sábado, 19 de abril de 2025

A Crucificação Segundo Peter Paul Rubens

Com o espírito contrito e o coração inflamado perante o eterno testamento da salvação dos homens, Rubens captura, com o olhar fulgurante dos barrocos e com a devoção numinosa dos católicos, a maior visão já testemunhada.

É típico da obra de Rubens aquele aspecto o qual poderíamos chamar de espírito flamejante, ou apenas de essência do flamenco. Vê-se na composição a abundância harmônica de formas quase torcidas em quase-espirais, em quase-redemoinhos. Essas torções jamais viram deformidade. O efeito obtido, em verdade, é o contrário: assim como em quase todo mestre barroco, a pintura parece transbordar da tela e nos iludir com a insinuação de um movimento, com a extensão de um tender, com a direção de um tornar-se, fazendo com que pareça estar movendo-se ciclicamente. Com efeito, grande parte das obras de Rubens se utiliza dessa 'chama' para expressar a natureza enquanto propósito. Referindo-nos aqui a seu majestoso trabalho que captura a morte do Cristo, seu gênio artístico atinge o auge da expressão ígnea no pictórico: ilustra o olhar dos católicos sobre a Paixão.

O Corpo de Cristo é o eixo central da pintura, como deve ser. Mas o efeito atingido por essa centralidade é mais que o de uma simples organização geométrica. É gravitacional, centrípeto. Talvez o elemento de maior brilhantismo, neste sentido, seja o corpo do Bom ladrão. O soldado romano sobe para finalizar o trabalho e quebrar as pernas de São Dimas, que estão verdadeiramente tensas, gritando de dor. Mas o peito de São Dimas não foge à morte, e toda a musculatura superior de seu corpo aponta para o Cristo. Seus braços e pernas se agarram em desespero, mas seu peito se entrega à Paixão. Na contorção das formas, Rubens expressa o que a alma quer, frequentemente em relutância ao apetite físico. Em contraste, o segundo ladrão expressa o contrário: desespera-se, precipita-se com os braços em direção ao Cristo perante a morte, num gesto irracional de busca pelo leme, pelo seu salvaguarda. Tenta alcançar-lhe com os braços, mas não entrega sua alma a Deus. Ambos vão em direção ao ponto gravitacional do Cristo, ao eixo da realidade.

Na parte inferior da pintura, mais significados: A Lança de Longinus empunhada por Cassius cria um vínculo entre ele mesmo, que é quem concentra toda a expressão marcial da pintura, e aquele que é o logos divino e o centro pictórico da luz. Cassius perfura o corpo de Cristo quase como se precisasse descobrir, perfurando-lhe o corpo glorioso, de que um Deus é feito. É como se Marte quisesse a glória do Sol. Logo abaixo, mais à direita, vê-se a mão suplicante e os cabelos soltos de Maria Madalena, em um gesto venusiano desesperado, em um pedido de paz e de concórdia. Seu sofrimento é afluente, erótico, tão digno quanto o dos demais, e seus cabelos dourados são a coisa mais próxima de um alívio pros olhos. São João resigna toda sua marcialidade juvenil e mantém-se enlutado, ao lado. 

Cada um dos corpos expressa um tipo diferente de sofrimento, de estupor, de pathos: são os diferentes efeitos da paixão sobre as diferentes personagens que tomaram parte no sacrifício dos sacrifícios. A circularidade com que as formas se delineiam é típica da genialidade de Rubens: é por meio dela que tendem umas às outras, que conversam-se entre si, que reúnem-se num único gesto coletivo, num tormento partilhado. Ângulos retos tendem a afirmar a individualidade e a fixidez. A elipse tende ao movimento e à partilha.

A Paixão expressa-se celestialmente no tormento das nuvens, na sugestão da tempestade. Terrestrialmente, o solene luto de Deus é irradiado e refletido pelo sofrimento das criaturas. Também os animais não escapam de sua ira: enquanto o cavalo de Cassius vira a face, envergonhado do ato de seu cavaleiro, o cavalo do outro soldado se prostra perante o Filho do Homem, curvando-lhe a cabeça.

Por fim, a Mater Dolorosa, que escoa todo o sofrimento da ação e sustenta-o na graveza de seu luto. O plúmbeo véu que cobre seu pálido corpo é justamente onde repousamos o olhar para retirar-nos momentaneamente (e eternamente) do sofrimento testemunhado. Ambos, rigor devocional e solene caridade tomam parte em seu infinitamente digno sofrimento. Pedimos-lhe por misericórdia tal como faríamos, como faremos. Rogai por nós, Santa Mãe de Deus.

segunda-feira, 14 de abril de 2025

O Diabo de Milton, Júpiter e Saturno na Obra de Cabanel


À revelia de sua posição histórica enquanto marco do neoclassicismo, Cabanel expressa estrondosa devoção a Júpiter, Saturno, aos arcontes e ao espírito romântico em seu icônico trabalho que dá contornos ao Lúcifer de Milton.

Pode-se resumir toda a dinâmica nos substantivos abstratos "expansão" e "contração". Enquanto as potestades — românticas, eróticas, com algo de profanidade, com algo de uma interpretação inevitavelmente erótica e venusiana da natureza do amor — rumam a leste (do nosso ponto de vista), Lúcifer fica para trás. Não é que Lúcifer seja apenas deixado para trás. Ele fica para trás. Sua rebeldia o aprisiona, sua liberdade o acorrenta.

O produto da queda (rejeição do Amor e da Liberdade em Deus) é o fechamento causal de Saturno. As potestades voam porque são como Júpiter. Lúcifer é como Saturno. Os braços de Lúcifer formam um anel, que recruta-lhe os músculos e tensiona-lhe o ser. Suas pernas não se expandem, mas se contraem. Suas asas, membros cuja finalidade é a da expansão, contraem-se elipticamente em torno do olhar feérico do diabo. A spira mirabillis é obtida por meio deste movimento de contração, da contração Saturnina do demônio. Mira o leste e permanece no oeste, no ocaso. Mira o nascer do sol e manifesta-se no poente. Mira a sua oposição natural, a da caridade, com perversão, com graveza. E com dor. Com ódio. Dói-lhe a alma exercer a odiosa função de adversário. E ufana-se por meio dela.

Ufana-se por ser o demônio da circularidade antropoteísta e regente do orgulho romântico. Retém fagulhas joviais na ponta das penas, não se divorciando inteiramente de sua gens, nessa acepção romântica e Miltoniana. Os frutos da pintura não deixam enganar: ainda nos dias de hoje, o trabalho de Cabanel suscita emoções contraditórias no coração de todos os que têm fascínio pelo mal, fascínio pelo abismo, fascínio sombrio e erótico com o ocaso e com o casamento abominável com o nada e com o apagar de luzes da civilização.

Um dos grandes trabalhos saturninos de todos os tempos.

A Lunaridade de Orfeu

Em duas postagens anteriores, intituladas respectivamente de "Heróis Lunares" e "Heróis Solares", tive a audácia de clas...