Eis os três talismãs do discurso simbolizante: Mito, Poética e Símbolo.
O mito, mais primitivo dos esforços significantes e sintetizantes, faz como quem procura limpar uma estátua de gesso quase seca com cerdas ainda um pouco sujas. Ébria de extravagâncias mas inteligível em seu prisma essencial, a figura mítica suscita no espírito os primeiros contornos do que entende-se posteriormente como forma. Não dispensando contudo a grosseria, a gulodice, a empáfia e a rispidez inerentes a uma realidade autodeterminada e petulante, traz também consigo a repugnância do charco, a imundice do sexo ilegítimo e a perturbação cósmica do excessus na realidade. Para cada gesto nobre e devocional, duas jarras de terror e nenhuma libação. O mito, em linhas gerais, propõe um tipo de unidade e de síntese, sim, mas não o tipo de síntese que se é levado a pensar quando contraposto ao poema e ao símbolo. É o tipo de síntese que vem da captura imaginativa e primitiva das vozes, do canto, do ritmo e da sensibilidade ctônica em exaltação máxima. Trata-se da primeira expressão de mimésis, de uma mimésis que é naturalmente obnubilada pelos desconfortos existenciais profundos de um homem em busca da cura para o caos, mas sem os meios para tal.
Este caos, sem ter para onde ir, transborda em toda sua expressão tortuosa da ordem. Esta ordem, imposta à mente do homem primitivo, seja por seu deslumbramento com a realidade empírica objetiva e suas hierofanias, seja por meio de alguma revelação, apresenta-se como a primeira expressão dos modos de ação da natureza e a síntese de seus movimentos de expansão e contração, de dissolução e de coagulação. Ainda sem poder expressar o problema do ser em sua unidade essencial, o mito ilustra o enamoramento e o eventual triunfo eterno e cíclico da ordem sobre o caos, em suas mais sutis expressões naturais e preternaturais. O escultor que deu forma à matéria-prima primeva e gerou o mito, deixou sobre este os vestígios do trabalho manual. Existe ordem afetiva e erótica no caos do mito, assim como existe uma desordem exaltada e superabundante em sua silhueta. O mito leva adiante toda a matéria-prima necessária para que a linhagem subsequente de artesãos se debruce sobre. Ao dividir o trabalho do primeiro artesão, que simboliza o coletivo e o espírito de um determinado povo, surgem os primeiros esforços poéticos.
O molde em que o mito se criou foi passado adiante, mas sua matéria-prima foi decomposta em um número de assuntos tão grande quanto o número de homens ainda não nascidos. A partir dessa descompactação surgiu um conjunto de objetos simbólicos, um conjunto de atos significados que induziram atos vividos no contexto do rito e da liturgia antiga. Esses símbolos, esses atos significados, esses objetos simbólicos, deram luz ao progresso da consciência e da diferenciação. Os filósofos da natureza buscaram compreender o problema do ente no âmbito da ciência, mas já os símbolos deram forma à capacidade de inteligir a realidade quando mais desnuda das aparências e do terror existencial. As armas litúrgicas, o Omphalos e as colunas jônicas apontam com muita clareza para a capacidade de significar em ato. O desenvolvimento da poesia vai pela mesma seara no tocante à objetificação dos assuntos humanos, neste caso, por meio da versificação e da metrificação. Uma única "mão" espiritual forjou a poesia do mito, mas ela falava por toda a comunidade. Agora toda a comunidade se divide, e cada poeta expressa e dá forma aos próprios problemas. Apoiados na base mítica que exorta seu terror existencial de forma extensiva, debruçam-se enfim sobre os fantasmas restantes.
O progressivo aperfeiçoamento do pensamento por trás da poesia, se comparado à condição de terror aglutinado do mito primordial, remonta a imagem do escultor que deixou sua obra por finalizar, mas que marcou o espírito de todas as gerações que o sucederam. A perfeição da forma poética não lhe foi possível, mas o resplendor de seu espírito foi ofuscante. O desejo de expressar-se com tamanha envergadura é matéria universal pros poetas. Mas não é na simples réplica da fórmula mítica que um poeta poderia atingir a grandeza de expressão, e sim no desenvolvimento abundante da própria capacidade de expressão. Refraseando: poderiam todos os poetas gregos serem eles mesmos Homeros? Não, mas poderiam ser eles Píndaros e Simónides. Poderiam todos os poetas falar de matéria tão grande quanto a de Homero? Não, mas poderiam eles dar seguimento à obra inacabada, preparando o terreno para a rearticulação do mito por meio do teatro. Na altura em que o Prometeu Acorrentado de Ésquilo foi possível, muito havia sido feito. A poética desenvolveu a capacidade de expressar de maneira diferenciada e esclarecida as muitas narrativas possíveis. Diferenciou os gêneros possíveis à vida humana, e dentro dos gêneros possíveis, as narrativas hipotéticas desdobram o que certas premissas de fato implicam. Tais premissas, compactadas e indiferenciadas na obra mítica, ganham contornos, desenvolvem-se e elucidam a vida. O que aconteceria a um deus que vê valor na humanidade enquanto potência, enquanto semente da cultura e da civilização, um deus que, em verdade, vê mais valor nos homens dos que nos próprios deuses? Qual a situação cósmica de um príncipe que deve dissolver seu reino para que o mesmo reino possa renascer das cinzas? Qual a situação cósmica do adultério? E da hipótese do adultério não-realizado? No que pensa o Minotauro no centro do labirinto?
