspenso e elevado para tal. Há muito pouco de expansivo e de aéreo em Orfeu: trata-se de um herói contraído, de um herói que quer tudo para si. Tenta salvar Eurídice e fracassa, porque não quer sacrificar-se por Eurídice — não sacrificará nenhum capricho por ela —, mas mantê-la junto a todos os desejos que lhe aprouverem. De modo que a fumaça do sacrifício sacerdotal tão típica de Júpiter (e Sagitário) torna-se um elemento muito distante das ações de Orfeu. Por essas razões, não poderíamos chamar Orfeu de jovial.
III. Apesar de sua vocação cósmica e mítica como músico, Orfeu não apresenta mais traços marciais. Sua poesia cósmica e contemplação melancólica da passagem do tempo parecem afastá-lo em demasia da beligerância e da conquista. Por essas razões, não poderíamos chamar Orfeu de marcial.
IV. Apesar de sua aparente natureza sedutora, seria mais plausível afirmar que Orfeu é maior vítima de um encanto exterior do que mestre ele mesmo de um encantamento profundo e duradouro sobre outrem. Orfeu comove multidões e até deuses com seu canto, mas só temporariamente e sob certas condições. Orfeu sempre busca o encanto de sua lira a fim de obter uma musa inefável, uma musa que é sempre reflexo dele, parte dele, extensão dele, seja essa musa alguma expressão da arte (pensemos aqui no Orfeu de Cocteau) ou a própria Euridice, que, consoante Paul Diel, seria o simbolismo da alma órfica, do centro de sua alma. É sempre fracassado em sua tentativa; não resgata a musa, nem mesmo por ímpeto carnal — é como se nem mesmo a desejasse o suficiente. Isso porque Orfeu se distrai com todo e qualquer estímulo que surge em seu caminho: não tendo clareza do que quer, quer tudo que existe sob a face da terra. Este querer pode se afigurar tanto como um desejo erótico como num desejo autodestrutivo e antierótico, com delírios ascéticos de todo tipo. Orfeu também é um mau guia: não consegue conduzir Eurídice pra fora do Hades, sendo incapaz de produzir o bem, seja o bem menor de Vênus ou o bem maior de Júpiter. Por essas razões, não poderíamos chamar Orfeu de venusiano.
V. Apesar de sua volatilidade e dispersão perante as possibilidades, Orfeu não age com qualquer resquício de inteligência e obsessão organizacional. Ao contrário, é vítima de uma obsessão cujos contornos lhe são misteriosos. Não é um herói notável por sua capacidade comunicativa, nem pelo fluxo neurótico de consciência; é misterioso até para si, movendo-se pelo talento e pelo dom da transformação, por tudo aquilo que simplesmente irradia em sua constituição (não se trata a Lua do astro cujo pecado é a Preguiça? Cuja representação antropomórfica seria aquela do Bebê?), transitando entre os diferentes planos de existência em busca de uma resposta poética, de uma imagem sintetizante cuja natureza é necessariamente estilhaçada, ainda que não a perceba como tal. Busca uma pureza poética, uma síntese de estados anímicos e uma unidade múltipla que só são possíveis dentro da ilusão da imagem. Por essas razões, por essa falta de discernimento intelectivo, não poderíamos chamar Orfeu de mercurial.
Resta-nos o exame do Sol e da Lua. Existe uma via na qual Orfeu possa ser posto em posição de solaridade: numa cosmologia órfica. Mas este é um assunto demasiado complexo para os propósitos desta postagem, cujo exame será adiado para uma data futura. Quanto à lunaridade, bem, desta podemos tratar com algo de convicção.
Enquanto regente dos ciclos de geração e corrupção, a Lua é naturalmente um astro transformador. Mas sua posição tradicional a coloca — enquanto símbolo máximo do feminino — como o ponto limítrofe entre as formas perecíveis e supraperecíveis, entre o que é passível de mutação cíclica e aquilo que não é. Todos os demais astros a partir de Mercúrio configuram o que chamamos de mundo supralunar, ou seja, tudo aquilo que é significador constante e impassível. Estando a lua à beira dos portões, mas do lado de cá, seria ela mesma regente dos ciclos de transformação terrena tanto quanto seria também ela um corpo modificado neste processo, um corpo que assume formas distintas ao longo do mês. Embora esta qualificação seja óbvia, faz-se necessária para o que vem a seguir.
A Lua é também um astro cuja constituição é a água, fria e úmida em sua natureza. A água é o elemento de matéria relativa, de densidade relativa — sendo a terra o correspondente da densidade "absoluta". Dum ponto de vista alquímico, seus três pilares metafísicos — Enxofre, Mercúrio e Sal — seriam analogados pelos símbolos naturais Sol, Lua e Terra. Esta mesma tríade seria correspondente à constituição tripartite da natureza humana na tradição ocidental, Espírito, Alma e Corpo, respectivamente. Trata-se a Lua, portanto, do astro de matéria relativa que rege os estados anímicos, as transformações da alma, do conjunto de aspirações, sentimentos e de tudo aquilo que é ávido, de tudo aquilo que anseia pela própria transformação e pela realização mais profunda do desejo. É o feminino saltitante que pode nos elevar ou nos despedaçar, como as Bacantes que despedaçam Orfeu...
Fica então clara a analogia: Orfeu é um viajante, mas não um viajante universal, nem comerciante, nem itinerante. Orfeu é um viajante que transita entre diferentes estados anímicos, entre diferentes pontos da topologia de sua alma. Viaja ao Hades para resgatar Eurídice como quem viaja ao inferno do Ser. Transita entre o Apolíneo e o Dionisíaco, entre a concentração hipotética do ascetismo e a dispersão de excitação máxima da devassidão. Tenta racionalizar e entender a própria alma através dela mesma, sem jamais entender qual papel deve exercer em definitivo, sem jamais aceitar um serviço, um sacrifício genuíno, pois se recusa a abrir mão de quaisquer desejos. Reflete então a imagem do poeta que é devorado pela própria criação, que se enamora das próprias imagens como se fossem mais reais do que a própria realidade. É o arquétipo do poeta que se recusa a poetizar. Vê a realidade anímica, então, como um lunático. Circunscreve a própria Imago Animae pela via da obsessão, pela escravidão dos desejos. Seus desejos, naturalmente impossíveis, aprisionam-lhe num aglomerado de contradições e ilusões. Tais contradições, quando levadas a termo na realidade, despedaçam-lhe o corpo, como consequência lógica de suas ações, de sua recusa em aceitar as leis da causalidade como maiores (e mais poderosas) que seus delírios. Incapaz de reconhecer-se como alguém cujo fracasso fundamental é o da formação de uma identidade em conformidade com a ordem cósmica, mantém-se em negação até mesmo quando vítima do karma, tornando-se assim a imagem perfeita da natureza profunda dos artistas modernos, dos poetas malditos de metrópole, dos esteticistas, formalistas e lunáticos inertes; torna-se a imagem quintessencial do poeta em eterna recusa de resolução, de um ponto final; torna-se a imagem do poeta em eterna recusa de tomar parte nos limites verdadeiros de seu humilde ofício.