O colosso mítico da poesia primordial é a força centrípeta para onde apontam as vozes e as penas dos poetas, mas o número de monumentos de proporções incalculáveis que a poética erigiu é tão alto quanto o da incalculável extensão do prodígio de sua fertilidade cultural, que ascende da história da humanidade até as livrarias da eternidade. A poética criou, cria e criará a substância das combinações possíveis da existência humana. Essa substância tem um valor de verdade, um valor de existência que combina todos os tons, todos os módulos, todas as melodias e harmonias possíveis. No desenvolvimento da poética, criou-se a forma das formas. A forma que é capaz de formar e formar; a forma que é capaz de dar molde ao hipotético, e de modular as implicações mais ínfimas e diminutas que se escondem por detrás da reflexão e da ação humana. O faz por meio da combinação verdadeiramente exaustiva das hipóteses harmônicas, inteligíveis e portanto belas do nosso exprimir. Se o escultor do mito deixa as marcas dos dedos por toda a extensão de sua obra parida e quase-perfeita, o poeta-escultor trabalha com as mais precisas ferramentas em sua inalcançável busca pela perfeição das formas.
Perante tal prodígio, de que resta ao símbolo que não seja exaurido pela perfeição autoevidente da poesia? Bem, algumas coisas, ou talvez somente uma, da mais elevada importância. Primeiro valeria dizer que o símbolo é o que torna possível que todos estes objetos, dotados de infinita complexidade interior (e muitas vezes exterior) possam ser contemplados com valor de verdade, com sujeito e predicado. O símbolo é o que permite que um objeto mítico e poético possa ser entendido em sua geralidade, e não como a soma das partes, ou mesmo como a subtração. Sejam os números, o Zodíaco ou os próprios astros, o símbolo descende do reino do imperecível. Quando aplicado à realidade perecível, é capaz de julgar-lhe de acordo com suas propriedades enquanto ser. Se a poética é o domínio da expressão das hipóteses, estas hipóteses, quando desenvolvidas e, por fim, exauridas, assumem um valor próprio de existência que excede a soma de suas partes, ou seja, excedem o valor que um texto possa assumir enquanto um auxílio moral ou enquanto uma ficção inebriante.
Quando os medievais pegavam um texto da literatura romana, não aplicavam sobre este um valor subtraído ou dividido; buscavam exauri-lo. Buscavam observá-lo até mesmo com intempestiva crença de que tudo que havia sido dito naquele texto pudesse ser verdadeiro. A busca pelo significado mais profundo de um texto era a norma, não a exceção. Nasce como produto dessa busca pela síntese entre o micro e o macrocosmo, entre o imperecível e o perecível, o Convivio de Dante, no qual o poeta articula os níveis de interpretação de uma obra "ficcional", a saber, Literal, Alegórico, Moral e Anagógico. A articulação desses níveis se dá justamente por uma investigação do valor de verdade que um texto poético possui. Chamar-lhe de ficção seria descabido; chamar-lhe de texto sagrado seria ainda pior. Seria acertado, porém, partir da premissa de que um texto não é apenas um texto, assim como a palavra não é só um grupo de letras, nem uma frase um conjunto de palavras, e que as alegorias de um texto expressam, junto a suas implicações morais, a modulação consciente na mente de quem o lê de que há um valor existencial naquele objeto. Se o mito dá os primeiros contornos da matéria-prima e o poeta extrai dela a possibilidade de inteligir a realidade por meio das formas, o símbolo expressa o valor de verdade que todo homem sobre a face da terra deve ser capaz de ver, em qualquer lugar, sob qualquer disfarce, pois é no símbolo que somos capazes de inferir o essencial, que somos capazes de tensionar a realidade para que ela vá além das aparências, das ilusões e de tudo aquilo que se intrometa no caminho do homem até o centro da criação, expresso neste breve relato como o essencial por detrás de todos os frutos sinceros da cultura humana.